Conclusão
Nos anos vinte e trinta, os intelectuais nos Estados Unidos estavam firmemente
persuadidos de que o capitalismo era um sistema deficiente, que inibia o bem-
estar
econômico e, portanto, a liberdade; assim, a esperança para o futuro dependeria
em grande parte do controle deliberado dos assuntos econômicos pelas autoridades
políticas. A conversão dos intelectuais não foi obtida por meio do exemplo de
alguma sociedade coletivista existente na ocasião, embora tenha sido
indubitavelmente apressada pelo estabelecimento de uma sociedade comunista na
Rússia e pelas esperanças a que deu origem. A conversão dos intelectuais foi
alcançada por uma comparação entre o estado de coisas presente na ocasião, com
todas as suas injustiças e defeitos, e o estado de coisas hipotético - o que
deveria ser. O real foi comparado com o ideal.
Na ocasião, não era possível ir além disso. Na realidade, a humanidade já tinha
passado por inúmeras experiências de controle centralizado, de minuciosa
intervenção do Estado em assuntos econômicos. Mas tinha havido uma revolução na
política, na ciência e na tecnologia. Com certeza, argumentava-se então,
poderemos conseguir muito mais com uma estrutura política democrática,
dispositivos modernos e nossa moderna ciência do que foi possível conseguir no
passado.
As atitudes daquele tempo ainda estão presentes. Ainda há tendência de
considerar desejável qualquer intervenção governamental bem como de atribuir
todos os males ao mercado e de avaliar propostas novas de controle governamental
em sua forma ideal - isto é, como poderiam funcionar se dirigidas por homens
capazes e desinteressados, livres da pressão de gru-POS de interesses. Os
proponentes do governo limitado e da empresa livre ainda estão na defensiva.
Sem dúvida, as condições mudaram. Temos agora algumas décadas experiência de
intervenção governamental. Já não é mais preciso com-
parar o mercado como realmente opera e a intervenção governamental como poderia
idealmente operar. Podemos comparar o real com o real.
Se fizermos isso, ficará claro que a diferença entre a operação real do mercado
e sua operação ideal - embora realmente grande - não é nada em comparação com a
diferença entre os efeitos reais da intervenção do governo e os efeitos
pretendidos. Quem pode. hoje em dia, ver grandes esperanças para a liberdade e a
dignidade do homem na tirania maciça e no despotismo que prevalecem na Rússia?
Marx e Engels escreveram no Manifesto Comunista: "Os proletários nada têm a
perder, a não ser suas correntes. Eles têm um mundo a ganhar." Quem pode hoje em
dia considerar as correntes dos proletários na União Soviética mais suaves do
que as dos proletários dos Estados Unidos, da Inglaterra, da França, da Alemanha ou de qualquer outro país ocidental?
Examinemos de perto a situação em nosso país. Qual das grandes reformas das
décadas passadas alcançou seu objetivo? As boas intenções de seus proponentes
foram por acaso realizadas?
A regulamentação das estradas de ferro para proteger o consumidor tornou-se
rapidamente um instrumento por meio do qual as estradas de ferro podem se
proteger a si próprias da competição de novos rivais emergentes - às custas,
naturalmente, do consumidor.
Um imposto de renda estabelecido inicialmente na base de taxas baixas e, mais
tarde, utilizado como meio de redistribuição da renda em favor das classes mais
baixas tornou-se simples fachada, cobrindo brechas e procedimentos especiais que
tornam as taxas mais altas praticamente inúteis. Uma taxa uniforme de 23,5%
sobre as rendas presentemente consideradas como tributáveis produziria o mesmo
volume de arrecadação produzido pelo sistema atual de taxação graduada de 20 a
91%. Um imposto de renda destinado a reduzir a desigualdade e a promover a
difusão da riqueza teve como resultado na prática o reinvestimento dos lucros
das grandes companhias, favorecendo assim o crescimento de grandes empresas,
inibindo as operações do mercado de capitais e desencorajando a implantação de
novas empresas.
Reformas monetárias destinadas a promover a estabilidade na ativida-de econômica
e nos preços exacerbaram a inflação durante e após a Primeira Guerra Mundial e
provocaram em seguida um nível de instabilidade maior do que qualquer outro até
então registrado em nossa economia. As autoridades monetárias estabelecidas por
essas reformas tiveram a responsabilidade principal na conversão de uma séria
contratação econômica numa catástrofe como foi a Grarjde Depressão de 1929/1933.
Um sistema estabelecido, em grande parte, para evitar o pânico no setor bancário
produziu o pânico mais severo da história bancária americana.
Um programa para a agricultura destinado a ajudar fazendeiros pobres a sanar o
que se classificou de distorções básicas na organização da agricultura tornou-se
um escândalo nacional que malbaratou fundos públicos, dis-
torceu o uso de recursos, aplicou aos fazendeiros controles pesados e
detalhados,
interferiu seriamente com a política exterior dos Estados Unidos - e fez muito
pouco para ajudar o fazendeiro pobre.
