CAPÍTULO 10

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Distribuição da Renda

Um elemento central no desenvolvimento de sentimentos coletivis-tas neste
século,
pelo menos nos países ocidentais, tem sido a crença na igualdade de renda como
objetivo social e a disposição de usar o braço do Estado para promovê-la. Duas
perguntas diferentes devem ser feitas na avaliação desse sentimento igualitário
e das medidas igualitárias que produziu. A primeira é normativa e ética: qual é
a justificativa para a intervenção do Estado visando a promover a igualdade? A
segunda é positiva e científica: qual tem sido o resultado das medidas até então
tomadas?
Ética da distribuição
O princípio ético que justificaria diretamente a distribuição da renda numa
sociedade de mercado livre seria "a cada um de acordo com o que ele e seus
instrumentos de trabalho produzem". Mesmo a operação deste princípio exigiria a
intervenção do Estado. Os direitos de propriedade são questões de lei e de
convenções sociais. Como já vimos, sua definição e reforço constituem uma das
funções primárias do Estado. A distribuição final da renda e da riqueza sob a
operação completa desse princípio pode vir a depender amplamente das regras de
propriedade adotadas.
Qual é a relação entre esse princípio e outro que parece eticamente atraente, a
igualdade de tratamento? Em parte, os dois princípios não são contraditórios.
Pagamento de acordo com a produção pode ser necessário Para a obtenção da
verdadeira igualdade de tratamento. Se tomarmos indivíduos que possamos
considerar como iguais em capacidade e recursos iniciais, veremos que alguns
deles têm grande predileção por lazer e outros Por mercadorias negociáveis;
donde a desigualdade do retorno através do roercado é necessária para se
alcançar as igualdades do retorno total ou de tratamento. Um homem pode preferir
um emprego rotineiro que lhe deixe
bastante tempo livre para espairecer ao sol, e um outro preferir um emprego de maior responsabilidade com salário mais alto. Se os dois recebessem a mesma
quantia em dinheiro no fim do mês, suas rendas, num sentido mais fundamental,
seriam desiguais. De modo semelhante, tratamento igualitário exige que um
indivíduo receba pagamento maior por um trabalho desagradável ou pouco atraente
do que por um trabalho agradável e gratifi-cante. Uma boa parte da desigualdade
observada é desse tipo. Diferenças no volume de renda obtido contrabalançam as
diferenças em outras características da profissão ou do negócio. No jargão dos
economistas, elas constituem as "diferenças reguladoras" necessárias a tornar o
total das "vantagens líquidas", pecuniárias e não pecuniárias, exatamente igual.
Outro tipo de desigualdade que surge das operações do mercado é também
necessário - num sentido, de algum modo, mais sutil - a fim de produzir a
igualdade de tratamento ou, colocando a coisa de modo diferente, para satisfazer
as preferências dos indivíduos. O ponto pode ser ilustrado de maneira clara com
o exemplo da loteria. Considerem um grupo de indivíduos inicialmente nas mesmas
condições e que concordam voluntariamente em participar de uma loteria com
prémios muito desiguais. A desigualdade de renda resultante é evidentemente
necessária para permitir aos indivíduos em questão utilizar ao máximo sua
igualdade inicial. A redistri-buição da renda após o fato é o mesmo que negar-
lhes
a oportunidade de participar da loteria. Este caso é muito mais importante na
prática do que pode parecer usando-se o recurso do exemplo da loteria
literalmente. Os indivíduos escolhem profissões, ramos de negócio etc., em parte
de acordo com seus gostos com relação à incerteza. A moça que tenta tornar-se
uma atriz de cinema - e não uma funcionária pública - está deliberadamente
escolhendo participar de uma loteria, e o mesmo está fazendo o indivíduo que
investe em determinadas ações em vez de investir em títulos do governo. O seguro
é um modo de expressar o gosto pela certeza. Mesmo estes exemplos não indicam de
modo completo a extensão em que a desigualdade atual pode ser o resultado de
arranjos destinados a satisfazer as preferências ou os gostos dos indivíduos. Os
procedimentos de admissão e pagamento das pessoas são afetados por tais
preferências. Se todas as atrizes de cinema em potencial tivessem o mesmo gosto
reduzido pela incerteza, criar-se-ia uma tendência para a organização de
"cooperativas"
de atrizes de cinema; os membros de tais cooperativas concordariam
antecipadamente em redistribuir a renda total em termos de igualdade, obtendo
com isso uma garantia de segurança através da criação de fundos comuns de
riscos.
Se tal preferência se difundisse, grandes corporações diversificadas, combinando
empreendimentos arriscados e não arriscados, tornar-se-iam a regra geral. O
explorador do petróleo solitário, o proprietário privado, a pequena sociedade
passariam a ser casos raros.
