O esplendor de cores que brilhara durante semanas nas costas do porto de Four Winds tinha-se dissolvido num suave azul dos últimos montes outonais. Vieram muito dias em que os campos e as costas estavam escurecidos por chuva miudinha, ou tremendo ante o resfolgar de melancólicas noites com ventos vindos do mar, e também de tempestades, quando Anne acordava ás vezes para rezar e pedir que nenhum barco viesse bater na severa costa norte, pois se assim fosse nem o grande e fiel farol rodando sem medo através da escuridão o poderia guiar até porto seguro.
"Em Novembro parece-me muitas vezes que a Primavera pode nunca vai voltar," suspirou, entristecida pela visão dos seus canteiros desolados, gelados e descompostos. O alegre pequeno jardim da noiva do mestre-escola era agora um sitio triste, e as bétulas e os álamos estavam fechadas em postes nus, como dizia o Capitão Jim. Mas o bosque de pinheiros por detrás da pequena casa estava sempre verde e forte, e mesmo em Novembro e Dezembro houve dias bonitos de sol e nevoeiros púrpura, quando o porto dançava e brilhava tão encandeante como no pino do Verão, e o golfo estava tão azul claro e suave que a tempestade e o vento selvagem pareciam coisas de um pesadelo distante. Anne e Gilbert passaram muitas noites de Outono no farol. Era sempre um lugar animado. Mesmo quando o vento de este cantava em dó menor, e o mar parecia morto e azul, raios de luz do sol habitavam à sua volta. Talvez fosse porque o First Mate andava sempre por lá, exibindo a sua panóplia de tons dourados. Ele era tão grande e vistoso que mal se dava pela falta do sol, e os seus ronrons ressonantes formavam um acompanhamento agradável ao riso e conversa que se passavam á volta da lareira do Capitão Jim. O Capitão Jim tinham muitas longas discussões e conversas elaboradas sobre assuntos para além da compreensão de gatos ou reis.
"Eu gosto de me debruçar sobre todos os tipos de problemas, mesmo quando não os posso resolver," disse o Capitão Jim. "O meu pai achava que nunca devíamos falar de coisas que não compreendíamos, mas se fosse assim, doutor, tínhamos muito poucos assuntos para conversar.
Parece-me que os deuses se riem bastantes vezes de nos ouvir, mas o que é que isso tem, enquanto nos lembrarmos que somos apenas homens e não começarmos a pensar que somos deuses também, conhecendo o bem e o mal. Parece-me que as nossas conversas não nos vão fazer muito mal, nem a nós nem a ninguém, por isso bem podemos cavaquear esta noite, doutor."
Enquanto eles cavaqueavam, Anne ouvia ou sonhava. Ás vezes, a Leslie ia ao farol com eles, e ela e Anne passeavam pela costa ao anoitecer, ou sentava-se nas rochas ao pé do farol até que a escuridão as levasse de volta á alegria do lume de chão. Então o Capitão Jim fazia-lhe um chá e contava-lhes "Contos da terra e do mar e do que mais possa ocultar O grande mundo esquecido lá fora"
A Leslie parecia sempre gostar muito daquelas reuniões no farol, e desabrochava com um riso encantador e respostas rápidas, ou para um silêncio de olhos brilhantes. Havia um certo tom e sabor na conversa quando a Leslie estava presente de que eles sentiam a falta quando ela não estava. Mesmo quando não falava, ela parecia inspirar os outros. O Capitão Jim contava melhor as suas histórias, o Gilbert argumentava melhor e Anne sentia pequenos surtos de fantasia e imaginação que se lhe assomavam aos lábios sobre a influência da personalidade de Leslie.
"Esta rapariga nasceu para sobressair em círculos sociais e intelectuais, longe de Four Winds," disse para Gilbert quando iam para casa certa noite. "Ela desperdiça-se aqui."
"Não ouviste o Capitão Jim e este teu criado noutra noite, quando discutíamos esse assunto? Chegámos á reconfortante conclusão que o Criador provavelmente sabe organizar as coisas tão bem como nós e que afinal não há vidas desperdiçadas, ou coisa que tal, a não ser quando um indivíduo deliberadamente desbarata e desperdiça a sua própria vida, o que não é certamente o caso da Leslie Moore. E algumas pessoas podem até achar que uma bacharel de Redmond, a quem os editores começam a dar crédito, é um desperdício como esposa de um médico da comunidade rural de Four Winds."
"Gilbert!"
"Mas se tu te tivesses casado com o Roy Gardner," continuou Gilbert sem piedade, "podias agora ser uma líder em círculos intelectuais e sociais, longe de Four Winds."
"Gilbert Blythe!"
"Tu sabes que estiveste apaixonada por ele a dada altura, Anne." "Gilbert, que maldade, que grande maldade, típico de um homem, como diz a Miss Cornélia. Eu nunca estive apaixonada por ele. Eu só imaginei que estava. Tu sabes isso. Tu sabes que eu prefiro ser a tua esposa na nossa casa de sonho do que uma rainha num palácio."
A resposta de Gilbert não foi dada em palavras, mas ambos se esqueceram da pobre Leslie que regressava a casa sozinha por entre os campos, para uma casa que não era nem um palácio nem a realização de um sonho.
A Lua erguia-se sobre o triste e escuro mar por detrás deles, e transfigurava-o. A luz dela ainda não chegava ao porto, e o lado mais afastado estava ensombrado e sugestivo, com reentrâncias escuras e ricos brilhos e luzes reluzentes.
"Como brilham hoje as luzes das casas!" disse Anne. Aquele círculo delas lá em baixo parece um colar. E que profusão lá em cima no Glen! Oh, olha Gilbert, ali está a nossa. Estou tão contente por termos deixado o lume aceso. Eu não gosto nada de voltar para uma casa escura e fria. A luz da nossa casa, Gilbert! Não é linda de se ver?"
"É só uma entre milhões de casas, miúda-Anne, mas é a nossa, a nossa luz 'num mundo cruel'. Quando um homem tem uma casa e uma querida mulher ruiva lá dentro, o que mais pode desejar na vida?"
"Bem, sempre pode ir desejando mais uma coisa," segredou Anne feliz. "Oh, Gilbert, parece que nem consigo esperar pela Primavera."
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Anne e a Casa de Sonhos | Série Anne de Green Gables V (1917)
Novela JuvenilObra da canadense L. M. Montgomery.