Relação Entre Liberdade Econômica e Liberdade Política
Geralmente se acredita que política e economia constituem territórios separados,
apresentando pouquíssimas inter-relações; que a liberdade individual é um
problema político e o bem-estar material, um problema econômico; e que qualquer
tipo de organização política pode ser combinado com qualquer tipo de organização
econômica. A mais importante manifestação contemporânea desta idéia está
refletida no conceito de "socialismo democrático", quando então se condenam as
restrições à liberdade individual impostas pelo "socialismo totalitário" na
Rússia e se considera possível adotar as características essenciais da
organização econômica russa e, ao mesmo tempo, garantir a liberdade individual
por meio de determinada organização política. A tese deste capítulo é que um tal
ponto de vista é puramente ilusório; que existe uma relação íntima entre
economia e política; que somente determinadas combinações de organizações
econômicas e políticas são possíveis; e que, em particular, uma sociedade
socialista não pode também ser democrática, no sentido de garantir a liberdade
individual.
A organização econômica desempenha um papel duplo na promoção de uma sociedade
livre. De um lado. a liberdade econômica é parte da liberdade entendida em
sentido mais amplo e. portanto, um fim em si própria. Em segundo lugar, a
liberdade econômica é também um instrumento indispensável para a obtenção da
liberdade política.
O primeiro desses papéis da liberdade econômica merece ênfase especial porque os
intelectuais em geral têm um forte preconceito contra a consideração desse
aspecto como importante. Têm a tendência de mostrar desprezo por tudo o que diz
respeito ao aspecto material da vida e a considerar a sua própria busca de
supostos valores mais altos como se processando um plano diferente e merecendo
atenção especial. Para a maior parte dos cidadãos do país, entretanto, ou talvez
até mesmo para os intelectuais. a importância direta da liberdade econômica é
pelo menos comparável em
sua significação à importância indireta da liberdade econômica como instrumento
de obtenção da liberdade política.
Os cidadãos da Grã-Bretanha, que, após a Segunda Guerra Mundial, não tiveram
permissão de passar férias nos Estados Unidos devido ao controle do câmbio,
estavam sendo privados de uma liberdade essencial. O mesmo acontecia com os
cidadãos dos Estados Unidos a quem se negava o direito de passar férias na União
Soviética devido a seus pontos de vista políticos. A primeira era ostensivamente
uma limitação econômica da liberdade e ã segunda, uma limitação política, mas
não há diferença essencial entre as duas.
O cidadão dos Estados Unidos que é obrigado por lei a reservar cerca de dez por
cento de sua renda à compra de um determinado contrato de aposentadoria,
administrado pelo governo, está sendo privado de uma parte correspondente de sua
liberdade pessoal. Como essa privação pode ser poderosa e assemelhar-se à
privação de liberdade religiosa, que todos considerariam como "civil" ou
"política"
em vez de "econômica", está dramaticamente ilustrado num episódio que envolveu
um grupo de agricultores da seita Amish. Baseado em determinados princípios,
esse grupo considerou os programas federais compulsórios de aposentadoria uma
infração à sua liberdade individual e recusou-se a pagar as contribuições e a
re*ceber
os benefícios. Em conseqüência, parte de seu rebanho foi vendido em leilão a fim
de cobrir o pagamento das taxas de seguro social. É verdade que o número de
cidadãos que consideram o seguro compulsório para a velhice como um ataque à sua
liberdade pessoal deve ser pequeno, mas quem acredita em liberdade não se perde
nesse tipo de contas.
Um cidadão dos Estados Unidos que, em virtude de leis vigentes em diversos
estados, não tem a liberdade de dedicar-se à profissão que deseja, a não ser que
obtenha uma licença conveniente, está, do mesmo modo. privado de uma parte
essencial de sua liberdade. E o mesmo acontece com o homem que gostaria de
trocar parte de suas mercadorias com um suíço por, digamos, um relógio, mas não
pode fazê-lo devido à existência de uma cota. E o mesmo acontece com aquele
sujeito da Califórnia que foi mandado para a cadeia por vender Alka-Seltzer a um
preço inferior ao estabelecido pelo fabricante, sob as chamadas leis do "mercado livre". E o mesmo acontece com o fazendeiro que não pode cultivar a quantidade
de cereais que deseja. E evidente que a liberdade econômica, nela própria e por
si própria, é uma parte extremamente importante da liberdade total.
