Encaramos um ao outro, pasmos.Minha cabeça demorou um pouco para raciocinar, e o silêncio logo se tornava cada vez mais tenso. Se abrir e desabafar sobre seus problemas para um quase total estranho tinha sido esquisito, porém a sensação de ter tirado um enorme peso das costas era ótima. Eu não era o único diferente. E isso meio que me deu certa tranquilidade.
Tine suspirou, apoiando as duas mãos no peitoral da janela e se inclinando para frente em um ângulo perigoso, debruçando quase que metade do corpo para fora. Passou a perna direita, ficando sentado no peitoril, e assim que conseguiu se equilibrar, passou a outra perna. Ele me encarou, sorrindo, sem se importar com o fato de estar a mais de cinco metros de altura e, consequentemente, perto de uma queda arriscada.
— que merda você está fazendo?!— bradei quase entrando em pânico, vendo ele analisar o espaço entre os dois prédios e calcular a distância. Eu então soube o que estava planejando.
— o que você acha?— Tine deu risada, olhando rapidamente para trás, confirmando que ninguém ia aparecer em seu quarto de repente — se afasta!
Obedeci, apesar do meu cérebro estar gritando que aquilo com certeza não ia acabar bem. Fui alguns passos para trás, dando espaço o suficiente para ele, mas de modo que eu ainda conseguisse o enxergar com clareza. Tine curvou o corpo, deu uma última olhada e endireitou os ombros, respirou fundo e pulou, impulsionando-se para frente e conseguindo agarrar com as mãos o peitoril da minha janela. Como se fosse a coisa mais fácil do mundo!
E num passe de mágica, tcharam! Ele estava no meu apartamento. Acho que eu devia ter dado uma arrumada na bagunça, apesar de não estar lá tão ruim assim. Latas de energético se misturavam com a pilha de pacotes de salgadinhos em cima da mesa de centro, almofadas cobertas de pelos do Jazz cobriam boa parte do sofá, e fazia um tempo que eu não tirava o pó dos móveis (deve ser por isso que vivo com alergia).
Tine observou cada canto atentamente, do mesmo jeito que eu havia feito ao entrar naquela loja no dia anterior. Jazz, para minha surpresa, saiu de seja lá onde estivesse e tratou de conhecer a nova visita, se esfregando entre as pernas de Tine, deixando um tufo de pelos (e pulgas) na calça dele. Parece que ele gostou do Tine. Para um gato antissocial como ele, isso é um milagre.
Sem saber exatamente o que fazer ou o que dizer, me sentei no tapete, cruzei as pernas e fiquei em silêncio. Tine também se sentou, de frente para mim e com Jazz disputando sua atenção, ronronando e querendo cafuné.
— seu apartamento é bem legal — ele comentou, mas acho que essa deve ser a frase que todo mundo fala para tentar parecer educado — com certeza é mil vezes mais organizado do que meu quarto!
— quando ver o restante dos cômodos, acho que vai mudar de ideia — dou risada, outra vez sentindo aquela coisa. Aquele formigamento no estômago e a tremedeira nas mãos — agora indo para a pergunta principal, como é que você conseguiu pular aquilo tudo?!
— eu costumava fazer parkour com meus amigos quando era mais novo — Tine respondeu, enquanto Jazz se ajeitava em seu colo e passava para sua trigésima soneca matutina.
— deve ser legal, o máximo que cheguei a fazer de esportes foi futebol e andar de skate, mas acabei largando o skate depois do meu pai ficar me enchendo o saco — dou de ombros, me lembrando brevemente daquela época.
— também tive que parar de praticar depois de… bem, você sabe — ele sorriu forçado.
— mas pelo que notei, não perdeu o jeito!— tento o animar, apesar de essa não ser a frase que o faria engasgar de dar risada, ousei tentar mesmo assim.
Ele me encarou, e então ficamos imersos naquele silêncio estranho, mas que era confortável e nem um pouco constrangedor. Pensar em maneiras para puxar assunto ocupou boa parte do meu cérebro, e todas as ideias que surgiam eram absurdamente péssimas, mas que seriam consideradas bastante normais caso estivesse conversando com Man e Boss.
E, de repente, uma ideia apareceu, e se eu fosse parte de um desenho animado, com certeza uma lâmpada acenderia no topo da minha cabeça. Fui rapidamente até meu quarto, procurando no meio da bagunça pela minha mochila, abrindo um de seus bolsos e tirando o estojo de dentro delas, peguei um punhado de canetinhas coloridas que estavam guardadas nele. Segurando em uma das mãos o maior número de canetas humanamente possível, caminhei de volta para a sala e as joguei sobre o tapete felpudo.
— certo, agora é sua vez de me surpreender?— Tine deu risada, pegando uma das canetinhas e me observando de soslaio conforme eu me sentava de pernas cruzadas ao lado dele.
— existe uma regra universal que diz que, se você está usando gesso, tem que deixar seus amigos o rabiscarem à vontade — falei, fazendo questão de dramatizar cada parte — então pensei que você ia querer deixar sua marca também…
Estendi meu braço engessado para ele desenhar.
— não tem medo que eu desenhe uma coisa bem imprópria nele?— Tine fez uma careta nem um pouco inocente, e tentei segurar o riso.
— eu confio em você — respondi sem pensar duas vezes, e foi o suficiente para que ele sorrisse e começasse a rabiscar.
Sem dúvidas Tine desenha mil vezes melhor do que meus amigos, e nesse curto período de tempo, ele coloriu meu gesso com estrelas, coelhos e um arco-íris bem caprichado, e que trazia a frase "amor é amor". Vez ou outra seus dedos roçavam nos meus por uma fração de segundo, ou nossos olhos se encontravam e um leve sorriso se formava em meu rosto.
Por fim, Tine desenhou um círculo um pouquinho torto, o pintando com diversos tons de vermelho e laranja. Para muitos era só um simples círculo colorido de vermelho, mas para mim tinha um significado especial. Era Marte.
Respirei fundo e peguei a mão dele, o assustando brevemente. Peguei uma canetinha azul escuro e encostei a ponta contra sua pele, sentindo minhas bochechas arderem e minha mente embaralhar a cada batimento acelerado que meu coração dava. Terminei o desenho, apesar de não ter ficado tão bom como planejei. Tomei coragem e o encarei, notando que ele olhava fixamente para a própria mão, com um sorriso tímido nos lábios.
— eu sou seu Marte — sussurro baixinho, para que apenas ele escutasse. O mundo que se dane!
— e eu sou seu Saturno...
VOCÊ ESTÁ LENDO
Te Vejo Amanhã?
RomanceAs férias de julho eram carregadas de expectativa e planos, e desde o começo do ano letivo, Sarawat contava cada segundo para poder se ver livre dos professores, das aulas chatas e, principalmente, bem longe das piadas maldosas dos colegas de classe...