De fato, esta é uma forma de interpretar as medidas governamentais para a
redistribuição da renda através do aumento progressivo das porcen-
tagens nos impostos bem como outros procedimentos. Pode-se também argumentar
que,
por uma razão ou outra, os custos de administração talvez, o mercado não pede
produzir o tipo ou a variedade de Io terias desejados pêlos membros da
comunidade e que o aumento progressivo dos impostos constitui a maneira de o
governo resolver o problema. Não duvido de que tais argumentos encerrem um
elemento de verdade. Ao mesmo tempo, não podem de modo algum justificar os
impostos atuais - quanto menos pelo fato de as taxas serem impostas depois de se
saber quem ganhou os prémios e quem ficou com um bilhete em branco na loteria da
vida. E tais porcentagens são votadas em grande maioria pêlos que acham que
ficaram com um bilhete en branco. Na base deste raciocínio, pode-se justificar
que uma geração vote o esquema de impostos a ser aplicado a uma geração que
ainda não nasceu. Suponho que qualquer procedimento desse tipo manteria os
esquemas do imposto de renda muito mais baixos que os atuais, ao menos no papel.
Embora boa parte da desigualdade de rendas produzida pelo pagamento em função do
produto reflita as "diferenças reguladoras" ou a satisfação dos diferentes
gostos dos indivíduos com relação à incerteza, uma outra reflete diferenças
iniciais nas condições, quer da capacidade humana quer da propriedade. Esta é a
parte que levanta a questão ética realmente
difícil.
Declara-se, em geral, ser necessário distinguir entre a desigualdade em termos
de dotação pessoal e em termos de propriedade, e entre desigualdades que se
originam de riqueza adquirida. A desigualdade resultante de diferenças nas
capacidades pessoais ou as originadas da riqueza acumulada pelo indivíduo em
questão são consideradas apropriadas ou, pelo menos, não tão impróprias como as
diferenças resultantes da riqueza herdada.
Essa distinção é insustentável. Há justificativa ética mais bem fundamentada
para os altos retornos obtidos por um indivíduo que herdou de seus pais certo
tipo de voz, pela qual há grande demanda, do que para os altos retornos obtidos
por um indivíduo que herdou propriedade? Os filhos de um comissário russo têm
certamente maior expectativa de renda - talvez também de liquidação - que o
filho do camponês. Será este fato mais ou menos justificável do que a
expectativa de renda maior do filho de um milionário americano? Podemos examinar
essa mesma questão de um outro ângulo. Um pai que possua riqueza e queira deixá-
la
para seu filho pode fazê-lo de diversos modos. Pode usar uma certa quantidade do
dinheiro para financiar o treinamento de seu filho na profissão de. digamos,
contador; ou estabelecê-lo num dado ramo de negócios: ou organizar um fundo que
lhe forneça certa renda. Em qualquer desses casos, o filho terá renda maior do
que teria em outras circunstâncias. Mas. no primeiro caso. sua renda será
considerada como resultado de sua capacidade individual: no segundo, como vinda
de lucros: no terceiro, como tendo tido origem em ri-QUeza herdada. Há alguma
base sólida para a distinção entre essas três ca-
tegorias de rendas em termos éticos? Finalmente, parece ilógico dizer que um
homem tem direito ao que adquiriu com suas capacidades naturais ou ao produto da
riqueza que acumulou, mas não tem direito de legar coisa alguma a seus filhos.
Isso significa dizer que um homem tem direito de dissipar sua fortuna, mas não
pode dá-la a seus filhos. Evidentemente, o último caso é um modo de usar o que
produziu.
O fato de não serem válidos esses argumentos contra a chamada ética capitalista
não significa, necessariamente, que a ética capitalista seja aceitável. É
difícil para mim justificar tanto a sua aceitação quanto a sua rejeição ou
justificar qualquer princípio alternativo. Prefiro adotar o ponto de vista de
que não pode, em si próprio ou por si próprio, ser considerado um princípio
ético e que deve ser considerado como instrumento ou corolário de outro
princípio como, por exemplo, a liberdade.
Alguns exemplos hipotéticos podem ilustrar a dificuldade fundamental. Suponhamos
que existam quatro Robinson Crusoé abrigados em quatro ilhas diferentes,
próximas umas das outras. Um teve sorte de chegar a uma ilha grande e fértil,
que lhe permite viver bem com facilidade. Os outros chegaram a ilhas pequenas e
áridas, nas quais só conseguem sobreviver com dificuldade. Um dia, tomam
conhecimento da existência uns dos outros. Naturalmente, seria muita
generosidade da parte do Robinson da ilha grande convidar os outros a se mudarem
para lá e compartilharem de sua riqueza. Mas suponhamos que não o faça. Estariam
os outros três justificados se se reunissem e o obrigassem a compartilhar suas
riquezas com eles? Inúmeros leitores se sentiriam tentados a responder que sim.
