Problema da Pobreza
O extraordinário crescimento econômico dos países ocidentais nos dois últimos
séculos e a ampla distribuição dos benefícios da empresa privada reduziram
enormemente a extensão da pobreza, em qualquer sentido absoluto, nos países
capitalistas do Ocidente. Mas pobreza é, em parte, uma questão relativa, pois
mesmo nesses países há muitas pessoas vivendo em condições que nós todos
denominamos pobreza.
Um recurso - e, sob muitos aspectos, o mais desejável - é a caridade privada. É
interessante notar que no auge da sociedade do laissez-faire na segunda metade
do século XIX, na Inglaterra e Estados Unidos, houve extraordinária proliferação
de organizações e instituições privadas de caridade. Um dos custos mais
importantes da extensão das atividades do Governo nessas áreas foi o declínio
correspondente das atividades privadas de caridade.
Pode-se levantar a observação de que a caridade privada é insuficiente porque
seus benefícios se estendem a pessoas não envolvidas - mais uma vez, um efeito
lateral. Fico angustiado com o espetãculo da pobreza, e sou beneficiado com o
alívio de tal situação. Mas sou igualmente beneficiado, quer seja eu quer seja
outra pessoa que contribua para tal alívio. Portanto, os benefícios da caridade
de outras pessoas estendem-se a mim. Colocando a questão de outra forma, nós
todos estamos dispostos a contribuir para minorar a pobreza, desde que todos os
outros também contribuam. Podemos não estar dispostos a contribuir com a mesma
importância, se não tivermos certeza disso. Em pequenas comunidades, a pressão
pública pode ser suficiente para estabelecer tal garantia, mesmo no caso da
caridade privada. Nas grandes comunidades impessoais, que estão cada vez mais
dominando nossa sociedade, é muito mais difícil fazer isso.
Suponha que alguém aceite, como eu aceito, esta linha de raciocínio como capaz
de justificar a ação governamental para aliviar a miséria e colo-
car, como é a intenção, um andar a mais no padrão de vida de cada pessoa da
comunidade. Ainda permanecem as questões: quanto e como. Não vejo nenhum modo de
decidir "quanto", a não ser em termos do volume de taxas que nós - e, com isso,
quero dizer a maioria - estaremos dispostos a aceitar para tais propósitos. A
questão "como" deixa muito terreno para especulações.
Duas coisas parecem claras. Primeiro, se o objetivo é mitigar a pobreza,
deveríamos ter um programa destinado a ajudar o pobre. Há muitas razões para
justificar a ajuda ao pobre que acontece ser um fazendeiro - não porque é
fazendeiro, mas porque é pobre. O programa, portanto, deve ser estabelecido para
ajudar as pessoas como pessoas - não como membros de uma certa ocupação ou de um
certo grupo de idade ou de um certo grupo de nível de salário ou de organizações
trabalhistas ou industriais. É este o erro básico dos programas para as
fazendas,
dos benefícios gerais para a velhice, das leis do salário mínimo, das tarifas,
do licenciamento para profissões, e assim por diante. Segundo, o programa
deveria, tanto quanto possível, uma vez que opera através do mercado, não
distorcer o mercado nem impedir seu funcionamento. É este o erro dos preços
subsidiados do salário mínimo, das tarifas e de outras tantas medidas. ,
O procedimento mais recomendável em bases puramente mecânicas seria o imposto de
renda negativo. Temos atualmente uma isenção de 600 dólares por pessoa em termos
de imposto de renda federal (mais um mínimo de 10% de dedução uniforme). Se um indivíduo receber renda de 100 dólares em excesso, após o cálculo da isenção e
da dedução, pagará certo imposto. De acordo com nossa proposta, se a renda for
menos 100 dólares. isto é, 100 dólares abaixo da isenção mais a dedução, terá
que pagar um imposto negativo, isto é, receber subsídio. Se a taxa do subsídio
for. digamos, 50%, receberá 50 dólares. Se não tiver nenhuma renda e, para
efeitos de simplicidade, nenhuma dedução, e a taxa for constante, receberá 300
dólares. Poderá receber mais do que isso, se tiver deduções, por exemplo, por
despesas médicas, de modo que sua renda menos as deduções já seja negativa mesmo
antes da subtração da isenção. As porcentagens do subsídio poderiam,
evidentemente, ser graduadas da mesma forma que as do imposto de renda. Deste
modo, seria possível estabelecer um nível abaixo do qual nenhuma renda se
poderia situar. Neste exemplo, 300 dólares por pessoa. O nível preciso
dependeria de quanto a comunidade estivesse disposta a permitir.