Vista como um meio para a obtenção da liberdade política, a organização
econômica é importante devido ao seu efeito na concentração ou dispersão do
poder. O tipo de organização econômica que promove direta-mente a liberdade
econômica, isto é, o capitalismo competitivo, também promove a liberdade
política porque separa o poder econômico do poder político e, desse modo,
permite que um controle o outro.
A evidência histórica fala de modo unânime da relação existente entre liberdade
política e mercado livre. Não conheço nenhum exemplo de uma sociedade que
apresentasse grande liberdade política e que também não tivesse usado algo
comparável com um mercado livre para organizar a maior parte da atividade
econômica.
Pelo fato de vivermos numa sociedade em grande parte livre, temos a tendência de
esquecer como é limitado o período de tempo e a parte do globo em que tenha
existido algo parecido com liberdade política: o estado típico da humanidade é a
tirania, a servidão e a miséria. O século XIX e o início do século XX no mundo
ocidental aparecem como exceções notáveis da linha geral de desenvolvimento
histórico. A liberdade política nesse caso sempre acompanhou o mercado livre e o
desenvolvimento de instituições capitalistas. O mesmo aconteceu com a liberdade
política na idade de ouro da Grécia e nos primeiros tempos da era romana.
A História somente sugere que o capitalismo é uma condição necessária para a
liberdade política, mas, evidentemente, não é uma condição suficiente. A Itália
fascista e a Espanha fascista, a Alemanha em diversas ocasiões nos últimos
setenta anos, o Japão antes da Primeira e da Segunda Guerra Mundial e a Rússia
czarista nas décadas anteriores à Primeira Guerra Mundial, constituem claramente
sociedades que não podem, de modo algum, ser consideradas como politicamente
livres. Entretanto, em cada uma delas, a empresa privada era a forma dominante
da organização econômica. É, portanto, claramente possível haver uma organização
econômica fundamentalmente capitalista e uma organização política que não seja
livre.
Mesmo nessas sociedades, os cidadãos tinham uma cota de liberdade maior que a
dos cidadãos dos modernos Estados totalitários como a Rússia ou a Alemanha
nazista, nos quais o totalitarismo econômico aparece combinado com o
totalitarismo político. Mesmo na Rússia czarista, era possível para alguns
cidadãos, sob determinadas circunstâncias, mudar de emprego sem ter que
solicitar permissão a uma autoridade política, porque o capitalismo e a
existência da propriedade privada permitiam algum controle sobre o poder
centralizado do Estado.
A relação entre liberdade política e econômica é complexa e de modo algum
unilateral. No início do século XIX, Bentham e os filósofos radicais estavam
inclinados a considerar a liberdade política como um instrumento para a obtenção
da liberdade econômica. Achavam que as massas estavam sendo massacradas pelas
restrições impostas e que se a reforma política concedesse o direito de voto à
maior parte do povo. este votaria no que fosse bom para ele - o que significava
votar no laissez-faire. Não se pode dizer que estivessem enganados. Houve um bom
volume de reformas políticas acompanhadas por reformas econômicas no sentido do
laissez-faire. ' Enorme desenvolvimento no bem-estar das massas seguiu esta
alteração na organização econômica.
O triunfo do liberalismo de Bentham no século XIX na Inglaterra foi seguido por
uma reação que levou a uma crescente intervenção do governei nos assuntos
econômicos. Essa tendência para o coletivismo foi grandemente acelerada, tanto
na Inglaterra como em outros lugares, pelas duas guerras mundiais. O bem-estar,
em vez da liberdade, tornou-se a nota dominante nos países democráticos.
Reconhecendo a ameaça implícita ao individualismo, os descendentes intelectuais
dos filósofos radicais - Dicey. Mises. Hayek e Simons, para mencionar somente
alguns - temeram que o movimento continuado em direção ao controle centralizado
da atividade econômica se constituiria no The Road to Serfdom, como Hayek
intitulou sua penetrante análise do processo. Sua ênfase foi colocada na
liberdade econômica como instrumento de obtenção da liberdade política.