Mas, antes de sucumbir a essa tentação, considerem precisamente a mesma situação
sob um aspecto diferente. Suponhamos que você, leitor, e mais três amigos estão
passeando por uma rua e você percebe uma nota de 20 dólares no chão e a recolhe.
Seria muita generosidade sua, de fato, se resolvesse dividi-la com seus três
amigos em partes iguais ou, pelo menos, se os convidasse para um drinque. Mas
suponhamos que não o faça. Estariam os outros três justificados se se reunissem
e o forçassem a compatilhar de sua nota com eles? Tenho a impressão de que
muitos leitores responderiam que não. E, se continuarem a meditar sobre o
assunto, chegarão talvez à conclusão de que o comportamento generoso não é, como
tal, claramente o "cor-reto". Será que estaríamos dispostos a exigir de nós
próprios e de nossos concidadãos a aceitação de uma regra como a seguinte -
todas as pessoas cuja renda excedesse à média de todas as demais no mundo
deveriam imediatamente dispor do excesso, por meio da distribuição, em partes
iguais. por todos os habitantes do mundo? Podemos admirar e elogiar tal
comportamento quando adotado por alguns poucos. Mas um potlatch1 universal
tornaria impossível um mundo civilizado.
1 Grande festa dos índios americanos, com farta distribuição de presentes. (N.
do E. De qualquer forma, dois erros não fazem um acerto. A recusa do Robinson rico ou
do feliz achador da nota de 20 dólares de compartilhar sua riqueza não justifica
o uso da coerção pêlos outros. Estaríamos justificados se nos arvorássemos em
juizes em nossos próprios casos, decidindo, por conta própria, quando temos o
direito de usar a força para tirar dos outros o que achamos que devemos ter? ou
o que achamos que os outros não devem ter? A maior parte das diferenças de
status ou posição ou riqueza raramente pode ser considerada como resultado da
sorte. O homem trabalhador e econômico é qualificado de "merecedor", entretanto
ele deve suas qualidades em grande parte aos genes que teve a felicidade (ou
infelicidade) de herdar.
A despeito de tudo o que dizemos sobre "mérito" em comparação com "sorte",
estamos geralmente muito mais dispostos a aceitar as desigualdades que resultam
da sorte do que as que resultam claramente do mérito. O professor universitário
sentirá inveja de um colega que tenha ganho um grande prémio nas corridas, mas
não se sentirá por isso injustiçado ou humilhado. Mas, se o colega receber
pequeno aumento de ordenado que torne seu salário um pouco maior do que o que
recebe, o professor sentir-se-á logo magoado e desmerecido. Afinal de contas, a
deusa da sorte, como a da justiça, é cega. O aumento foi um julgamento
deliberado de mérito relativo.
Papel instrumental da distribuição de acordo com o produto
A função operacional do pagamento de acordo com o produto numa sociedade de
mercado não é basicamente distributiva, mas de partilha. Como observamos no
capítulo I, o princípio central de uma economia de mercado é a cooperação
através de troca voluntária. Os indivíduos cooperam entre si porque podem, desta
forma, satisfazer suas necessidades de modo mais efetivo. Mas, a não ser que um
indivíduo receba na base do que acrescenta ao produto, ele participará da troca
na base do que puder receber e não do que puder produzir. Não haverá trocas
mutuamente proveitosas se cada uma das partes receber apenas o correspondente à
sua contribuição para o produto final. O pagamento de acordo com o produto é,
portanto. necessário para que os recursos sejam usados de modo altamente
efetivo.
pelo menos sob um sistema que depende de cooperação voluntária. É possível que a
compulsão possa substituir o incentivo da recompensa - embora eu duvide que isso
venha a acontecer. É possível mudar a posição de ob-jetos inanimados, é possível
obrigar indivíduos a estarem presentes em certos lugares em determinadas horas,
mas é muito difícil obrigá-los a dedicar todos os esforços a uma tarefa. Em
outras palavras, a substituição da cooperação pela compulsão altera o volume de
recursos disponível.
Embora a função essencial do pagamento de acordo com o produto
numa sociedade de mercado seja permitir a alocação de recursos, eficientemente,
sem compulsão, é muito pouco provável que seja tolerado, se não for considerado,
também, como fator de justiça distributiva. Nenhuma sociedade pode permanecer
estável, a não ser que exista um núcleo básico de julgamentos de valor aceito
inconscientemente pela maioria de seus membros. Algumas instituições devem ser
aceitas como "absolutas", não simplesmente como instrumentais. Acho que o
pagamento de acordo com o produto tem sido e ainda é, em boa parte, um desses
julgamentos de valor ou instituições.
