só sei que nada sei

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A sociedade não entende as coisas direito. A maioria das pessoas não entendem que não existe um padrão, e que os humanos não são fabricados todos com as mesmas configurações. Uma vez, li em um livro que as diferenças é o que nos fazem ser quem somos e, agora, entendo perfeitamente o que aquilo queria dizer.

Mas isso não quer dizer que eu ame todas as minhas singularidades. Aprender a amar a si próprio é uma jornada com altos e baixos, e que sinto que ainda não estou nem na metade do caminho. Já é de manhã, e tive uma noite de sono razoavelmente boa (exceto por Jazz, que ficou dormindo em cima das minhas costas, e acordei morrendo de dor). O reflexo no espelho me encarava com desprezo, e a expressão cansada se acrescentava.

Fui até a cozinha, andando descalço sobre o chão gelado, sendo seguido por Jazz, que provavelmente queria que sua ração fosse trocada. Peguei minha xícara favorita e enchi com suco de uva que estava na geladeira, procurei pelo pacote de ração nos armários, abri e coloquei um pouco no potinho, vendo Jazz comer quase a metade da ração em um piscar de olhos. Esse gato não é gordo à toa!

Olhei no display do meu celular, era quase onze e meia da manhã de terça-feira, ou talvez seja quarta, eu não sei! Quando entramos de férias, todos os dias parecem ser domingo. E tentar lembrar qual dia da semana é exige um esforço mental enorme.

Vou até a janela da sala, a abrindo e me curvando para frente, sentindo o vento soprar contra meus cabelos e o Sol brilhar forte. Tine com certeza já deve estar acordado (supondo que a janela de seu quarto está aberta, e que ele sempre levanta mais cedo do que eu). Penso sobre a conversa que tive com Man na noite anterior, e minha curiosidade desponta em meu peito ao pensar na possibilidade de descobrir o motivo de ele usar máscara.

— ei, Saturno!— grito o mais alto que consigo, sem me preocupar com os vizinhos ou se eles irão ou não reclamar com o síndico.

Espero alguns minutos, e ele ainda não aparece.

— Tineee!— grito outra vez, e consigo ouvir um dos vizinhos berrar cala boca seu maluco em resposta. Gente mais chata do que essa é impossível!

— pelo amor do Thor! O que foi?!— ele surge de repente, com a escova de dente e a boca cheia de espuma. Seguro uma risada ao ver a expressão sonolenta dele, que não está muito diferente da minha — espera um pouquinho…

Ele some outra vez. Nesse meio tempo, fico me entretendo com meu gesso, observando cada um dos desenhos feitos por Man e Bossa, e releio cada frase, cujo a maioria a tinta da canetinha começava a querer desbotar. Depois de um minuto, Tine volta, dessa vez sem a escova de dente e o cabelo já penteado, mas ainda assim consigo ver que tinha acabado de acordar.

— bom dia, dorminhoco!— dou um sorriso ladino, cruzando os braços e os apoiando no peitoril da janela — pelo visto cheguei numa hora boa!

— então, como foi a conversa lá com seu amigo?— ele arqueou as sobrancelhas, semicerrando os olhos em minha direção, curioso, e tento fazer a minha melhor careta inocente — e antes que pergunte como sei disso, eu te ouvi gritar com ele ontem a noite.

— como já dizia Sócrates, só sei que nada sei — o meu sorriso aumenta consideravelmente, e fico feliz em ter conseguido lembrar pelo menos um pouco da aula de filosofia (ou talvez de sociologia, sempre confundo as duas).

— nesse caso, quem foi que gritou em alto e bom som "Eu não vou transar com ele!" hein?!— Tine faz uma cara séria, como os agentes do FBI fazem quando interrogam um suspeito.

— isso aí já é assunto confidencial!— tento arrumar uma desculpa, apesar do meu cérebro ter entrado em modo de pânico — estávamos só falando sobre coisas da escola, nada demais.

— vou fingir que acredito nessa desculpa horrível mas, agora, só por curiosidade mesmo, essa tal conversa tem a ver com isso aí?— ele apontou para o meu braço engessado.

— está curioso, né?— pergunto sarcástico.

— óbvio que sim, além de que você nunca me contou direito sobre como se machucou — Tine  curvou a cabeça levemente para a direita, prendendo uma mecha de cabelo atrás da orelha.

— eu conto, mas só se me dizer o por que de usar aquela máscara, combinado?— pronto, enfim fiz a pergunta, e até que foi mais fácil do que imaginei que seria.

Ele para e pensa um pouco, mas então concorda.

— ok, combinado então. Vamos contar tudo juntos, tá? — Tine sorri, meio tímido.

— certo… é uma história longa, então vou tentar resumir o que eu puder. Digamos que não sou a pessoa mais amada do colégio, e conviver com as piadas dos outros sempre fez parte da rotina — falo sem saber como prosseguir, mas as palavras saem da minha boa sem esforço algum — o ensino médio é um inferno, e pode parecer que estou exagerando muito, mas não estou.

— você deve ter percebido que sou bem diferente, eu noto quando as pessoas me encaram na rua, apesar de parecer que não vi — Tine continua, e presto atenção a cada palavra — deixei de ir a escola aos meus quatorze ou quinze anos, e tentei manter contato com os poucos amigos que tinha.

Minha vez...

— as pessoas não olham para mim na rua, mas sinto que eu não devia estar ali, como se não me encaixasse em lugar nenhum — solto um suspiro profundo — pode parecer um acidente, mas meu braço foi quebrado de propósito

Tine me encara surpreso, mas retorna a falar.

— fui para a Inglaterra com meu pai e meu irmão logo depois, e nem de longe foi uma viagem incrível como a maioria pensa. Eu odiei todos os segundos que fiquei lá, aquele lugar era como uma prisão — ele murmura a última frase, porém ainda pude a escutar — cada ida ao hospital, cada exame e cada remédio receitado, parecia que não tinha fim.

— os garotos da minha sala fizeram isso, após eu revidar uma das piadas, fizeram parecer que foi um acidente e enganaram a direção do colégio. Não pude fazer nada, ninguém ia acreditar se dissesse que eles fizeram propositalmente — desabafo sem pensar duas vezes, como desejei fazer desde o ocorrido — doeu muito, tive que engolir a vontade de chorar e tentei fingir que estava tudo bem.

— eu nunca soube como era ter uma vida normal, ter vários amigos e simplesmente poder sair e ir para a escola. Aturar os comentários, os olhares e todas as perguntas a cada dia aos poucos me tornou mais forte — Tine fechou os olhos, e fiz o mesmo.

De olhos fechados, com todos os nossos problemas escancarados um para o outro, prontos para serem julgados e analisados, decidi não ter mais medo. Respirei fundo e, em sincronia, falamos juntos:

— eu sou homossexual...

— meu coração é defeituoso...

Te Vejo Amanhã?Onde histórias criam vida. Descubra agora