O Senhor dos Gatos

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Passar a noite acordado não foi uma das decisões mais inteligentes que tive. E já era de se esperar que eu fosse acordar bem tarde no dia seguinte, isso se o despertador do meu celular não houvesse tocado às dez e vinte da manhã. De início quase joguei o telefone na parede, e o teria feito se a sonolência não estivesse tão forte e se meu braço não tivesse doído ao virar-me na cama, irritado.

Era oficialmente o segundo dia das férias, que consequentemente caía exatamente no mesmo domingo em que Jazz sairia finalmente do veterinário. Digamos que eu tecnicamente não more sozinho. Jazz era meu gato siamês incrivelmente gordo, que tinha a função de ser um colega de apartamento bem preguiçoso e com um temperamento nem um pouco sociável e que, por incrível que pareça, detesta arranhar os móveis da casa. O que já é estranho.

Gatos tem esse lado destrutivo, que adora derrubar tudo que está em cima da mesa só para ter o prazer de vê-lo cair, ou de se pendurar na cortina da sala e rasga-la inteira. Porém, o máximo que Jazz fazia era arranhar minhas pernas (tenho várias cicatrizes) e espalhar pulgas por todos os cantos.

Me levantei e tomei um café da manhã apressado, se é que beber meia lata de energético (que por sinal estava guardado e esquecido no fundo da geladeira por seis meses) pode ser considerado café da manhã. Peguei as chaves e saí rumo ao veterinário, que ficava aberto mais ou menos até o meio-dia durante os domingos. O caminho até lá demorava cerca de trinta minutos sem nenhum contratempo, e como era quase onze horas, era melhor eu ir logo.

Estar fora do meu apartamento significava que eu ficava vulnerável para qualquer piadinha, olhares julgadores e comentários das outras pessoas ao meu redor. Parece que todos estão olhando para mim o tempo todo. Parece que eu nunca estou seguro e que ali não é o meu lugar. Baixei a cabeça e apertei o passo, tentando pensar em outra coisa.

Mas, pensar em quê?

- então quer dizer que existem milhares de outras estrelas além do Sol?- lembrei de Phukong, que ficou surpreso quando falei sobre a aula que tive no colégio.

- sim, tem milhões por aí! São tantas que nem dá para contar!- dei risada, vendo ele ficar de pé no meio do quarto que dividíamos, boquiaberto - o Sol não é a única estrela do universo. Legal né?

- isso é incrível!- Phukong sorriu, como se eu tivesse feito a maior descoberta do mundo - e um dia você me leva para vê-las?

- e como vou fazer isso?- perguntei, encarando meu irmão mais novo, que correu até uma das extremidades do cômodo, pegando seu capacete de astronauta, que nada mais era do que uma caixa de papelão cortada e pintada com tinta branca que ele mesmo havia feito.

- vamos em um foguete, juntos, quando você se tornar um astronauta - Phu colocou o capacete na minha cabeça, pulando em cima de mim e me dando um abraço apertado - vamos nós dois...

Eu amava essa lembrança.

Isso já faziam anos, e o meu desejo de explorar as estrelas havia ficado perdido em algum lugar no passado, assim como muitas outras coisas. Phu tinha crescido, eu mudei muito e meus pais... bem, eles nunca se importaram. As estrelas teriam que esperar um pouco.

Cheguei ao veterinário um pouco mais de cinco minutos adiantado, preenchi a papelada na recepção e uma das funcionárias trouxe Jazz, dentro de uma daquelas caixas de transporte feitas de plástico colorido. Fiquei aliviado por ele enfim estar bem o suficiente para voltar para casa, depois de três dias tratando uma inflamação no intestino que o tinha deixado bem debilitado. Mas agora tudo estava novamente bem.

O caminho que demorava meia hora passou para quarenta minutos, já que agora eu era obrigado a carregar um gato de quase oito quilos e que não parava de miar, irritado. Meu braço esquerdo coçava devido ao gesso, enquanto o direito ficava dormente por causa do peso que estava levando. E se eu quisesse chegar no apartamento antes de começar a maratona de O Senhor dos Anéis na tv, parar e descansar não era uma opção!

Missão cumprida! Cheguei em casa em tempo recorde, com os dois braços gritando de dor e a maratona ainda não havia começado. Perfeito!

Assim que abri a portinha da caixa, Jazz saiu correndo de lá de dentro e pulou em cima do sofá, derrubando algumas almofadas no processo, se deitou num canto e cochilou, de um jeito que lembrava uma bolinha de pelos. Fui até a cozinha, peguei um pacote de salgadinho (que seria o meu almoço) e me acomodei ao lado de Jazz, pronto para ficar as próximas horas assistindo televisão.

Ignorei as mensagens de Boss e Man no celular, não fui até a janela ver se Tine estava em casa, e nem ao menos me levantei para ir ao banheiro ou beber água. O tempo parecia correr muito mais depressa do que o normal, e assim que o filme O Retorno do Rei acabou, me dei conta que estava começando a anoitecer e que eu não tinha comido nada decente durante todo o dia.

Coloquei um prato com um restante de lasanha para esquentar no microondas, apertei o botão e no meio tempo em que a comida aquecia, fui até a janela da sala, me debrucei sobre ela e notei que a luz do quarto de Tine estava acesa.

- hey Tine!- gritei, com um sorriso no rosto.

- Wat!- ele apareceu, acenando para mim, e minha atenção logo se fixou na blusa rosa e azul claro que ele usava (cujo capuz tinha orelhas de coelho felpudas) - pensei que não estivesse em casa.

- não exatamente, só estava vendo uns filmes na tv, e tive que buscar meu gato no veterinário hoje mais cedo - respondi, indo rapidamente até o sofá e pegando Jazz no colo com um pouco de dificuldade por causa do gesso (e por ele pesar duas toneladas!) e o mostrei para Tine.

- que fofo!- Tine sorriu, se curvando com cuidado sobre a janela para poder vê-lo melhor.

- esse é o Jazz, meu colega de quarto!- fiz cafuné no pelo macio dele, sendo correspondido com mordidas e arranhões doloridos no pulso. Esse gato é uma máquina de destruição.

- espera um pouquinho - ele saiu apressado, voltando logo depois, agora com um pequeno coelho branco nos braços, e que olhava desconfiado para todos os lados - essa é a Biscoito, trouxe ela pra cá para me fazer companhia durante a mudança.

- calma aí, eu pensei que você morasse lá na Inglaterra - arqueei as sobrancelhas, vendo que Jazz tinha desistido de tentar fugir e estava quase dormindo no meu colo.

- dependendo de como as coisas vão ficar, não vou voltar para lá tão cedo - Tine comentou meio cabisbaixo, mas antes que eu pudesse perguntar o motivo, o som do microondas avisando que o jantar estava pronto me interrompeu.

- tenho que ir, estou morrendo de fome e não comi nada que preste hoje - dei uma risada tímida, e ele riu também.

- certo então - Tine sorriu, se despedindo - te vejo amanhã?




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