É possível demonstrar essa afirmação examinando os argumentos com que os
inimigos do capitalismo atacam a distribuição da renda que resulta de tal
princípio. Trata-se de uma característica específica do âmago dos valores
centrais de uma sociedade o fato de ser aceito por todos os seus membros da
mesma forma - quer se considerem proponentes ou oponentes do sistema de
organização da sociedade. Mesmo os críticos internos mais severos do capitalismo
aceitaram implicitamente o pagamento de acordo com o produto como eticamente
justo.
As críticas mais cerradas vieram dos marxistas. Marx afirmou que o trabalho era
explorado. Por quê? Porque o trabalho criava o produto inteiro e só recebia
parte dele; o resto é o que Marx chama de "valor excedente". Mesmo que as
declarações de fato implícitas nessa afirmativa fossem aceitas, o julgamento de
valor só poderá ser extraído se se aceitar a ética capitalista. O trabalho só é
"explorado" se o trabalho tiver direito ao que produz. Se aceitarmos, em vez
disso, a premissa socialista de "a cada um de acordo com suas necessidades e de
cada um de acordo com suas capacidades" - o que quer que isto possa significar -
será necessário comparar o que o trabalho produz, não com o que obtém, mas com a
sua "capacidade" e comparar o que o trabalho obtém, não com o que produz, mas
com aquilo de que "necessita".
Evidentemente, a argumentação marxista é também improcedente sob outros pontos
de vista. Há, inicialmente, a confusão entre o produto total de todos os
recursos cooperantes e que é acrescentado ao produto - no jargão dos
economistas,
o produto marginal. Ainda mais importante, há uma alteração não explicitada no
significado de "trabalho" na passagem das premissas para a conclusão. Marx
reconhecia o papel do capital na criação do produto, mas considerava o capital
trabalho materializado. Logo, escritas por extenso. as premissas do silogismo
marxista seriam as seguintes: "O trabalho presente e passado produz todo o
produto. O trabalho presente obtém somente parte do produto." A conclusão lógica
seria presumivelmente: "O trabalho passado é explorado." E a inferência para a
ação seria a de que o trabalho passado obtenha um pouco mais do produto, embora
não fique muito claro de que maneira - a não ser em elegantes mausoléus.
A alocação dos recursos sem compulsão é o papel mais importante, no
mercado, da distribuição de acordo com o produto. Mas não é o único papel
instrumental da desigualdade resultante. Já vimos no capítulo I o papel que a
desigualdade desempenha no fornecimento de focos independentes de poder para
contrabalançar a centralização do poder político, bem como o seu papel na
promoção da liberdade civil, por meio do fornecimento de "patronos" para
financiar a divulgação de causas impopulares ou simplesmente de ideias novas.
Além disso, na esfera econômica, fornece "patronos" para financiar a
experimentação e o desenvolvimento de novos produtos - para comprar o primeiro
automóvel e a primeira televisão experimental, sem falar dos quadros
impressionistas. Finalmente, permite que a distribuição ocorra de modo
impessoal,
sem necessidade de uma "autoridade" - uma faceta especial do papel geral do
mercado de permitir cooperação e coordenação sem coerção.
Fatos da distribuição da renda
Um sistema capitalista envolvendo pagamento de acordo com o produto pode ser, e
na prática é, caracterizado por considerável desigualdade na renda e na riqueza.
Esse fato é frequentemente mal interpretado e considerado como demonstração de
que o capitalismo e a livre empresa produzem desigualdade maior do que sistemas
alternativos e que, como corolário, a extensão e o desenvolvimento do
capitalismo implicou crescente desigualdade. Tal interpretação errónea é
estimulada pela característica enganadora da maioria dos números publicados
sobre a distribuição da renda, principalmente por não permitir distinguir a
desigualdade a curto prazo da desigualdade a longo prazo. Examinemos alguns
fatos gerais a respeito da distribuição da renda.
Um dos fatos mais importantes que vai contra as expectativas de muitas pessoas
diz respeito às fontes de renda. Quanto mais capitalista é um país, tanto menor
a fração de renda paga pela utilização do que se considera geralmente como
capital, e tanto maior a fração paga por serviços humanos. Em países
subdesenvolvidos, como índia, Egito e tantos outros, praticamente metade da
renda total está constituída por renda de propriedade. Nos Estados Unidos,
apenas cerca de um quinto é constituído de renda de propriedade. Em outros
países capitalistas adiantados, a proporção não é muito diferente.
