Papel do governo numa sociedade livre
Uma objeção comum às sociedades totalitárias é a de que estas propuseram que o
fim justifica os meios. Tomada literalmente, essa objeção parece ilógica. Se o
fim não justificar os meios, quem o fará? Mas essa posta fácil não afasta a
objeção, simplesmente mostra que a objeção está bem colocada. Negar que o fim
justifica os meios significa afirmar, retamente, que o fim em questão não é o
fim último, e que o fim utilizaria o uso dos meios adequados. Quer seja ou não
desejável, qualquer fim só alcançável pelo uso de meios indevidos deve ceder o
lugar para o mais básico de usar meios devidos.
Para o liberal, os meios apropriados são a discussão livre e a coo cão
voluntária, o que implica considerar inadequada qualquer form coerção. O ideal é
a unanimidade, entre indivíduos responsáveis, ale; da na base de discussão livre
e completa. Esta é outra maneira de ex sar o objetivo da liberdade enfatizado no
capítulo anterior.
Desse ponto de vista, o papel do mercado, como já ficou dito, é permitir
unanimidade sem conformidade e ser um sistema de efetiva n sentação
proporcional.
De outro lado, o aspecto característico da ação vês de canais explicitamente
políticos é o de tender a exigir ou ref< uma conformidade substancial. A questão
típica deve ser decidida meio de um "sim" ou um "não"; no máximo, pode ser
fornecida a op nidade para um número bem limitado de alternativas. Mesmo o uso d
presentação proporcional, em sua forma explicitamente política, não e esta
conclusão. O número de grupos separados que podem de fato se presentados é
enormemente limitado em comparação com a representação proporcional do mercado.
Mais importante ainda, o fato de o produto ter que ser em geral uma Fei
aplicável a todos os grupos, em vez de ato legislativos separados para cada
"parte"
representada, significa que a representação proporcional em sua versão política
não só impede unanimidade sem conformidade como também tende à fragmentação e à
ineficiência.
Por isso mesmo, destrói qualquer consenso sobre o qual a unanimidade om
conformidade poderia basear-se.
Há, evidentemente, determinadas questões com relação às quais a re->resentação
proporcional efetiva é impossível. Eu não posso ter o total de lefesa nacional
que desejo e você ter um total diferente.! Com respeito a ais assuntos
indivisíveis, podemos discutir, argumentar e voltar. Mas, uma /ez alcançada uma
decisão, temos que nos conformar. É precisamente a >xistência destes assuntos
indivisíveis - proteção do indivíduo e da nação :ontra a coerção são claramente
os mais básicos - que impede se possa :ontar, exclusivamente, com a ação
individual através do mercado. Se te-TIOS que usar alguns de nossos recursos
para estes assuntos indivisíveis, dermos utilizar os canais políticos para
reconciliar as diferenças.
O uso dos canais políticos, embora inevitável, tende a exigir muito da :oesão
social, essencial a toda sociedade estável. A exigência é menor se a :
oncordância
para a ação conjunta precisa ser alcançada somente para um lúmero limitado de
questões sobre as quais as pessoas de qualquer forma têm pontos de vista comuns.
Qualquer aumento do número de questões, para as quais é necessária uma
concordância explícita, sobrecarrega demais os fios delicados que mantêm uma
sociedade coesa. Se chegar a questões nas quais os homens estão profundamente
envolvidos, mas de pontos de vista diferentes, pode ocorrer o rompimento da
sociedade. Diferenças fundamentais sobre valores básicos quase nunca, ou nunca
mesmo, podem vir a ser resolvidas nas urnas; na verdade, só podem ser decididas,
embora não resolvidas, por meio de um conflito. As guerras civis e religiosas da
história constituem testemunhos sangrentos desse julgamento.
O uso amplo do mercado reduz a tensão aplicada sobre a intrincada rede social
por tomar desnecessária a conformidade, com respeito a qualquer atívidade que
patrocinar. Quanto maior o âmbito de atividades cobertas pelo mercado, menor o
número de questões para as quais serão requeridas decisões explicitamente
políticas e, portanto, para as quais será necessário chegar a uma concordância.