As vantagens de tal prática são claras. O programa está especificamente dirigido
para o problema da pobreza. Fornece uma ajuda sob a forma mais útil para o
indivíduo, isto é, dinheiro. É de ordem geral e pode substituir o grande
conjunto de medidas atualmente existentes. Explicita o custo que impõe à
sociedade. Opera fora do mercado. Como qualquer outra medida para mitigar a
pobreza, reduz o incentivo para que os ajudados se ajudem a si próprios, mas não
o elimina inteiramente, como o faria um siste-
ma de suplementação das rendas até um mínimo estabelecido. Um dólar extra ganho
significa sempre mais dinheiro disponível para gastar.
Sem dúvida, haveria problemas de administração, mas estes parecem uma pequena
desvantagem - se é que constituem uma desvantagem. O sistema encaixar-se-ia
diretamente em nossa atual sistemática de imposto de renda e poderia ser
administrado em conjunto com este último. O sistema de imposto atual cobre o
grosso dos recipientes da renda, e a necessidade de cobrir todos teria, como
produto secundário, o melhoramento da operação do atual imposto de renda. Mais
importante, se posto em vigor como substituto para o atual conjunto desordenado
de medidas destinadas ao mesmo fim, a carga administrativa total seria, sem
dúvida, diminuída.
Alguns cálculos breves sugerem também que este sistema seria bem menos caro, em
termos de dinheiro - para não falar do grau de intervenção governamental
envolvido -, com a atual coleção de medidas sociais. Visualizados de outro
ponto,
esses cálculos mostram como são inadequadas as medidas atuais, julgadas como
medidas para ajudar os pobres.
Em 1961, tivemos o total de cerca de 33 bilhões de dólares de pagamento por
parte do Governo (federal, estadual e local) para fins de bem-es-tar social:
seguro para a velhice, pagamentos de seguro social, ajuda a crianças
dependentes,
assistência geral, programas de apoio a preços de produtos agrícolas, programas
habitacionais etc.1 Excluí desses cálculos os benefícios para veteranos. Também
não considerei os custos diretos e indiretos de medidas como as leis de salário
mínimo, tarifas, licenciamento profissional, e assim por diante, ou os custos de
atividades de saúde pública, despesas locais e estaduais em hospitais,
instituições para doentes mentais etc.
Se considerarmos 57 milhões de unidades consumidoras nos Estados Unidos, as
despesas de 1961, no valor de 33 bilhões de dólares, teriam financiado doações
em dinheiro de aproximadamente 6 mil dólares por unidade consumidora para os 10%
com rendas mais baixas. Tais doações poderiam ter elevado suas rendas acima da
média de todas as unidades nos Estados Unidos. Alternativamente, tais despesas
teriam financiado doações de mais ou menos 3 mil dólares por unidade consumidora
para os 20% com renda mais baixa. Mesmo que fôssemos tão longe até o ponto de
considerar a fração de 1/3 da população - a qual os proponentes do New Deaí
apontavam como vivendo em condições de subalimentação, submora-dia etc. -, as
despesas de 1961 teriam financiado doações de aproximadamente 2 000 dólares por
unidade consumidora, praticamente a soma que.
Este total é igual aos pagamentos de transferência do Governo (31.1 bilhões de
dólares) menos os benefícios aos veteranos (4.8 bilhões de dólares), ambos da
conta de renda nacional do Departamento de t-omércio. mais as despesas federais
com o programa para a agricultura (5.5 bilhões de dólares), mais asjdespesas federais do programa de habitação e outras ajudas à habitação (0.5 bilhão de
dólares), ambos para o ano terminando em 30 de junho de 1961. extraídos das
contas do Tesouro, mais um adicional de 0,7 bilhão para arredondamento e para
cobrir os custos administrativos dos programas federais. omitidos os programas
estaduais e locais, e itens diversos. Minha opinião é de que a importância total
representa estimativa bem inferior ã realidade.
após consideradas as diferenças no nível dos preços, constituía a renda que
separava a fração de um terço mais baixa da fração de dois terços mais alta, em
meados de 1930. Atualmente, menos de um oitavo das unidades consumidoras tem
renda - ajustada para as mudanças no nível dos preços - tão baixa quanto a da
fração de um terço mais baixa em meados de 1930.
E evidente que todos esses programas são bem mais extravagantes do que se
poderia justificar em termos de "alívio da pobreza", mesmo a partir de uma
interpretação muito generosa desta expressão. Um programa que suplementasse as
rendas dos 20% das unidades consumidoras de renda mais baixa de modo a elevá-las
até o nível mais baixo do resto das unidades custaria menos da metade do que
estamos gastando agora.