Evidentemente,
tais países têm muito mais capital do que os países primitivos - mas são também
mais ricos na capacidade produtiva de seus cidadãos. Portanto, embora a renda de
propriedade seja maior. ela representa uma fração menor do total da renda. A
grande contribuição do capitalismo não foi o acúmulo de propriedade, foi ter
dado oportunidade a homens e mulheres de estenderem e desenvolverem e
aperfeiçoarem suas capacidades. No entanto, os inimigos do capitalismo gostam
muito de
acusá-lo de materialista, e seus amigos, muito frequentemente, se desculpam pelo
materialismo do capitalismo, apontando-o como custo necessário do progresso.
Outro fato notável - e contrário à concepção popular - é que o capitalismo leva
a menos desigualdade do que os sistemas alternativos de organização, e que o
desenvolvimento do capitalismo diminui sensivelmente a extensão da desigualdade.
Comparações em termos de espaço e tempo confirmam tal afirmação. Há certamente
menos desigualdade em sociedades capitalistas ocidentais, como os países
escandinavos, a França, ^a Inglaterra e os Estados Unidos, do que num tipo de
sociedade como a índia ou num país subdesenvolvido como o Egito. A comparação
com países comunistas como a Rússia é mais difícil, devido ao número limitado de
informações e à pouca confiança que podemos ter nelas. Mas, se a desigualdade
pode ser medida por diferenças em níveis de vida entre os privilégios e outras
classes, tal desigualdade pode muito bem ser considerada como drasticamente
menor nos países capitalistas do que nos comunistas. Entre os países ocidentais
somente, a desigualdade é tanto menor - no seu sentido mais significativo -
quanto mais capitalista o país; menor na Inglaterra do que na França, menor nos
Estados Unidos do que na Inglaterra. Embora tais comparações sejam mais difíceis
pelo problema da heterogeneidade intrínseca das populações, para uma comparação
precisa, por exemplo, seria necessário comparar talvez os Estados Unidos, não
com o Reino Unido somente, mas com o Reino Unido mais as índias Ocidentais e as
possessões africanas.
Com relação às mudanças ao longo do tempo, o progresso econômico alcançado nas
sociedades capitalistas foi acompanhado por drástica diminuição da desigualdade.
Em 1848, John Stuart Mill escreveu:
"Até agora, é questionável se todas as invenções mecânicas até então feitas
tenham melhorado a vida dos seres humanos. Fizeram com que uma população ainda
maior vivesse a mesma vida de dificuldades e provações e que um número maior de
fabricantes e de outras pessoas acumulassem fortunas. Elas aumentaram o conforto
da classe média. Mas ainda não começaram a provocar grandes mudanças no destino
humano - muito embora tal mudança esteja em sua natureza e venha, com certeza, a
ser realizada no futuro".2
Essa declaração talvez não fosse correta nem mesmo para os dias de Mill. mas,
certamente, ninguém poderia escrever desse modo hoje em dia sobre os países
capitalistas avançados. É ainda verdade para o resto do mundo. porém.
A característica principal do progresso e do desenvolvimento durante o século
passado foi permitir às massas libertarem-se de trabalhos estafantes e
2 Principies of Política! Economy. Edição Ashlev, Londres; Longmans, Green &
Co.,
1909. p. 751.
utilizarem produtos e serviços que eram antes privilégios das classes altas -
sem ter, de maneira alguma, expandido os produtos e serviços disponíveis para os
ricos. Sem citar a medicina, os avanços da tecnologia permitiram em grande parte
que vasta parcela do povo tivesse acesso a artigos até então disponíveis, sob
uma forma ou outra, aos verdadeiramente ricos. Água e esgotos, aquecimento
central, automóveis, televisão, rádio - para citar apenas alguns exemplos -
fornecem às massas aquilo que os ricos sempre puderam desfrutar por meio da
utilização de criados, artistas etc.
A evidência estatística detalhada sobre tais fenómenos, sob a forma de
distribuição de renda comparada e significativa, é difícil de conseguir, embora
tais estudos, quando feitos, confirmem as afirmações gerais apresentadas acima.
