A Leslie foi á casa de sonho numa noite gelada de Outubro, quando as névoas iluminadas pela lua penetravam o porto e se encaracolavam como fitas prateadas á volta dos prados junto ao mar. Pareceu arrepender-se de ter vindo quando o Gilbert atendeu a porta, mas Anne adiantou-se, abraçou-a e puxou-a para dentro.
"Fico tão contente por ter escolhido esta noite para nos visitar," disse contente. "Eu fiz uma grande quantidade de doce esta tarde e precisávamos de alguém que nos ajudasse a comê-lo em frente à lareira, enquanto contamos histórias. Talvez o Capitão Jim também venha. Esta é a noite dele."
"Não. O capitão Jim está na minha casa," disse a Leslie. "Ele fez-me vir cá," acrescentou com ar de desafio.
"Vou-lhe agradecer quando o vir," disse Anne, puxando os cadeirões para o pé do lume.
"Oh, eu não quis dizer que não quisesse vir," protestou Leslie, corando um pouco. "Eu tenho querido vir, mas não me é muito fácil sair."
"Claro que deve ser complicado para si deixar o senhor Moore," disse Anne num tom coloquial. Ela tinha decidido que seria melhor mencionar o Dick Moore ocasionalmente como um facto aceite, e não dar uma morbidez excessiva ao assunto evitando-o. E tinha razão, porque o ar de constrangimento de Leslie desapareceu subitamente. Evidentemente que ela se tinha interrogado se Anne conhecia as condições da sua vida, e ficou aliviada por não ter que dar mais explicações. Deixou que lhe tirassem o gorro e o casaco e sentou-se com um ar infantil no grande cadeirão ao pé do Magog. Estava vestida de forma bonita e cuidadosa, com o tom colorido habitual dado por um gerânio vermelho no decote. O lindo cabelo dela brilhava como ouro derretido á luz da lareira. Os olhos azuis marinhos estavam cheios de riso e encanto. De momento, sob a influência da casa de sonho, ela era de novo uma rapariga, uma rapariga esquecida do passado e da sua amargura. A atmosfera de muitos amores que tinha santificado a pequena casa estava á sua volta; a companhia de dois jovens saudáveis e felizes da sua geração circundava-a; e ela sentiu e cedeu á magia do ambiente, de forma que Miss Cornélia e o Capitão Jim não a teriam reconhecido; Anne achou dificil acreditar que esta era a mulher fria e distante que encontrara na costa, esta rapariga animada que conversava e ouvia com a sofreguidão de uma alma esfomeada. E como os olhos de Leslie se pousavam na estante de livros entre as janelas!
"A nossa biblioteca não é muito extensa," disse Anne, "mas cada livro nela é um amigo. Nós fomos escolhendo os livros através dos anos, aqui e ali, nunca comprando antes de o termos lido e sabermos que pertencia á raça que conhece José."
A Leslie riu-se, com um lindo riso que parecia relacionado com a alegria que reinou sempre na pequena casa em anos passados.
"Eu tenho alguns livros do meu pai, não muitos," disse. "Li-os até quase os saber de cor. Eu não tenho acesso a muitos livros. Há uma livraria ambulante na loja do Glen, mas não acho que o comité que escolhe os livros para o senhor Parker saiba quais pertencem á raça que conhece José, ou talvez nem se importem. Eu encontrava tão poucos livros que gostasse que desisti de os ir buscar."
"Espero que considere a nossa estante como se fosse sua," disse Anne. "É completamente e sinceramente livre de pedir emprestado qualquer um dos livros que lá estão."
oh, gostei tanto delas, "Vocês estão a banquetear-me com coisas demasiado ricas para mim," disse Leslie alegremente. Então, quando o relógio deu as dez ela levantou-se meia contrariada. "Tenho que ir. Não me apercebi que era tão tarde. O Capitão Jim está sempre a dizer que não custa muito a demorar uma hora. Mas eu fiquei duas, acrescentou com franqueza.
e Gilbert. Eles tinham-se com o brilho da lareira por esperança e felizes, tipificando tudo o que ela perdera para sempre. A luz morreu-lhe nos "Venha muitas vezes," disseram Anne levantado e estavam ao lado um do outro detrás. Leslie olhou para eles, jovens cheios foi a mulher enganada e de forma fria e que se olhos e no rosto; a rapariga desapareceu; cheia de mágoas que respondeu ao convite retirou apressada.
enevoada. sua própria Anne observou-a até desaparecer nas sombras da noite fria e Então virou-se lentamente para trás para lareira.
"Não é maravilhosa, Gilbert? O cabelo dela fascina-me. A Miss Cornélia diz que lhe chega aos pés. A Ruby Gillis tem um cabelo bonito, mas o da Leslie é vivo, é como se cada fio fosse ouro puro."
"Ela é muito bonita," concordou Gilbert, com tanta sinceridade que Anne desejou que ele tivesse sido um pouco menos entusiástico.
"Gilbert, gostavas mais se o meu cabelo fosse como o da Leslie?" perguntou.
"Eu não ia querer o teu cabelo de qualquer outra cor que não fosse a tua, por nada deste mundo," disse Gilbert, com um ou dois acompanhamentos convincentes. "Tu não serias a minha Anne se tivesses cabelo loiro, ou de qualquer outra cor que não fosse..."
"Vermelho," disse Anne, com uma satisfação ensombrada.
"Sim, vermelho, para dar calor á tua pele branca como leite e a esses olhos verdes brilhantes que tens. Cabelo dourado não te ficaria nada bem, rainha Anne, minha rainha Anne, rainha do meu coração, da minha vida e da minha casa."
"Então podes admirar a Leslie á vontade," disse Anne magnânime.
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Anne e a Casa de Sonhos | Série Anne de Green Gables V (1917)
Fiksi RemajaObra da canadense L. M. Montgomery.