Os acontecimentos posteriores à Segunda Guerra Mundial revelaram. ainda, uma
relação diferente entre a liberdade econômica e a política. O planejamento
econômico coletivista interferia de fato com a liberdade individual. Contudo, em
alguns países pelo menos, o resultado não foi a eliminação da liberdade
política,
mas o abandono da política econômica. Outra vez a Inglaterra deu o exemplo mais
notável. O ponto crítico foi sem dúvida o "controle das ocupações" que o Partido
Trabalhista achou necessário impor de modo a poder desenvolver sua política
econômica. Posta em vigência e realmente aplicada, a lei envolveria a
distribuição centralizada dos indivíduos para determinadas ocupações. Tal fato
entrava em conflito tão agudo com a liberdade pessoal que a lei só foi usada em
número pequeno de casos e depois revogada após curto período de vigência. A
revogação motivou mudanças amplas na política econômica, marcada por uma
diminuição de ênfase nos "planos" e "programas" centralizados, pela eliminação
de inúmeros controles e por uma importância crescente do mercado privado. Uma
alteração semelhante na política ocorreu em outros países democráticos.
A explicação mais simples para tais alterações na política reside no sucesso
limitado do planejamento central ou sua incapacidade de alcançar os objetivos
estabelecidos. Entretanto, esse fracasso pode ser atribuído, pelo menos em certa
medida, às implicações políticas do planejamento central e à inconveniência de
seguir sua lógica até o fim - uma vez que fazer isso levaria a destruir direitos
privados altamente valorizados. É possível também que essa mudança seja somente
uma interrupção temporária na tendência coletivista deste século. Mesmo assim,
ilustra a relação estreita existente entre liberdade política e organização
econômica.
A evidência histórica por si só nunca é completamente convincente. É possível
que a expansão da liberdade e o desenvolvimento do capitalismo e das
instituições mercantis tenham ocorrido juntos por mera coincidência. Por que
deveria existir uma relação em tal fato? Quais são as conexões lógicas entre
liberdade econômica e liberdade política? Ao discutir estas questões,
consideraremos, inicialmente, o mercado como um componente direto da liberdade e
depois a relação indireta entre organização do mercado e liberdade política.
Como produto secundário, teremos o esquema da organização econômica ideal para
uma sociedade livre.
Como liberais, consideramos a liberdade do indivíduo, ou talvez a família, como
o objetivo último no julgamento das organizações sociais. A liberdade como valor
nesse sentido está ligada às inter-relações de pessoas: não teria nenhum sentido
para um Robinson Crusoé numa ilha deserta (sem o Sexta-Feira). Robinson Crusoé.
em sua ilha. está submetido a "restrições", tem "poder" limitado e tem somente
um número limitado de alternativas - mas não tem problemas de liberdade no
sentido relevante para a nossa discussão. De modo semelhante, numa sociedade não
há nada i que dizer sobre o que um indivíduo faz com sua liberdade: não se trata
de uma ética geral. De fato. o objetivo mais importante dos liberais é deixar os
problemas éticos a cargo do próprio indivíduo. Os problemas "éticos", realmente
importantes, são os que um indivíduo enfrenta numa sociedade livre - o que deve
ele fazer com sua liberdade. Existem, portanto, dois conjuntos de valores que o
liberal enfatizará - os valores que são relevantes para as relações
interpessoais, que constituem o contexto em que estabelece prioridade à
liberdade; e os valores relevantes para o indivíduo no exercício de sua
liberdade, que constituem o território da filosofia e da ética individual.
O liberal concebe os homens como seres imperfeitos. Considera o problema da
organização social tanto um problema negativo de impedir pessoas "más" de
fazerem coisas más como o de permitir a pessoas "boas" fazerem coisas boas. E. é
óbvio, pessoas "boas" e "más" podem ser as mesmas pessoas, dependendo de quem as
julgar.
O problema básico da organização social consiste em descobrir como coordenar as
atividades econômicas de um grande número de pessoas, Mesmo em sociedades
relativamente atrasadas, são necessárias a divisão do trabalho e a
especialização de funções para fazer uso efetivo dos recursos disponíveis. Em
sociedades adiantadas, a necessidade de coordenação. para usar de maneira
totalmente conveniente as oportunidades oferecidas pela ciência e tecnologia
modernas, é muito maior. Literalmente, milhões de pessoas estão envolvidas em
fornecer diariamente um ao outro o pão necessário - além dos automóveis. O
desafio para o que acredita na liberdade consiste em conciliar essa ampla interdependência com a liberdade individual.