Esses dados estatísticos, contudo, podem ser enganadores. Eles não podem separar
as diferenças de renda do tipo equilibrador das que não o são. Por exemplo, o
curto período de vida ativa de um jogador de beisebol leva a uma renda anual,
durante seus anos ativos, bem mais alta do que em qualquer outra atividade
alternativa que poderia ter escolhido - a fim de torná-la igualmente atraente do
ponto de vista financeiro. Mas tais diferenças afetam os números do mesmo modo
que outra qualquer diferença na renda. As unidades de renda, por meio das quais
os números são apresentados, também têm grande importância. Uma distribuição por
recipientes individuais da renda sempre mostra desigualdade aparente maior do
que a distribuição por unidades de família: muitos indivíduos são donas-de-casa
trabalhando em regime de meio expediente ou recebendo pequena renda de
propriedade ou outros membros da família em situação semelhante. E a
distribuição relevante para as famílias aquela em que as famílias são
classificadas pela renda global? Ou por renda per capita? Ou por unidade   
equivalente? Não se trata de questões irrelevantes. Estou convencido de que a
alteração na distribuição das famílias por número de filhos constitui o fator
isolado mais importante na redução da desigualdade dos níveis de vida neste país
durante os últimos 50 anos. Trata-se de fator bem mais importante do que a
herança graduada e o imposto de renda. Os níveis de vida realmente baixos eram o
produto conjunto de renda familiar relativamente baixa e um número de filhos
relativamente alto. O número médio de filhos declinou e, ainda mais importante,
esse declínio foi acompanhado, e em grande parte produzido, por uma eliminação
virtual das famílias muito grandes. Como consequência, as famílias hoje em dia
tendem a diferir menos no número de filhos. Entretanto, essa mudança não se
refletiria numa distribuição de famílias por total de renda global.
Problema importante na interpretação da evidência da distribuição da renda é a
necessidade de distinguir dois tipos basicamente diversos de desi-SUaldade:
diferenças temporárias, de curta duração na renda, e diferenças longa duração.
Considerem duas sociedades que têm a mesma distribui-
anual da renda. Numa, existe grande mobilidade e mudança, de mo-que a posição de
determinadas famílias na hierarquia da renda varia
muito de um ano para outro. Na outra, existe grande rigidez, de modo que cada
família permanece na mesma posição, ano após ano. Evidentemente. em qualquer
sentido a sociedade mais desigual é a segunda. O primeiro tipo de desigualdade
constitui um sinal de mudança dinâmica, de mobilidade social, de igualdade de
oportunidade. O outro, de uma sociedade de sta-tus. A confusão entre esses dois
tipos de desigualdade é muito importante. precisamente porque o capitalismo
competitivo de livre empresa tende a substituir uma pela outra. Sociedades não
capitalistas tendem a ter desigualdades maiores do que as capitalistas, mesmo
quando se mede essa desigualdade pela renda anual. Além disso, a desigualdade
nelas tende a ser permanente, enquanto o capitalismo mina o síaíus e introduz a
mobilidade social.
Medidas usadas pelo governo para alterar a distribuição da renda
Os métodos que o governo tem usado de maneira mais ampla para alterar a
distribuição da renda foram o imposto de renda e o imposto 9obre herança
graduados. Antes de considerar sua conveniência, seria oportuno investigar se
alcançaram o objetivo.
Nenhuma resposta conclusiva pode ser dada a essa questão, com o nosso
conhecimento atual. O julgamento que apresento a seguir é minha opinião pessoal
- embora nem por isso desprovida de fundamento - e será apresentada, por questão
de brevidade, mais dogmaticamente do que a natureza da evidência permitiria.
Minha impressão é a de que tais impostos tiveram efeito relativamente pequeno,
embora não desprezível, na diminuição das diferenças entre a posição média de
grupos de famílias classificadas por determinadas medidas estatísticas de renda.
Entretanto, introduziram também desigualdades essencialmente arbitrárias da
magnitude comparável entre pessoas que pertencem a tais classes de renda. Por
isso. não fica muito claro se o efeito final em termos do objetivo básico da
igualdade de tratamento ou igualdade de resultado foi o aumento ou a diminuição
da igualdade.
Os impostos são teoricamente altos e muito graduados. Mas seu efeito foi
dissipado de dois modos diferentes. Primeiro, parte de seu efeito foi
simplesmente tornar mais desigual a distribuição pré-imposto. É este o
costumeiro efeito de incidência da aplicação de impostos. Por desencorajar a
entrada em atividades altamente taxadas - neste caso, atividades de risco alto e
com desvantagens não pecuniárias - eles aumentam o retorno nessas atividades.
Segundo, estimularam procedimentos legais e outros propiciados da evasão - as
chamadas "brechas" da lei, como a depleção das porcentagens, a isenção de juros
dos títulos estaduais e municipais, sobretudo o tratamento favorável dos lucros
de capital, contas de despesas, outros
meios indiretos de pagamento, conversão de renda comum em lucros de capital, e
assim por diante, de maneira surpreendente. O efeito foi tornar as porcentagens
reais bem menores do que as nominais e. talvez mais importante, tornar
caprichosa e desigual a incidência das taxas. Pessoas do mesmo nível econômico
pagam impostos muito diferentes, dependendo da fonte de sua renda e das
oportunidades que têm de sonegar a taxação. Se os impostos existentes fossem tornados realmente efetivos. os efeitos nos incentivos poderiam ser tão sérios a
ponto de causar perda radical na produtividade da sociedade. A fuga ao imposto
pode, portanto, ser considerada como essencial para o bem-estar econômico. Se
assim for. o ganho foi obtido ao custo de grande perda de recursos, induzindo,
além disso, a uma generalizada injustiça. Um conjunto menor de taxas nominais
sobre uma base mais compreensiva, através de taxação mais igual de todas as
fontes de renda, poderia ser mais progressivo na incidência média mais
equitativa e teria provocado desperdício menor de recursos.