Como contrapartida, quanto menor o número de questões sobre as quais será
necessária a concordância, tanto maior probabilidade de obter concordâncias e
manter uma sociedade livre.
A unanimidade é, evidentemente, um ideal. Na prática, não nos podemos permitir
nem o tempo, nem o esforço necessário a obter a unanimidade completa a respeito
de cada questão. Devemos forçosamente aceitar um pouco menos. Somos, portanto,
levados a aceitar a regra da maioria numa forma ou noutra como um expediente. A
afirmativa de ser a regra da maioria um expediente, em vez de um princípio
básico em si próprio, fica claramente demonstrada pelo fato de nossa disposição
de recorrer a ela e a dimensão da maioria que estabelecemos depender da
seriedade do assunto envolvido. Se a questão é de pequena importância e a
minoria não se importar muito de ser derrotada, uma simples pluralidade será
suficiente. De outro lado, se a minoria estiver muito envolvida na questão em
foco,
mesmo uma maioria simples não será suficiente. Poucos concordariam em que um
assunto como a liberdade de palavra, por exemplo, seja decidido por maioria
simples. Nossa estrutura legal está cheia dessas distinções a respeito de tipos
de questões que exigem diferentes tipos de maiorias. No extremo, estão as
questões pertencentes à própria Constituição. Estes princípios são tão
importantes que não permitiremos com relação a eles a mínima concessão a
expedientes. Algo, como consenso essencial, foi obtido inicialmente para aceitá-
los,
e exigimos algo, como consenso essencial, para alterá-los.
A instrução para evitar a regra da maioria com relação a certos tipos de
questões, que faz parte da nossa Constituição e de outras semelhantes, escritas
ou não, as recomendações específicas nelas existentes proibindo a coerção de
indivíduos devem ser consideradas como o resultado de discussão livre e como
refletindo a unanimidade essencial a respeito de meios.
Passarei agora a considerar de modo mais específico, embora ainda geral, as
áreas que não podem ser tratadas em termos de mercado - ou que só podem sê-lo a
um tão alto custo que o uso dos canais políticos se torna mais conveniente.
O governo como legislador e árbitro
É importante distinguir entre as atividades diárias das pessoas e a estrutura
habitual e legal dentro da qual estas se desenvolvem. As atividades diárias
assemelham-se às ações dos participantes de um jogo quando estão empenhados
nele;
a estrutura às regras do jogo que jogam. Do mesmo modo que um bom jogo exige que
os jogadores aceitem tanto as regras quanto o árbitro encarregado de interpretá-
las
e de aplicá-las, uma boa sociedade exige que seus membros concordem com as
condições gerais que presidirão as relações entre eles, com o modo de arbitrar
interpretações diferentes dessas condições e com algum dispositivo para garantir
o cumprimento das regras comumente aceitas. Como nos jogos, também nas
sociedades, a maior parte das condições gerais constituem o conjunto de
costumes,
aceitos automaticamente. Quando muito, só consideramos explicitamente pequenas
modificações introduzidas nele, embora o efeito cumulativo de uma série de
pequenas modificações possa vir a constituir uma alteração drástica nas
características do jogo ou da sociedade. Tanto nos jogos quanto na sociedade,
nenhum conjunto de regras pode prevalecer, a não ser que a maioria dos
participantes as obedeça durante a maior parte do tempo, sem a necessidade de
sanções externas, a não ser, portanto, que exista um consenso social subjacente.
Mas, não podemos contar somente com o costume ou com esse consenso para
interpretar e pôr as regras em vigor; é necessário um árbitro. Esses são, pois,
os papéis básicos do governo numa sociedade livre - prover os meios para
modificar as regras, regular as diferenças sobre seu significado, e garantir o
cumprimento das regras por aqueles que, de outra forma, não se submeteriam a
elas.