Fundamentalmente, só há dois meios de coordenar as atividades econômicas de
milhões. Um é a direção centra! utilizando a coerção - a técnica do Exército e
do Estado totalitário moderno O outr^ > a cooperação voluntária dos indivíduos -
a técnica do mercado
A possibilidade da coordenação, por meio de ação voluntária está baseada na
proposição elementar de que ambas as partes de uma transação econômica se
beneficiam dela, desde que a transação seja bilateralmente organizada e
voluntária.
A troca pode, portanto, tornar possível a coordenação sem a coerção. Um modelo
funcional de uma sociedade organizada sobre uma base de troca voluntária é a
economia livre da empresa privada - que denominamos, até aqui, de capitalismo
competitivo.
Em sua forma mais simples, tal sociedade consiste num certo número de famílias
independentes - por assim dizer, uma coleção de Robinson Crusoés. Cada família
usa os recursos que controla para produzir mercadorias e serviços, que são
trocados por bens e serviços produzidos por outras famílias, na base de termos
mutuamente convenientes para as duas partes. Cada família está, portanto, em
condições de satisfazer suas necessidades, indiretamente, produzindo bens e
serviços para outras, em vez de direta-mente - pela produção de bens para seu
uso imediato. O incentivo para a adoção desse caminho indireto é, sem dúvida, a
produção aumentada pela divisão do trabalho e pela especialização das funções.
Uma vez que a família tem sempre a alternativa de produzir diretamente para seu
consumo, não precisa participar de uma troca, a não ser que lhe seja
conveniente.
Portanto, nenhuma troca terá lugar a não ser que ambas as partes, realmente, se
beneficiem dela. A cooperação é, pois, obtida sem a coerção.,
A especialização de funções e a divisão do trabalho não se desenvolveriam tanto
se a unidade de produção fosse a família. Numa sociedade moderna, avançamos bem
mais. Existem organizações que funcionam como intermediárias entre indivíduos,
em sua capacidade de fornecedores de serviços e compradores de bens. De modo
semelhante, a especialização de funções e a divisão do trabalho não poderiam
desenvolver-se muito se tivéssemos que continuar contando com a troca de produto
por produto. Em conseqüência, o dinheiro foi introduzido como modo de facilitar
as trocas e permitir operações de compra e venda, separadas em duas partes.
A despeito do papel importante das empresas e do dinheiro na nossa economia
atual, e a despeito dos problemas numerosos e complexos que levantaram, a
característica central da técnica de mercado para obter a cooperação está
completamente representada na simples economia de troca, que não contém nem
empresas nem dinheiro. Tanto no modelo simples, quanto na economia mais complexa
com empresas e uso de dinheiro, a cooperação é estritamente individual e
voluntária, desde que: a) as empresas sejam privadas, de modo que as partes
contratantes sejam sempre, em última análise, indivíduos; b) os indivíduos
sejam,
efetivamente, livres para participar ou não de trocas específicas, de modo que
todas as transações possam ser realmente voluntárias.
É muito mais fácil estabelecer tais condições em termos gerais do que analisá-
las
em detalhes, ou especificar precisamente as organizações institucionais mais
capazes de nos levarem a elas. De fato, boa parte da literatura econômica
técnica está dedicada a essas questões. O requisito básico é a
manutenção da lei e da ordem para evitar a coerção física de um indivíduo por
outro e para reforçar contratos voluntariamente estabelecidos, dando assim base
ao conceito de "privado". Além deste, talvez o problema mais difícil seja o que
diz respeito ao monopólio - que inibe a liberdade efetiva retirando dos
indivíduos as alternativas com relação a uma determinada troca - e aos efeitos
laterais - e feitos em terceiros, pêlos quais não ë possível creditá-los ou
debitá-los. Esses problemas serão discutidos mais detalhadamente no próximo
capítulo.
Enquanto a liberdade efetiva de troca for mantida, a característica central da organização de mercado da atividade econômica é a de impedir que uma pessoa
interfira com a outra no que diz respeito à maior parte de suas atividades. O
consumidor é protegido da coerção do vendedor devido à presença de outros
vendedores com quem pode negociar. O vendedor é protegido da coerção do
consumidor devido à existência de outros consumidores a quem pode vender. O
empregado é protegido da coerção do empregador devido aos outros empregadores
para quem pode trabalhar, e assim por diante. E o mercado faz isto,
impessoalmente, e sem nenhuma autoridade centralizada.
