Umas noites depois, Leslie regressou sozinha á casa onde passara tantos anos amargos. No anoitecer de Junho foi através dos campos a casa de Anne, e apareceu com uma rapidez fantasmagórica no jardim perfumado.
"Leslie," exclamou Anne admirada. "De onde saiste? Nós não sabíamos que estavas para chegar. Porque não escreveste? Nós podíamos ter-te ido esperar."
"Eu não consegui escrever, Anne. Parecia tão fútil pôr fosse o que fosse no papel. Eu queria voltar sossegada e sem ser observada."
Anne pôs os braços á volta de Leslie e beijou-a. Leslie respondeu-lhe com doçura. Parecia pálida e cansada, e deu um pequeno suspiro quando se sentou na relva, ao lado de um grande canteiro de narcisos que brilhavam através da noite como estrelas douradas.
"E voltaste sozinha para casa, Leslie?"
"Sim. A irmã do George Moore veio a Montreal e levou-o para casa com ela. Pobre homem, teve pena de se separar de mim apesar de eu ser uma estranha quando lhe voltou a memória. Ele agarrou-se muito a mim naqueles primeiros dias, quando percebeu que a morte do Dick não era tão recente como lhe parecia.
Foi tudo muito duro para ele. Eu ajudei-o como pude. Quando a irmã dele o veio buscar foi mais fácil, porque lhe parecia que se tinha separado dela havia pouco tempo. Felizmente ela não tinha mudado muito, e isso também ajudou."
"É tudo tão estranho e maravilhoso, Leslie. Eu acho que nenhum de nós ainda se apercebeu bem de tudo."
"Eu não consigo. Quando entrei em casa há uma hora senti que tinha que ser um sonho, que o Dick ia lá estar com o seu sorriso infantil, como estava há tanto tempo. Anne, eu ainda estou abismada. Não estou contente, nem triste, nada. Sinto como se algo tivesse sido arrancado da minha vida e tivesse deixado um vazio enorme."
Sinto como se eu não fosse eu, como se me tivesse tornado noutra pessoa e não me consigo habituar.
Dá-me uma sensação horrivel de solidão, confusão e desamparo. É muito bom ver-te outra vez, pareces ser uma espécie de âncora para a minha alma á deriva. Oh, Anne, estou aterrorizada com tudo, com os mexericos, os comentários e as perguntas. Quando penso nisso só desejava não ter que voltar a casa. O doutor Dave estava na estação quando cheguei e trouxe-me a casa. Pobre velhote, ele sente-se muito mal porque me disse há tantos anos que não se podia fazer nada pelo Dick. 'Eu pensava honestamente que não, Leslie,' disse-me hoje. 'Mas eu devia ter-te dito que consultasses um especialista, que não te ficasses só pela minha opinião. Se eu to tivesse dito, talvez te poupasse uns anos amargos, e ao pobre George uns anos desperdiçados. Eu culpo-me tanto, Leslie.' Eu disse-lhe que não valia a pena, que ele tinha feito o que achava estar certo. Ele foi sempre tão atencioso comigo, custou-me imenso vê-lo assim preocupado."
"E o Dick, quer dizer, o George? A memória dele recuperou completamente?"
"Praticamente. Claro que ainda há muitos pormenores de que ele não se recorda, mas lembra-se de mais coisas cada dia que passa. Ele foi dar um passeio na noite depois do Dick ter sido enterrado. Ele tinha o dinheiro do Dick e o relógio dele; pensava trazer-mos quando voltasse para casa, juntamente com a minha carta. Ele admite que tenha ido a um sitio onde os marinheiros costumavam ir, e que bebeu, mas não se lembra de mais nada. Anne, eu nunca me vou esquecer do momento em que ele se lembrou do nome dele. Eu vi-o olhar para mim com uma expressão inteligente mas intrigada. Eu perguntei-lhe, 'Conheces-me Dick?' e ele respondeu 'Nunca te vi antes. Quem és tu? O meu nome não é Dick. Eu sou George Moore, e o Dick morreu ontem de febre-amarela! Onde estou? O que é que me aconteceu?' Eu desmaiei, Anne. E desde então que parece que vivo num sonho."
"Tu vais ajustar-te depressa a este novo estado de coisas, Leslie. E és jovem, tens a vida toda pela frente, ainda vais ter muitos anos bonitos e cheios."
"Talvez eu consiga ver as coisas dessa maneira daqui por uns tempos, Anne. Agora sinto-me só cansada e indiferente em relação ao futuro. Eu sinto-me sozinha, Anne. Sinto a falta do Dick. Não é tudo tão estranho?