A necessidade do governo nesta área surge porque a liberdade absoluta e'
impossível. Por mais atraente que possa o anarquismo parecer como filosofia, ele
não é praticável num mundo de homens imperfeitos. As liberdades dos homens podem
entrar em conflito e quando isso acontece a liberdade de uns deve ser limitada
para preservar a de outros - como está ilustrado por uma frase de um juiz da
Suprema Corte de Justiça: "Minha liberdade de mover meu punho deve ser limitada
pela proximidade de seu queixo.
O problema mais importante para estabelecer as atividades apropriadas do governo
é como resolver tais conflitos entre as liberdades dos diversos indivíduos. Em
alguns casos, a resposta é fácil. Não é muito difícil obter unanimidade para a
proposição de que a liberdade de um homem de matar seu vizinho deve ser
sacrificada para preservar a liberdade do outro homem de viver. Em outros casos,
a resposta é difícil. .Na área econômica, um problema importante surge a
respeito do conflito entre a liberdade de se associar e a liberdade de competir.
Que significado se deve dar ao adjeti-vo "livre" quando modifica "empresa"? Nos
Estados Unidos, "livre" foi entendido como significando que todos têm a
liberdade de fundar uma empresa - o que significa que as empresas existentes não
têm a liberdade de manter os competidores fora do campo, a não ser com a venda
de produtos melhores ao mesmo preço ou dos mesmos a preço mais baixo. Na
tradição continental, de outro lado, significa em geral que as empresas têm a
liberdade de fazer o que quiserem, incluindo a fixação de preços, a divisão do
mercado e a adoção de outras técnicas para manter afastados os competidores em
potencial.^falvez o problema específico mais importante, neste caso, diga
respeito à associação entre trabalhadores, onde o problema da liberdade de
associar-se e da liberdade de competir apresenta-se de modo
mais agudo.
Há uma área econômica, ainda mais básica, onde a resposta é ao mesmo tempo
difícil e importante - isto é, a definição dos direitos de propriedade. A noção
de propriedade, como foi desenvolvida ao longo dos séculos e está contida em
nossos códigos legais, tornou-se de tal forma parte de nosso pensamento que já a
consideramos evidente e não percebemos o quanto a propriedade em si e os
direitos que a posse da propriedade confere são criações sociais complexas - e
não proposições evidentes por si. Por exemplo, a propriedade da terra e a minha
liberdade de usar minha propriedade me permitem negar aos outros direitos de
voar sobre minhas terras com seu avião? Ou o direito de usar seu avião tem
precedência? Ou o caso dependerá da altura em que estiverem voando? Ou do
barulho que fizerem? Exigirá a troca voluntária que eles me paguem pelo
privilégio de voar sobre as minhas terras? Ou deverei eu pagar-lhes para evitar
voar so-
bre elas? A simples menção de roya/ties, copyrights, patentes, ações de
sociedades anónimas e outros direitos podem talvez enfatizar o papel das regras
sociais, geralmente aceitas na definição de propriedade. Mas podem também
sugerir que, em inúmeros casos, a existência de uma definição bem especificada e
amplamente aceita de propriedade é muito mais importante do que o conteúdo da
definição como tal.
Outra área econômica que coloca problemas particularmente difíceis é a do
sistema monetário. A responsabilidade do governo pelo sistema monetário já foi
há tempos reconhecida. Está explicitamente declarada na disposição
constitucional que dá ao Congresso o poder de "cunhar moeda, regular seu valor e
o de moedas estrangeiras". Não há provavelmente nenhuma outra área da atividade
econômica com relação à qual a ação do governo tenha sido tão uniformemente
aceita. Esta aceitação tácita e automática da responsabilidade do governo torna
a compreensão das bases de tal responsabilidade ainda mais necessária, uma vez
que aumenta o perigo de o objetivo do governo passar de atividades que são para
as que não são apropriadas a uma sociedade livre; ou passar da ação de prover
estrutura monetária para a de partilhar os recursos entre os indivíduos.
Discutiremos esse problema em detalhes no capítulo III.
Em suma, a organização de atividade econômica através da troca voluntária
presume que se tenha providenciado, por meio do governo, a necessidade de manter
a lei e a ordem para evitar a coerção de um indivíduo por outro; a execução de
contratos voluntariamente estabelecidos; a definição do significado de direitos
de propriedade, a sua interpretação e a sua execução; o fornecimento de uma
estrutura monetária.