Um programa destinado a melhorar as condições de habitação dos pobres, reduzir a
delinquência e contribuir para a remoção dos cortiços urbanos piorou as
condições de habitação dos pobres, contribuiu para a delinquência juvenil e
aumentou os problemas urbanos.
Em 1930, "trabalho" era sinónimo de "sindicatos de trabalhadores" para a
comunidade intelectual. A fé na pureza e virtude dos sindicatos de trabalhadores
era tão forte quanto a existente com relação ao lar e à maternidade. Extensa
legislação foi posta em vigor para proteger os sindicatos e promover relações
trabalhistas "justas". A força dos sindicatos cresceu. Por volta de 1950,
"sindicato
de trabalhadores" tornara-se quase um palavrão - não era mais sinónimo de
"trabalho"
nem podia mais ser considerado automaticamente uma expressão que significasse
coisas boas.
As medidas de seguro social foram postas em prática para tornar o recebimento de
assistência uma questão de direito e eliminar a necessidade de assistência
direta. Milhões recebem hoje os benefícios do seguro social. No entanto, as
listas de auxílio aumentam cada vez mais, bem como as importâncias gastas em
assistência direta.
Esta apresentação pode ser facilmente alongada: o programa de compra de prata de
1930, os projetos públicos de energia, os programas de ajuda externa nos anos
pós-guerra, os programas de redesenvolvimento urbano - estes e muitos outros
tiveram resultados diferentes e. em geral, com-pletamente opostos aos
pretendidos. Houve algumas exceções. As vias expressas, cortando o país em todas as direções,
magníficas represas sobre grandes rios, a rede de satélites constituem tributos
à capacidade do governo de utilizar grandes recursos. O sistema escolar, com
todos os seus defeitos e problemas, com todas as possibilidades de melhoramento
por meio do uso das forças do mercado, aumentou as oportunidades da juventude
americana e contribuiu para o desenvolvimento da liberdade. Constituem
testemunho do espírito público das dezenas de milhares de cidadãos que
trabalharam em comissões escolares e a disposição do público de aceitar taxas
pesadas para o que considera objetivo público. As leis antitruste Sherman. com
todos os seus problemas de administração detalhada, foram capazes de promover a
competição. As medidas para a saúde pública contribuíram para a redução das
moléstias infecciosas. As medidas assistenciais mitigaram a miséria e o
sofrimento. As autoridades locais frequentemente forneceram facilidades
essenciais à vida da comunidade. A lei e a ordem foram mantidas, embora em
inúmeras grandes cidades o desempenho desta função elementar de governo tenha
estado bem longe do satisfatório. Como cidadão de Chicago, sei do que estou
falando. i Se se fizer um balanço, porém, sem dúvida o resultado será lúgubre.
A maior parte dos empreendimentos realizados pelo governo nas últimas décadas
não alcançou os objetivos previstos. Os Estados Unidos continuaram a progredir;
seus cidadãos estão mais bem alimentados, mais bem vestidos, mais bem instalados
e dispõem de melhores transportes; as distinções sociais e de classe diminuíram;
os grupos minoritários estão em situação menos desvantajosa; a cultura popular
desenvolveu-se. Tudo isso foi o resultado da iniciativa e do esforço de
indivíduos cooperando através do mercado livre. As medidas governamentais
prejudicaram em vez de favorecer tal desenvolvimento. Fomos capazes de suportar
e superar tais medidas unicamente devido à extraordinária fecundidade do
mercado.
A mão invisível fez muito mais pelo progresso do que a mão visível pelo
retrocesso.
Constitui simples acidente o fato de tantas reformas governamentais das últimas
décadas terem dado em nada? Que tantas grandes esperanças tenham sido reduzidas
a cinzas? Teriam simplesmente os programas algo de errado?
Acho que a resposta é claramente negativa. O erro central dessas medidas reside
no fato de tentarem, por meio do governo, obrigar as pessoas a agir contra seus
interesses imediatos a fim de promoverem um suposto interesse geral. Tentam
resolver o que se supõe um conflito de interesses, ou uma diferença de pontos de
vista com relação a interesses, não por meio de uma estrutura que elimine o
conflito ou tentando persuadir as pessoas a ter interesses diferentes, mas
forçando as pessoas a agir contra seu próprio interesse. Substituem os valores
dos participantes pêlos que estão de fora; alguns dizendo a outros o que é bom
para eles ou o governo tirando de alguns para beneficiar outros. Estas medidas
enfrentam, portanto, uma das mais poderosas e mais criativas forças conhecidas
pelo homem - a tentativa de milhões de indivíduos de defender seus interesses,
de viver suas vidas de acordo com seus próprios valores. É esta a razão
principal de as medidas haverem tido, tão frequentemente, efeito contrário ao
pretendido. É também uma das maiores forças da sociedade livre e explica por que
os regulamentos governamentais não conseguem dominá-la.