Sabes, eu gostava mesmo do Dick-George, quero dizer, como teria gostado de uma criança indefesa que dependesse de mim para tudo. Eu nunca o teria admitido, aliás até teria vergonha disso, porque eu odiava tanto o Dick antes dele ter partido. Quando ouvi dizer que o Capitão Jim o ia trazer de volta eu esperei sentir o mesmo por ele.
Mas não aconteceu, apesar de continuar a detestar a lembrança dele antes. Desde a altura em que veio que ficou só a pena, uma pena que me magoava. Na altura pensava que era porque o acidente o tinha mudado tanto. Mas o Carlo sabia, Anne eu sei agora que o Carlo sabia. Eu achei sempre estranho que o Carlo não tivesse reconhecido o Dick. Os cães costumam ser tão fiéis. Mas ele sabia que não era o dono que tinha voltado, apesar de mais ninguém saber. Eu lembrei-me depois que o Dick me tinha falado de um primo da Nova Escócia que se parecia com ele como se fosse gémeo, mas tinha-me esquecido e de qualquer maneira não achei que fosse muito importante. Sabes, nunca me ocorreu questionar a identidade do Dick. As mudanças dele pareciam resultar do acidente.
Oh Anne, aquela noite em que o Gilbert me disse que o Dick podia ser curado! Não me posso esquecer. Pareceu-me que tinha estado prisioneira de uma câmara de tortura, e que a porta se tinha aberto. Eu ainda estava presa á câmara, mas não estava lá. E naquela noite senti que uma mão impiedosa me queria meter lá dentro outra vez, para uma tortura ainda maior do que a que tinha tido. Eu não culpei o Gilbert. Eu achei que ele tinha razão. E ele disse-me que uma vez que a operação era incerta e os riscos elevados ele ia compreender se eu não o quisesse operar. Mas eu sabia o que devia decidir, e não conseguia encarar a decisão. Nessa noite andei pela casa como louca, a tentar encarar o assunto. Eu não conseguia, Anne, ei achei que não conseguia, e quando chegou amanhã eu resolvi que não o ia fazer. Eu ia deixar as coisas como estavam. Eu fui muito má, eu sei. E seria justo se eu fosse castigada por essa maldade, se tivesse mantido essa decisão. Eu mantive-a todo o dia. Nessa tarde tive que ir ao Glen fazer umas compras. Foi um dia sossegado do Dick, e deixei-o sozinho. Eu fiquei fora um pouco mais do que tinha pensado, e ele sentiu-se sozinho. E quando voltei a casa correu para mim como uma criança com um sorriso feliz. E nessa altura cedi, Anne. Aquele sorriso naquela cara ausente foi mais do que eu podia suportar. Senti que estava a negar a uma criança a oportunidade de crescer e desenvolver-se. Sabia que lhe tinha que dar essa oportunidade, fosse o que fosse que viesse a acontecer. Por isso vim cá dizer ao Gilbert. Oh, Anne, não deves pensar mal de mim por ter desaparecido nessas semanas antes de ter ido para Montreal. Eu não tive intenção, mas eu não conseguia pensar em mais nada, e tudo e todos eram como sombras para mim. "
"Eu sei, eu compreendi, Leslie. E agora terminou tudo, a tua corrente quebrou-se e não há câmara de tortura."
"Não há câmara...," repetiu Leslie de forma vaga, agarrando a relva com as suas mãos morenas. "Mas não parece haver mais nada, Anne. Lembras-te,...o que te disse da minha loucura naquela noite na barra de areia? Descobri que não conseguimos deixar de ser loucos tão depressa.- Ás vezes acho que há pessoas que são loucos para sempre. E ser essa espécie de louco é quase pior do que ser um cão preso numa corrente."
"Tu vais-te sentir muito diferente depois de ter passado o cansaço e a estranheza," disse Anne, que sabendo uma certa coisa que Leslie não sabia, não se sentiu muito impelida a ter pena dela.
Leslie deitou a esplêndida cabeça dourada sobre o joelho de Anne.
"De qualquer forma, tenho-te a ti," disse. "A vida não pode ser completamente vazia com um amigo. Anne, faz-me festas na cabeça, como se eu fosse uma menina pequena, faz de conta que és minha mãe, e deixa-me dizer-te agora que tenho a lingua solta o que tem sido a tua amizade para mim desde aquela noite na costa rochosa."
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Anne e a Casa de Sonhos | Série Anne de Green Gables V (1917)
Novela JuvenilObra da canadense L. M. Montgomery.