Ação através do governo na base de monopólio técnico e efeitos laterais
O papel do governo, até aqui considerado, é o de fazer alguma coisa que o
mercado não pode fazer por si só, isto é, determinar, arbitrar e pôr * em vigor
as regras do jogo. Podemos também querer fazer por meio do governo algumas coisas que poderiam ser feitas pelo mercado - face a certas condições técnicas
ou semelhantes que tornam difícil tal execução. Tra-i ta-se de casos em que a
troca, estritamente voluntária, é extremamente cara ou praticamente impossível.
Há duas classes gerais de casos desse tipo: monopólios e outras imperfeições do
mercado e os efeitos laterais.
A troca só é verdadeiramente voluntária quando existem alternativas praticamente
equivalentes. O monopólio implica ausência de alternativas e inibe, portanto, a
liberdade efetiva da troca. Na prática, o monopólio frequentemente, se não
geralmente, origina-se de apoio do governo ou de acordos conspiratórios. Com
respeito a isto, a solução é evitar o favoreci-
mento de monopólios pelo governo ou estimular a efetiva aplicação de regras como
as que fazem parte de nossas leis antitruste. Entretanto o monopólio também pode
surgir por ser tecnicamente eficiente e haver um só produtor ou uma só empresa.
Eu ouso afirmar que tais casos são mais limitados do que se supõe mas, de fato,
existem. Um exemplo simples é o da prestação de serviços de telefone a uma
comunidade. Estes são os casos a que me refiro com a denominação de monopólio
"técnico'^
Quando condições técnicas tornam o monopólio produto natural das forças do
mercado competitivo, há apenas três alternativas à disposição: monopólio
privado,
monopólio público ou regulação pública. Asjrês são inconvenientes, e temos,
portanto, que escolher entre três males.jHenry Si-mons, observando a regulação
pública do monopólio nos Estados Unidos, achou os resultados tão inconvenientes
que concluiu ser o monopólio público o menor dos males. Walter Eucken, notável
liberal alemão, estudando o monopólio público das estradas de ferro na Alemanha,
achou os resultados tão inconvenientes que concluiu ser a regulação pública o
menor dos males. Após ter estudado a posição dos dois, acabei por concluir
relutantemente que, se tolerável, o monopólio privado pode ser o menor dos
males.
Se a sociedade fosse estática de modo que as condições que deram origem ao
monopólio técnico permanecessem sempre presentes, eu "teria pouca confiança
nessa solução. Numa sociedade em mudança rápida, entretanto, as condições que
levam ao monopólio técnico alteram-se frequentemente e acho que tanto a
regulação pública quanto o monopólio público são provavelmente menos sensíveis a
tais mudanças de condições, menos fáceis de serem eliminados do que o monopólio
privado.
As estradas de ferro nos Estados Unidos constituem um exemplo excelente. Uma boa
quantidade de monopólio nas estradas de ferro foi talvez inevitável em termos
técnicos no século XIX. Foi esta a justificação para o Interstate Commerce
Commission. Mas as condições mudaram. O surgimento das estradas de rodagem e do
transporte aéreo reduziu o elemento de monopólio nas estradas de ferro a
proporções negligenciáveis. Entretanto, não eliminamos o ICC. Em vez disso, o
ICC, que começou como uma agência para proteger o público da exploração das
estradas de ferro, tornou-se uma agência para proteger as estradas de ferro da
competição por parte de caminhões e outros meios de transporte e, mais
recentemente, até mesmo para proteger as companhias de caminhões existentes
contra a entrada de novas empresas no ramo. Do mesmo modo, na Inglaterra, quando
as estradas de ferro foram nacionalizadas, as companhias de caminhões foram a
princípio incluídas no monopólio estatal. Se as estradas de ferro não tivessem
nunca sido submetidas a regulação nos Estados Unidos, é praticamente certo que
arualmente o transporte, incluindo as estradas de ferro, seria uma indústria
altamente competitiva, com poucos ou nenhum elemento de monopólio.