De fato, uma objeção importante levantada contra a economia livre consiste
precisamente no fato de que ela desempenha essa tarefa muito bem. Ela dá às
pessoas o que elas querem e não o que um grupo particular acha que devem querer.
Subjacente à maior parte dos argumentos contra o mercado livre está a ausência
da crença na liberdade como tal.
A existência de um mercado livre não elimina, evidentemente, a necessidade de um
governo. Ao contrário, um governo é essencial para a determinação das "regras do
jogo" e um árbitro para interpretar e pôr em vigor as regras estabelecidas. O
que o mercado faz é reduzir sensivelmente o número de questões que devem ser
decididas por meios políticos - e, por isso, minimizar a extensão em que o
governo tem que participar diretamente do jogo. O aspecto característico da ação
política é o de exigir ou reforçar uma conformidade substancial. A grande
vantagem do mercado, de outro lado, é a de permitir uma grande diversidade,
significando, em termos políticos, um sistema de representação proporcional.
Cada homem pode votar pela cor da gravata que deseja e a obtém; ele não precisa
ver que cor a maioria deseja e então, se fizer parte da minoria, submeter-se.
É a essa característica que nos referimos quando dissemos que o mercado garante
liberdade econômica. Mas tal característica também tem implicações que vão além
das estritamente econômicas. Liberdade política significa ausência de coerção
sobre um homem por parte de seus semelhantes. A ameaça fundamental à liberdade
consiste no poder de coagir, esteja ele nas mãos de um monarca, de um ditador,
de uma oligarquia ou de uma maioria momentânea. A preservação da liberdade
requer a maior eliminação possível de tal concentração de poder e a dispersão e
distribuição de todo o poder que não puder ser eliminado - um sistema de
controle e equilí-
24 brio. Removendo a organização da atividade econômica do controle da
autoridade política, o mercado elimina essa fonte de poder coercitivo. Permite,
assim, que a força econômica se constitua num controle do poder político, então
num reforço.
O poder econômico pode ser amplamente dispersado. Não há leis de conservação que
forcem o crescimento de novos centros de poder econômico às custas dos centros
já existentes. O poder político, de outro lado. é mais difícil de
descentralizar.
Podem existir numerosos pequenos governos independentes. Mas é muito mais
difícil manter numerosos pequenos centros eqüipotentes de poder político, num só
grande governo, do que ter numerosos centros de poder econômico numa única
grande economia. Podem existir inúmeros milionários numa grande economia. Mas
pode haver mais do que um líder, realmente importante, uma pessoa em quem as
energias e entusiasmos de seus concidadãos se tenham concentrado? Se o governo
central ganhar poder, será provavelmente às custas dos governos locais. Parece
haver algo parecido com um total fixo de poder político a ser distribuído. Em
conseqüência, se o poder econômico é adicionado ao poder político, a
concentração se torna praticamente inevitável. De outro lado, se o poder
econômico for mantido separado do poder político t, portanto, em outras mãos,
ele poderá servir como controle e defesa contra o poder político.
A força desse argumento abstrato pode talvez ser mais bem demonstrada com um
exemplo. Consideremos primeiramente um exemplo hipotético que poderá ajudar a
esclarecer os princípios envolvidos, e em seguida examinaremos exemplos
concretos da experiência recente que ilustram o modo como o mercado trabalha
para preservar a liberdade política.
Uma das características de uma sociedade livre é certamente a liberdade dos
indivíduos de desejar e propor abertamente uma mudança radical na estrutura da
sociedade - desde que tal empresa se adstrinja à persuasão e não inclua a força
ou outra forma de coerção. Constitui uma indicação da liberdade política de uma sociedade capitalista que seus membros possam abertamente propor e trabalhar
pelo socialismo. Do mesmo modo. a liberdade política numa sociedade socialista
exige que seus membros possam propor a introdução do capitalismo. Como poderia a
liberdade de propor o capitalismo ser preservada e protegida numa sociedade
socialista?