Esse julgamento de que o imposto de renda pessoal foi arbitrário em seu impacto
e limitado em seus efeitos de redução da desigualdade é amplamente compartilhado
por estudiosos da matéria, incluindo muitos partidários firmes da taxação
gradual como instrumento de redução da desigualdade. Também eles consideram
necessário reduzir drasticamente as taxas mais altas e alargar as bases.
Um outro fator que serviu para reduzir o impacto da estrutura da taxação gradual
na desigualdade da renda e da riqueza é que os impostos são mais para evitar
riqueza do que impostos sobre a riqueza já existente. Embora limitem o uso da
renda da riqueza já existente, eles impedem ainda mais firmemente - até onde
sejam efetivamente aplicados - a acumulação da riqueza. O imposto sobre a renda
da riqueza nada faz para reduzir a riqueza como tal: ele reduz apenas o nível de
consumo e o acréscimo à riqueza do indivíduo em questão. A aplicação de impostos
fornece um incentivo para evitar riscos e para a aplicação da riqueza existente
em empreendimentos relativamente estáveis - o que reduz a probabilidade de
dissipação das riquezas acumuladas existentes. De outro lado, o modo principal
de se acumular novas riquezas é por meio da obtenção de grandes rendas das quais
uma boa parte é economizada e investida em atividades de risco, algumas das
quais produzirão altos lucros. Se o imposto de renda fosse efeti-vo, fecharia
esse caminho. Como consequência, seus efeitos seriam proteger os atuais
proprietários da riqueza da concorrência de novos candidatos à riqueza. Na
prática, esse efeito fica muito diluído pêlos já citados dispositivos existentes
para evitar o imposto. E interessante observar que uma porção substancial do
novo acúmulo ocorreu no petróleo, onde a depleção das porcentagens fornece um
modo particularmente fácil de recebimento da renda livre de impostos.
Ao julgar a conveniência do imposto de renda gradual, parece-me importante
distinguir dois problemas, embora a distinção não possa ser exata
em sua aplicação: primeiro, o levantamento de fundos para financiar as despesas
que o governo decida realizar (incluindo, talvez, medidas para eliminar a
pobreza discutidas no capítulo XII); segundo, a aplicação de impostos com o
propósito único da redistribuição. No primeiro caso, pode ser válido o recurso a
algum tipo de gradualismo, tanto em termos de avaliar custos de acordo com
benefícios quanto em termos padrões sociais de igualdade. Mas as atuais taxas
nominais sobre as rendas e heranças de nível superior dificilmente podem ser
justificadas sob tais pontos de vista - pelo menos, tendo em vista seus fracos
resultados.
.'.•- /É difícil para mim, como liberal, encontrar alguma justificativa para a
taxação gradual em termos de pura redistribuição de renda. Parece-me um caso
claro de coerção, em que se tira de uns para dar a outros, e assim se entra em
conflito frontal com a liberdade individual. /
Considerados todos os pontos, a estrutura de imposto de renda pessoal que me
parece melhor seria um imposto uniforme sobre a renda acima do nível de isenção,
com a renda definida de modo bastante amplo e as deduções permitidas apenas para
despesas com a obtenção da renda, despesas essas definidas de modo bem rígido.
Como já foi sugerido no capítulo V, eu combinaria esse programa com a abolição
do imposto da renda para as empresas e acrescentaria a exigência de que estas
atribuíssem sua renda a seus acionistas e de que os acionistas incluíssem, tais
importâncias em suas declarações. Outras alterações importantes mais desejáveis
são a eliminação da depleção de porcentagens no petróleo e outras maté-rias-
primas,
a eliminação da isenção do imposto para os interesses em títulos estaduais e
municipais, a eliminação do tratamento especial para os lucros de capital, a
coordenação dos impostos de renda, de heranças e de donativos e a eliminação de
inúmeras deduções atualmente consideradas.
Uma isenção parece-me constituir um tipo de graduação justificado (ver discussão no capítulo XII). É muito diferente para 90% da população votar impostos para si
próprios e uma isenção para 10% do que 90% votar impostos punitivos sobre os
outros 10% - o que, de fato, tem acontecido nos Estados Unidos. Um imposto
uniforme proporcional envolveria pagamentos absolutos mais altos por parte das
pessoas que recebem rendas altas por serviço público, o que me parece bastante
adequado em termos de benefícios conferidos. Além disso, evitaria a situação em
que qualquer grande número de pessoas pudesse votar para impor a outrem impostos
que não afetassem sua própria carga de impostos.