A escolha entre os males do monopólio privado, do monopólio público e da
regulação pública não pode, entretanto, ser feita de uma vez por todas,
independentemente das circunstâncias presentes. Se o monopólio técnico diz
respeito a um serviço ou comodidade como essencial e se o poder do monopólio é
considerável, mesmo os efeitos a curto prazo do monopólio privado não regulado
podem ser intoleráveis - e tanto a regulação pública quanto o monopólio público
passam a constituir um mal menor.
O monopólio técnico pode, em certas ocasiões, justificar um monopólio público de
facto. Não pode por si só justificar um monopólio público baseado na premissa de
se tornar ilegal qualquer competição no ramo. Por exemplo, não há nenhum modo de justificar nosso atual monopólio do serviço postal. Pode-se argumentar que o
transporte de correspondência é o menor dos males. A partir desse ponto de
vista,
pode-se talvez justificar um serviço postal do governo mas não a lei atual que
torna ilegal o transporte de correspondência por qualquer outra organização. Se
é um monopólio técnico, ninguém será capaz de competir com o governo. Se não é,
não é, não há razão para que o governo se envolva em tal atividade. A única
maneira- de descobrir é dar liberdade às outras pessoas para entrarem no
negócio.
A razão histórica pela qual nós temos um monopólio do serviço postal é
constituída pelo fato de que o Pony Express realizava tão bom trabalho
transportando a mala através do continente que, quando o governo introduziu o
serviço transcontinental, não pôde competir efetivamente e perdeu dinheiro. O
resultado foi uma lei tornando ilegal o transporte de correspondência por parte
de qualquer outra organização. Por isso a Adams Express Company é hoje um truste
de investimento ao invés de ser uma companhia operante. Eu imagino que, se a
entrada no negócio de transporte de correspondência fosse aberta a todos,
haveria um bom número de empresas tentando participar e esta arcaica indústria
seria revolucionada em pouco tempo.
A segunda classe geral de casos em que a troca estritamente voluntária é
impossível tem origem quando ações de indivíduos têm efeitos sobre outros - e
pelas quais não é possível recompensá-los ou puni-los. Este é o problema dos
"efeitos
laterais". Um exemplo óbvio é a poluição de um rio. O homem que polui um rio
está, com efeito, forçando os outros a trocar água boa por água má. Estes outros
indivíduos podem estar dispostos a fazer a troca por um preço. Mas não é
possível para eles. agindo individualmente, evitar a troca ou obter compensação
apropriada.
Um exemplo menos óbvio é o das estradas. Neste caso. é tecnicamente possível
identificar os usuários e, portanto, cobrar uma taxa pelo uso das estradas e ter
assim uma operação privada. Entretanto, para as estradas de acesso geral,
envolvendo inúmeros pontos de entrada e de saída, o custo da cobrança seria
extremamente alto se tivesse que se estabelecer um pré-
ço pêlos serviços específicos recebidos por cada indivíduo, devido à necessidade
de implantar postos de recolhimento em todas as entradas. A taxa sobre a
gasolina é um modo mais barato de cobrar aos indivíduos taxas proporcionais à
sua utilização das estradas. Esse método, contudo, é tal que o pagamento em
questão não pode ser estreitamente identificado com a utilização do serviço.
Conseqüentemente, é quase impossível ter empresas privadas fornecendo o serviço
e coletando as taxas sem estabelecer um extenso monopólio privado.
Tais considerações não se aplicam às barreiras de pedágio de longa distância,
com alta densidade de tráfego e acesso limitado. Para estes casos, os custos da
coleta são pequenos e, em muitos casos, estão sendo agora pagos. Como há em
geral numerosas alternativas, não surgem problemas sérios de monopólio. Há,
portanto, inúmeras razões para que devessem ser de propriedade e operação
privadas. Assim, a empresa que administrasse as estradas deveria receber as
taxas da gasolina pagas pelo uso delas.