Para que os homens possam propor qualquer coisa, é preciso, em primeiro lugar,
que estejam em condições de ganhar a vida. Isto já levanta um problema numa
sociedade socialista, pois todos os empregos estão sob o controle direto das
autoridades políticas. Seria necessário, no caso. uma grande dose de abnegação -
cuja dificuldade já foi sentida nos Estados Unidos, após a Segunda Guerra
Mundial, com o problema de "segurança" com relação aos funcionários federais -
para que um governo socialista permita que seus empregados proponham políticas
diretamente contrárias â doutrina oficial.
Mas suponhamos que tal atitude abnegada seja realmente adotada. Para que a
proposição da causa do capitalismo possa ter algum significado, os proponentes
devem estar em condições de financiar essa causa - organizar comícios públicos,
publicar panfletos, usar o rádio, editar jornais e revistas, e assim por diante.
Como poderiam eles levantar tais fundos? Pode ser que existam - e muito
provavelmente existem - alguns homens na sociedade socialista com grandes
rendas,
talvez mesmo somas de capital consideráveis sob a forma de bônus governamentais,
mas teriam que ser necessariamente funcionários públicos de alto nível. É
possível imaginar um funcionário público socialista de nível baixo propondo o
capitalismo e, ao mesmo tempo, sendo capaz de manter seu emprego. Mas é bastante
difícil imaginar um alto funcionário socialista financiando tais atividades
"subversivas".
A única maneira de obter fundos seria levantá-los por meio de pequenas doações
de funcionários de categorias mais baixas. Não se trata, porém, de uma solução
verdadeira. Para obter essas contribuições, seria necessário que já existisse
bom número de pessoas convencidas - e o problema consiste, no caso, em descobrir
como iniciar e financiar uma campanha para obter adeptos. Os movimentos radicais
nas sociedades capitalistas nunca foram financiados desse modo. Foram
basicamente apoiados por alguns poucos indivíduos ricos que se tornaram adeptos
de tais idéias - Frederick Vanderbilt Field ou Anita McCormick Blaine ou Corliss
Lamont, para citar alguns nomes mais recentes, ou Friedrich Engels, voltando
mais atrás. Trata-se aqui do papel da desigualdade econômica na preservação da
liberdade política, que é raramente percebido - o papel do senhor.
Numa sociedade capitalista, é necessário convencer apenas algumas poucas pessoas
ricas a obter fundos para o lançamento de uma ideia por mais estranha que seja.
e há inúmeras pessoas desse tipo, inúmeras fontes independentes de apoio. E, de
fato, não é nem mesmo necessário persuadir pessoas ou instituições financeiras
com fundos disponíveis da validade das idéias a serem propagadas. Bastará
persuadi-los de que a propagação será financeiramente conveniente, que o jornal,
a revista, o livro ou outro qualquer empreendimento será lucrativo. O editor
competitivo, por exemplo, não se pode permitir publicar apenas obras com que
concorda pessoalmente, pois a garantia de sua empresa é a de que o mercado seja
bastante amplo para fornecer-lhe um retorno satisfatório sobre o investimento.
Desse modo. o mercado rompe o círculo vicioso e torna finalmente possível
financiar tais empreendimentos por meio de pequenas contribuições de muitas
pessoas sem ter que persuadi-las primeiro.Não existe tal possibilidade na
sociedade socialista; existe somente o Estado todo-poderoso.
Vamos dar asas à imaginação e supor que um governo socialista esteja cônscio
desse problema e seja formado por pessoas desejosas de preservar a liberdade.
Poderia ele fornecer os fundos? Talvez, mas é difícil imaginar
26 como. Poderia estabelecer uma agência para subvencionar propaganda
subversiva.
Mas como poderia ele escolher a quem financiar? Se fornecer fundos a todos os
que os solicitarem, ficará em pouco tempo sem nenhuma verba, pois o socialismo
não poderá eliminar a lei econômica elementar de que um preço suficientemente
alto tem como resultado um fornecimento amplo. Basta tornar a proposição de
causas radicais suficientemente remunerativa, e a oferta de defensores se
tornará ilimitada. De outro lado, a liberdade de propor causas impopulares não exige que tal
proposição se dê sem nenhum custo. Muito pelo contrário, nenhuma sociedade
poderá permanecer estável se a proposição de mudanças radicais for isenta de
custos, muito menos se subsidiada. É perfeitamente válido que os homens façam
sacrifícios para propor causas nas quais acreditam fervorosamente. De fato, é
importante preservar a liberdade somente para as pessoas dispostas a praticar a
abnegação, pois, de outra forma, a liberdade degenera em licenciosidade e
irresponsabilidade. O essencial é que o custo de propor causas impopulares seja
tolerável e não proibitivo.