A proposta para substituir a atual estrutura de imposto gradual por um imposto
de renda com taxa uniforme parecerá radical a muitos leitores. E é realmente em
termos de conceituação. Justamente por isso, é preciso enfatizar que não é
radical, em termos de rendimentos obtidos, redistribuição da renda ou qualquer
outro critério relevante. As taxas atuais de nosso imposto de renda vão de 20%
até 91%, com a taxa chegando a 50% sobre o excesso de renda tributável superior
a 18 mil dólares para solteiros e 36 mil dó-
t
fjares para casados que fazem declarações em comum. No entanto, uma ta-I xá
uniforme de 23,5% sobre a renda tributável como aqui sugerido e defini-I do,
isto é, acima das isenções existentes e depois de todas as deduções pre-t
sentemente consideradas, levantaria o mesmo volume de dinheiro levantado pela
taxação gradual em vigor.3 De fato, essa taxa uniforme, mesmo sem qualquer
alteração em outras partes da lei, produziria uma arrecadação bem maior porque
uma parte maior de renda tributável seria declarada por três razões: haveria
menos incentivo para a adoção de esquemas legais, mas custosos, para reduzir a
importância de renda tributável declarada (a chamada evitação do imposto);
haveria menos incentivo para não declarar rendas que legalmente teriam que ser
declaradas (a sonegação do imposto); a remoção da atual estrutura eliminaria
seus efeitos em termos de .diminuição ou às vezes eliminação do incentivo para
se engajar em novos empreendimentos e, com isso, ter-se-ia um uso mais eficiente
dos recursos atuais e uma renda mais alta.
Se a arrecadação com o atual sistema é tão baixa, igualmente baixos devem ser
seus efeitos redistributivos. Isso não significa que não causem prejuízo. Pelo
contrário, a arrecadação é tão baixa porque alguns homens mais competentes do
país utilizam suas energias tentando descobrir novos meios de mante-la baixa e
porque outros tantos dirigem sua atividade com um olho sobre a incidência dos
impostos. Tudo isso é puro desperdício. E o que se consegue? Quando muito, uma
sensação de satisfação por parte de alguns por estar o Estado redistribuindo a
renda. E mesmo esse conceito baseia-se na ignorância dos verdadeiros efeitos da
atual estrutura do imposto gradual e certamente desapareceria se os fatos fossem
conhecidos.
Voltando à redistribuição da renda, existe clara justificação para a ação social
de tipo muito diferente da taxação para afetar a distribuição da renda. Boa
parte da desigualdade atual deriva de imperfeições do mercado. Muitas delas
foram criadas pela ação governamental ou podem ser removidas por esta. É
perfeitamente válido ajustar as regras do jogo para eliminar tais fontes de
desigualdade. Por exemplo, privilégios especiais de monopólios concedidos pelo
governo, tarifas e outras medidas legais beneficiando grupos particulares
constituem uma fonte de desigualdade. O liberal aprovaria a remoção de tais
medidas. A extensão e ampliação das oportunidades educacionais é um dos fatores
mais importantes para a redução da desi-
Este ponto é tão importante que me parece conveniente fornecer os números e o
cálculo. O último í.;!•" para o qual temos números disponíveis por ocasião da
confecção deste livro é o de 1959 em Síatis-jfcs of Income for 1959, do U. S.
Internai Revenue Service. Para o ano: Renda tributável acumulada "s "presentada
nas:
Declarações de renda individuais ........................... $ 166 540 milhões
Imposto de renda antes do crédito de imposto ................ 39 092 milhões
Imposto de renda após crédito de imposto ................... 38 645 milhões
imposto com a taxa uniforme de 23,5% sobre a renda tributável acumulada teria produzido "") x $166 540 milhões = $39 137 milhões.
o mesmo crédito de imposto, o resultado final teria sido praticamente o mesmo
que o atual.
gualdade. Medidas desse tipo têm a vantagem operacional de atacar as fontes da
desigualdade - em vez de simplesmente aliviar os sintomas.
A distribuição da renda é uma das áreas em que o governo tem causado maior
número de males - que não consegue eliminar mais tarde com outro conjunto de
medidas. É outro exemplo da justificação da intervenção do governo em termos de
alegadas deficiências do sistema de empresa privada, quando, na verdade, a
maioria dos fenómenos que os defensores de um governo mais forte criticam são,
eles próprios, criação dos governos, fortes ou fracos.

Capitalismo e Liberdade - Milton FriedmanOnde histórias criam vida. Descubra agora