A principal desvantagem do imposto de renda negativo proposto acima são suas
implicações políticas. Na realidade, a proposta estabelece um sistema em que
serão pagos impostos por alguns para subvencionar outros. E esses outros
presumivelmente têm o poder de voto. Há sempre o perigo de se estabelecer a
seguinte situação: em vez de termos um arranjo em que a grande maioria vote
impostos que incidam sobre ela própria a fim de ajudar uma minoria necessitada,
poderemos vir a ter um em que uma maioria imponha impostos, para seu próprio
benefício, a uma minoria contrariada. Pelo fato de esta proposta tornar um tal
processç tão explícito. o perigo é talvez maior do que para outras medidas. Não
vejo nenhuma solução para este problema - a não ser que confiemos na boa vontade
e no autocontrole do eleitorado.
Escrevendo a respeito de um programa correspondente - o sistema de pensões para
a velhice em vigor na Inglaterra - em 1914, disse Dicey:
"Certamente um indivíduo sensato e benevolente poderá perguntar-se se a
Inglaterra como um todo virá a lucrar estabelecendo que o recebimento de um
benefício - sob forma de pensão - não seja inconsistente com a conservação pelo
beneficiado de seu direito de votar na eleição para membros do Parlamento".2
O veredito da experiência na Inglaterra sobre a questão levantada por Dicey pode
ser considerado misto. A Inglaterra adotou o sufrágio universal sem desligar os
que recebiam pensões ou qualquer outro tipo de ajuda, de seu direito ao voto. E
houve enorme expansão na aplicação de impostos a alguns para beneficiar outros,
a qual pode muito bem ser considerada como tendo retardado o crescimento da
Inglaterra - e. assim, pode até mesmo não ter beneficiado a maioria dos que se
viam na posição de recipientes finais. Mas essas medidas não destruíram, pelo
menos até agora, as liberdades da Inglaterra ou seu sistema predominantemente
capitalista. E.
mais importante ainda, tem havido alguns sinais de baixa da maré e do exercício
do autocontrole por parte do eleitorado.
Liberalismo e igualitarismo
A essência da filosofia liberal é a crença na dignidade do indivíduo, em sua
liberdade de usar ao máximo suas capacidades e oportunidades de acordo com suas
próprias escolhas, sujeito somente à obrigação de não interferir com a liberdade
de outros indivíduos fazerem o mesmo. Este ponto de vista implica a crença da
igualdade dos homens num sentido; em sua desigualdade noutro. Todos os homens
têm o mesmo direito à liberdade. Este é um direito importante e fundamental
precisamente porque os homens são diferentes, pois um indivíduo quererá fazer
com sua liberdade coisas diferentes'das que são feitas por outros; e tal
processo pode contribuir mais do que qualquer outro para a cultura geral da
sociedade em que vivem muitos homens.
O liberal fará, portanto, uma distinção clara entre igualdade de direitos e
igualdade de oportunidades, de um lado, e igualdade material ou igualdade de
rendas, de outro. Pode considerar conveniente que uma sociedade livre tenda, de fato, para uma igualdade material cada vez maior. Mas considerará esse fato como
um produto secundário desejável de uma sociedade livre - mas não como sua
justificativa principal. O liberal acolherá, de bom grado, medidas que promovam
tanto a liberdade quanto a igualdade como, por exemplo, os meios para eliminar o
poder monopolista e desenvolver as operações do mercado. Considerará a caridade
privada destinada a ajudar os menos afortunados como um exemplo do uso
apropriado da liberdade. E pode aprovar a ação estatal para mitigar a pobreza
como um modo mais efetivo pelo qual o grosso da população pode realizar um
objeti-vo comum. Dará sua aprovação, contudo, com certo desgosto, pois estará
substituindo a ação voluntária pela ação compulsória.
Aquele que pensa em termos de igualdade acompanhará o liberal em todos estes
casos. Mas pretenderá ir mais longe. Defenderá o direito de tirar de alguns para
dar a outros, não como um meio efetivo pelo qual "alguns" poderão alcançar seu
objetivo próprio, mas na base da necessidade da "justiça". Neste ponto, a
igualdade entra imediatamente em conflito com a liberdade, sendo preciso, pois.
escolher. Um indivíduo não pode ser igualitário, neste sentido, e liberal ao
mesmo tempo.
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Capitalismo e Liberdade - Milton Friedman
Non-Fiction"Este livro é de grande atualidade, em especial na América Latina. Sua ideia central é a de que o mesmo Estado que constrange a liberdade econômica termina por também tolher a liberdade individual. É o que todos nós vivenciamos no cotidiano da Améri...