Mas ainda não chegamos ao ponto. Numa sociedade de mercado livre, é suficiente
ter fundos. Os fornecedores de papel estão dispostos a fornecer material tanto
ao Daily Worker quanto ao Wall Street Journal, ^uma sociedade socialista, não
seria suficiente ter os fundos. O hipotético partidário do capitalismo teria que
persuadir uma fábrica de papel do governo a vender-lhe o material; uma editora
do governo a imprimir para ele; o serviço de correios do governo a distribuir
seus panfletos; uma agência do governo a lhe alugar uma sala para reuniões e
conferências.
Talvez haja algum meio de resolver todos esses problemas e preservar a liberdade
numa sociedade socialista. Não se pode, evidentemente, dizer que é inteiramente
impossível. Fica claro, entretanto, que existem dificuldades reais para o
estabelecimento de instituições, que possam efetivamente preservar a
possibilidade de dissentir. Até onde estou informado, nenhuma das pessoas
partidárias do socialismo e também partidárias da liberdade enfrentaram tal
questão ou tentaram dar um primeiro passo para o desenvolvimento da organização
de instituições que permitam a existência da liberdade, sob o regime socialista.
Ao contrário disso, fica bem claro como uma sociedade capitalista de mercado
livre preserva a liberdade.
Um exemplo prático notável desses princípios abstratos pode ser encontrado na
experiência de Winston Churchill. De 1933 até às vésperas da Segunda Guerra
Mundial, não se permitiu a Churchill falar na rádio inglesa. que era um
monopólio do governo administrado pela British Broadcasting Corporation (BBC).
Tratava-se de importante cidadão do país, membro do parlamento, antigo ministro
do gabinete, um homem que estava, desesperadamente, tentando de todos os modos
possíveis persuadir seus concidadãos j tomar providências a respeito da ameaça
representada pela Alemanha de Hitler. Não lhe era permitido falar pelo rádio ao
povo inglês, porque a BBC >ra monopólio do governo e sua posição era muito
"controvertida".
Outro exemplo notável, relatado no número de 26 de janeiro de 191 do Time,
refere-se ao problema da lista negra de Hollywood. Relata o Time:
"A noite de entrega do Oscar é o grande momento de Hollywood; mas. dois anos, o
ritual sofreu um grande golpe. Quando foi anunciado o nome de Robert Rich como o
responsável pelo roteiro de The Bmve One, ninguém levantou para encaminhar-se
para o palco. Robert Rich era um pseudônimo que servia como máscara para um dos
150 escritores colocados pela indústria na lista negra desde 1947, como
suspeitos de serem comunistas ou simpatizantes do comunismo. O caso foi
particularmente embaraçante porque a Academia de Cinema havia barrado da
competição do Oscar todos os comunistas e todos os que invocaram a 5.a Emenda.
Na semana passada tanto a instrução para comunistas quanto o mistério da
identidade de Rich foram súbita mente prescritos.
"Revelou-se que Rich não era outro senão Dalton (Johnny Cot His Gun Trumbo, um
dos 'Dez de Hollywood', grupo de escritores que recusou testemunhar nas
audiências de 1947 sobre comunismo na indústria cinematográfica. Disse o
produtor Frank King, que insistira em afirmar que Robert Rich era um 'rapaz da
Espanha barbudo': Temos a obrigação diante de nossos acionis-tas de comprar o
melhor roteiro que pudermos. Trumbo nos trouxe The Bm-ve One e nós o
compramos...'
"Foi, com efeito, o fim formal da lista negra em Hollywood. Para os escritores
barrados, o fim informal já tinha vindo há muito tempo. Pelo menos 15% dos
atuais filmes de Hollywood são escritos por membros da lista negra. Disse o
produtor King: 'Há mais fantasmas em Hollywood do que em Forest Lawn. Todas as
companhias da cidade usaram o trabalho de pessoas da lista negra. Somos, simplesmente, os primeiros a confirmar o que todos sabem ".