Os interesses de que falo não são simplesmente estreitos e acanhados interesses
próprios. Ao contrário, eles incluem todo o conjunto de valores caros aos homens
e pêlos quais estão dispostos a gastar suas fortunas e sacrificar suas vidas. Os
alemães que perderam suas vidas lutando contra Adolf Hitler estavam lutando
pêlos seus interesses. E estão também lutando por seus interesses os homens e
mulheres que se dedicam a atividades religiosas, educacionais e filantrópicas.
Naturalmente tais interesses são os principais para poucos homens. É uma das
virtudes da sociedade livre permitir a tais interesses que se 'desenvolvam, em
vez de subordiná-los aos estreitos interesses materialistas da maioria da
humanidade. É por isso que as sociedades capitalistas são menos materialistas do
que as coletivistas. Por que, então, somos sós, que somos contra o
estabelecimento de novos programas governamentais e tentamos reduzir a já
demasiada ingerência do
governo, que temos de nos justificar? Deixamos a resposta a Dicey: "O efeito
benéfico da intervenção do Estado, especialmente sob a forma de legislação, é
direto, imediato e, para assim dizer, visível, enquanto seus efeitos maléficos
são graduais e indiretos e permanecem fora de vista. E a maioria das pessoas não considera que os inspetores do Estado podem ser incompetentes, descuidados ou
até mesmo corruptos. Poucos percebem a verdade indiscutível de que a ajuda do
Estado liquida com a auto-ajuda. Assim, a maioria dos homens acaba quase
necessariamente por favorecer a intervenção governamental. Essa inclinação
natural só pode ser contrabalançada pela existência, em determinada sociedade,
da inclinação a favor da liberdade individual, isto é, do /aissez-/aire. O
simples declínio da confiança na auto-ajuda - e é certo que tal declínio tenha
ocorrido - é por si só suficiente para o aumento da legislação levando ao
socialismo".1
A preservação e expansão da liberdade estão atualmente ameaçadas de duas
direções. Uma das ameaças é óbvia e clara. É a ameaça externa vinda dos homens
maus do Kremlin que prometem destruir-nos. A outra ameaça é bem mais sutil. É a
ameaça interna vinda de homens de boas intenções e de boa vontade que nos
desejam reformar. Impacientes com a lentidão da persuasão e do exemplo para
levar às grandes reformas sociais que imaginam, estão ansiosos para usar o poder
do Estado a fim de alcançar seus fins e confiantes em sua capacidade de fazê-lo.
Entretanto, se subirem ao poder, não conseguirão realizar seus fins imediatos e,
além disso, produzirão um estado coletivo diante do qual recuarão horrorizados e
do qual serão as primeiras vítimas. A concentração do poder não é tornada
inofensiva pelas boas intenções de quem a estabelece.
Infelizmente, as duas ameaças se reforçam uma à outra. Mesmo se formos capazes
de evitar o holocausto nuclear, a ameaça do Kremlin obriga-nos a dedicar boa
parte de nossos recursos ã defesa militar. A importância do governo como
comprador de boa parte de nossa produção e. em alguns casos, como comprador
exclusivo da produção de algumas firmas e indústrias já concentra um volume
perigoso de poder econômico nas mãos das autoridades políticas, altera as
circunstâncias em que o mercado opera e dessa forma e de tantas outras põe em
perigo o mercado livre. Este perigo nós não podemos evitar. Mas não precisamos
intensificá-lo por meio da continuação do atual desenvolvimento da intervenção
do governo cm áreas não relacionadas com a defesa militar da nação e da adoção
de novos programas governamentais - desde a assistência médica à velhice até a
exploração lunar.
Como disse Adam Smith. "há muita degradação numa acão". Nossa estrutura básica
de valores e a rede integrada de instituições livres será capaz de resistir a
muitos golpes. Acredito que sejamos capazes de preservar e estender a liberdade,
apesar da importância dos programas militares e apesar do poder econômico já
concentrado em Washington. Mas tal fato será possível apenas se despertarmos
para a ameaça que estamos enfrentando, se persuadirmos nossos concidadãos de que
as instituições livres oferecem uma via mais segura, embora às vezes mais lenta,
para a obtenção dos fins que perseguem, em comparação com o poder coercitivo do
Estado. Algumas mudanças que já surgem no clima intelectual constituem uma boa
esperança.
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Capitalismo e Liberdade - Milton Friedman
Non-Fiction"Este livro é de grande atualidade, em especial na América Latina. Sua ideia central é a de que o mesmo Estado que constrange a liberdade econômica termina por também tolher a liberdade individual. É o que todos nós vivenciamos no cotidiano da Améri...