"E quer você dizer, Anne queridinha, que o Dick Moore não é o Dick Moore mas outra pessoa? Foi por isso que me telefonou hoje?"
"Sim, Miss Cornélia. É extraordinário, não é?"
"É...é tipico de um homem," disse Miss Cornélia desorientada. Tirou o chapéu com mãos trémulas. Por uma vez na vida, Miss Cornélia estava espantada.
"Eu não consigo perceber, Anne," disse. "Eu ouvi-a dizê-lo, e acredito em si, mas não percebo. O Dick Moore morreu, esteve morto estes anos todos, e a Leslie é livre?"
"Sim. A verdade libertou-a. O Gilbert tinha razão quando disse que esse versículo era o mais importante da Biblia."
"Conte-me tudo, querida. Desde que recebi o seu telefonema que estou desorientada, acredite. Cornélia Bryant nunca esteve tão perplexa."
"Não há grande coisa a dizer. A carta da Leslie foi curta. Ela não entrou em pormenores. Este homem, o George Moore, recuperou a memória e lembrou-se de quem é. Ela disse que o Dick apanhou febre-amarela em Cuba e que o Four Sisters teve que partir sem ele. O George ficou para tratar dele. Mas ele morreu pouco tempo depois. O George não escreveu á Leslie porque pensava voltar logo e dizer-lhe pessoalmente."
"E porque não disse?"
"Deve ter sido por causa do acidente. O Gilbert diz que é provável que o George não se lembre de nada do acidente, ou do que lhe deu origem, e que pode nunca se vir a lembrar. Provavelmente foi pouco tempo depois da morte do Dick. Podemos saber os pormenores quando a Leslie escrever novamente."
"E ela disse quando é que vai escrever? Quando volta para casa?"
"Ela diz que vai ficar com o George Moore até que ele possa voltar a casa. Ela escreveu á família dele de Nova Escócia. Parece que a única família que o George tem é uma irmã casada muito mais velha que ele. Ela era viva quando ele partiu no Four Sisters, mas ninguém sabe o que lhe aconteceu entretanto. Alguma vez viu o George Moore, Miss Cornélia.?"
"Vi. Estou-me agora a lembrar. Ele veio de visita ao tio há dezoito anos, quando ele e o Dick tinham á volta de dezassete anos. Eles eram primos duas vezes, sabe. Os pais eram irmãos e as mães eram irmãs gémeas, e eles pareciam-se muito. Claro," continuou Miss Cornélia desdenhosamente," que não era nenhuma parecença como se lê nas novelas, em que duas pessoas são tão parecidas que podem trocar de lugares e ninguém percebe. Naquele tempo era fácil dizer qual era o Dick e qual era o George, se os víssemos juntos. Quando não estavam, era mais difícil. Eles faziam imensas partidas e achavam-nas muito divertidas, os palermas. O George era um pouco mais alto e bem mais forte que o Dick, apesar de nenhum ser gordo. O Dick era mais moreno que o George, e tinha o cabelo mais claro. Mas as feições eram muito parecidas, e os dois tinham os olhos assim, um castanho e outro azul.
De resto não se pareciam muito. O George era um tipo simpático, apesar de se doido por partidas, e alguns diziam que já nessa altura ele se metia nos copos. Mas toda a gente gostava mais dele que do Dick. Ele ficou aqui cerca de um mês. A Leslie nunca o viu, ela tinha oito ou nove anos e lembro-me agora que passou todo o Inverno do outro lado do porto com a avó West. O Capitão Jim também cá não estava, foi nesse Inverno que naufragou nas Madalenas. Acho que nem ele nem a Leslie sabiam do primo de Nova Escócia que se parecia tanto com o Dick. Ninguém se lembrou disso quando o Capitão Jim trouxe o Dick, ou melhor, o George para casa. Claro que todos achámos que o Dick tinha mudado muito, tinha ficado tão gordo. Mas atribuímos isso ao que se tinha passado com ele, e não há dúvida que foi o que se passou, porque o George também nunca foi gordo. E não havia outra maneira de descobrirmos porque o homem tinha perdido o sentido. Não vejo qual a admiração de nos termos enganado todos. Mas é uma coisa espantosa. E a Leslie a sacrificar os melhores anos da vida dela por um homem com quem não tinha nenhum laço! Oh, malditos sejam os homens! Seja o que for que façam, é a coisa errada. E quem quer que sejam, é alguém que não deviam ser. Irritam-me."
"O Gilbert e o Capitão Jim são homens, e foi através deles que a verdade se descobriu por fim," disse Anne.
"Pois, admito que sim," concedeu Miss Cornélia com relutância. "Tenho pena de ter dito tanta coisa ao doutor. É a primeira vez na vida que me arrependo de qualquer coisa que disse a um homem. Mas não sei se lho devo dizer. Ele vai ter que depreender. Bem, Anne, queridinha, é muito bom que o Senhor não responda a todas as nossas orações. Eu tenho andado a rezar para que a operação não curasse o Dick. Claro que não pus as coisas assim. Mas era o que eu pensava, e concerteza que Deus o sabia."
"Bem, ele concedeu-lhe o sentido da oração. A senhora desejou realmente que as coisas não fossem mais duras para a Leslie. Receio que no fundo do meu coração também tivesse desejado que a operação não resultasse, e envergonho-me disso."
"E como é que a Leslie encarou o assunto?"
"Ela escreve como se estivesse baralhada. Eu acho que, como nós, ela ainda não percebeu o que isto significa. Ela diz 'Isto parece-me um sonho estranho, Anne'. E é a única referência que faz a ela própria." "Pobre criança! Penso que até um prisioneiro se deve sentir estranho e perdido quando lhe tiram as correntes. Anne, queridinha, um pensamento não pára de me vir á cabeça. E o Owen Ford? Nós sabemos as duas que a Leslie gosta dele. Alguma vez pensou que ele pudesse gostar dela?"
"Sim, uma vez," admitiu Anne, temendo falar demais.
"Bem, eu não tenho nenhuma razão para pensar que gostasse, mas parece- me que gosta. E Deus sabe que não sou casamenteira, e que costumo zombar dessas coisas. Mas se eu fosse a si, escrevia ao Owen Ford casualmente e contava-lhe o que se passou aqui. Era o que fazia."
"Claro que vou falar nisto quando lhe escrever," disse Anne, um pouco distante. Isto era uma coisa que não podia discutir com Miss Cornélia. Mas tinha que admitir que o pensamento também lhe ocorrera, desde que soubera da liberdade de Leslie. Mas ela não podia desrespeitá-lo falando.
si. Deve ser muito desde o acidente não "Claro que não há pressa, queridinha. Mas o Dick Moore já está morto há treze anos e a Leslie já desperdiçou tempo suficiente da vida dela por causa dele. E quanto a este George, que morreu e voltou quando toda a gente pensava que ele estava morto e enterrado, tipico de um homem, tenho muita pena dele. Não se vai sentir bem em lugar nenhum." "Ele é um homem jovem ainda, e se recuperar completamente, como parece, vai conseguir conquistar um lugar para estranho para ele, pobre tipo. Estes anos todos devem ter existido para ele."
![](https://img.wattpad.com/cover/237947747-288-k34089.jpg)
VOCÊ ESTÁ LENDO
Anne e a Casa de Sonhos | Série Anne de Green Gables V (1917)
Novela JuvenilObra da canadense L. M. Montgomery.