Uma pessoa pode acreditar, como eu acredito, que o comunismo destruirá todas as
nossas liberdades; uma pessoa pode opor-se a ele tão firmemente quanto possível
e, no entanto, ao mesmo tempo, também acreditar que numa sociedade livre é
intolerável que um homem seja impedido de dizer e fazer acordos voluntários com
outros, acordos esses mutuamente atraentes, porque acredita no comunismo, ou
está tratando de promovê-lo. Sua liberdade inclui sua liberdade de tentar
promover o comunismo. E a liberdade também inclui, é claro, a liberdade de
outros de não negociarem tais circunstâncias. A lista negra de Hollywood foi um
ato contra a liberdade porque foi um acordo conspiratório que usou meios
coercitivos para impedir trocas voluntárias. Não funcionou, justamente porque o
mercado tornou caro demais para as pessoas preservarem a lista negra. A ênfase
comercial, o fato de que as pessoas que dirigem empresas têm um incentivo para
ganhar tanto dinheiro quanto possível, protegeu a liberdade dos indivíduos da
lista negra, fornecendo-lhes uma forma alternativa de emprego e dando às pessoas
um incentivo para empregá-las.
Se Hollywood e a indústria cinematográfica fossem empresas estatais ou se na
Inglaterra se tratasse de emprego na British Broadcastina Cnmr>ra.
28 tion, é difícil crer que os Dez de Hollywood ou seus equivalentes tivessem
encontrado emprego. Da mesma forma, é difícil crer que, naquelas circunstâncias,
proponentes poderosos do individualismo e da empresa privada - ou mesmo
proponentes poderosos de qualquer ponto de vista contrário ao status quo -
pudessem encontrar emprego.
Outro exemplo do papel do mercado na preservação da liberdade política foi
revelado em nossas experiências com o McCarthismo. Pondo inteiramente de lado as
questões substantivas envolvidas e os méritos das acusações levantadas, que
proteção têm os indivíduos e, especialmente, os funcionários do governo contra
acusações irresponsáveis ou interrogatórios sobre assuntos que não podem revelar
por uma questão de consciência? Eles invocam a 5.a Emenda; mas tal invocação
seria uma trágica zombaria se não tivessem uma alternativa para o emprego do
governo.
Sua proteção fundamental consistia na existência de uma economia privada de
mercado na qual podiam ganhar a vida. Também neste caso, a proteção não é
absoluta. Inúmeros empregadores em potencial podem, certa ou erradamente, não
desejar contratar os perseguidos. E possível que haja um número de
justificativas para os custos impostos a muitas das pessoas envolvidas do que
para os custos, geralmente impostos, aos que propõem causas impopulares. Mas o
ponto importante é que os custos eram limitados e não proibitivos - como teriam
sido se o emprego estatal fosse o único à disposição.
É interessante notar que um contingente extremamente grande das pessoas
envolvidas passou, aparentemente, para os setores mais competitivos da economia
- comércio, agricultura, empresas de porte médio - onde se realiza mais de perto
o ideal de mercado livre. Ninguém que compra pão sabe se o trigo usado foi
cultivado por um comunista ou um republicano, por um constitucionalista ou um
fascista ou, ainda, por um negro ou por um branco. Tal fato ilustra como um
mercado impessoal separa as atividades econômicas dos pontos de vista políticos
e protege os homens contra a discriminação com relação a suas atividades
econômicas por motivos irrelevantes para a sua produtividade - quer estes
motivos estejam associados às suas opiniões ou à cor da pele.
Como sugere esse exemplo, os grupos de nossa sociedade que têm mais razões para
preservar e fortalecer o capitalismo competitivo são os minoritários - que podem
mais facilmente tornar o objeto de desconfiança e hostilidade da maioria: os
negros, os judeus, os estrangeiros, para mencionar somente os mais óbvios.
Entretanto, e paradoxalmente, os inimigos do mercado livre - os socialistas e os
comunistas - foram recrutados numa proporção bem grande nesses próprios grupos.
Em vez de reconhecer que a existência do mercado os protegeu das atitudes de
seus compatriotas, eles erradamente atribuem a discriminação ao mercado.
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Capitalismo e Liberdade - Milton Friedman
Non-Fiction"Este livro é de grande atualidade, em especial na América Latina. Sua ideia central é a de que o mesmo Estado que constrange a liberdade econômica termina por também tolher a liberdade individual. É o que todos nós vivenciamos no cotidiano da Améri...