Os parques são exemplos interessantes porque ilustram a diferença entre casos
que podem e casos que não podem ser justificados pêlos efeitos laterais e porque
quase todo o mundo à primeira vista considera a organização de Parques Nacionais
como uma função obviamente válida do goVer-no. De fato, entretanto, os efeitos
laterais podem justificar um parque público numa cidade, mas não justificam um
parque nacional, como o de Yel-lowstone National Park ou o Grand Canyon. Qual a
diferença fundamental entre os dois? Para o parque na cidade, é extremamente
difícil identificar as pessoas que se beneficiam dele e fazê-las pagar, pêlos
benefícios que recebem. Se há um parque no meio da cidade, as casas em todos os
lados obtêm o benefício do espaço livre e as pessoas que passam por ele ou em
torno dele também se beneficiam. Manter coletores nos portões ou impor taxas
anuais por janela voltada para o parque seria muito caro e difícil. As entradas
para um parque nacional como o de Yellowstone, de outro lado, são poucas; a
maioria das pessoas que chegam a ele permanecem por longo tempo e, portanto, é
perfeitamente viável instalar balcões de coleta nos portões e cobrar taxas de
entrada. Isso está sendo feito de fato, embora as taxas não cubram os custos
totais. Se o público deseja esse tipo de organizações a ponto de pagar
convenientemente por elas, as empresas privadas teriam todos os incentivos para
criarem tais parques. E, é claro, há muitas empresas privadas dessa natureza.
Não posso imaginar nenhum tipo de efeito lateral ou efeitos de monopólio
importantes que justifiquem a ativida-de governamental nessa área.
As considerações que fiz sob a denominação de efeitos laterais foram usadas para
racionalizar quase todas as intervenções. Em muitos casos, contudo, essa
racionalização não corresponde a uma aplicação legítima dos efeitos laterais. Os
efeitos laterais podem ser encarados de dois modos. Po-
dem ser uma razão para limitar as atividades do governo ou para expandi-las Os
efeitos laterais impedem a troca voluntária porque é difícil identificar os
efeitos em terceiros e medir sua magnitude, mas essa dificuldade está presente
do mesmo modo na atividade governamental. É difícil saber quando os efeitos
laterais são suficientemente amplos para justificar determinados custos
destinados a eliminá-los e ainda mais difícil distribuir os custos de modo
apropriado. Conseqüentemente, quando o governo se empenha em certas atividades
para eliminar efeitos laterais, estará em parte introduzindo um novo conjunto de
efeitos laterais por não poder taxar ou compensar os indivíduos de modo
apropriado. Quais os efeitos laterais mais graves
- os originais ou novos - isto só poderá ser julgado a partir dos fatos do caso
individual e, mesmo assim, de modo aproximado. Além disso, o uso do governo para
eliminar os efeitos laterais como tal tem outro efeito lateral extremamente
importante que não está relacionado com a ocasião em questão para a ação
governamental. Toda a ação de intervenção governamental limita a liberdade
individual diretamente e ameaça a preservação da liberdade indiretamente, pelas
razões já discutidas no primeiro capítulo.
-£• Nossos princípios não fornecem uma linha clara e definida de demarcação
quanto ao uso apropriado da ação governamental para realizar em conjunto o que é
importante a cada um de nós realizar individualmente por meio da troca
estritamente voluntária. Em cada caso particular em que se proponha a
intervenção, devefnos organizar uma folha de verificação, anotando separadamente
as vantagens e desvantagens. Nossos princípios indicam-nos que itens devemos
colocar num ou no outro lado, e nos dão alguns fundamentos quanto à importância
que devemos dar a uns e outros. Muito especialmente, devemos sempre examinar os
riscos envolvidos em cada proposta de intervenção governamental, seus efeitos
laterais na ameaça à liberdade, e dar a este efeito um peso considerável. Que
peso dar a este aspecto e aos outros itens vai depender das circunstâncias em
questão.] Se, por exemplo, a intervenção governamental existente é pequena,
podemos dar um peso pequeno aos efeitos negativos de uma intervenção
governamental adicional. Esta é uma razão importante porque inúmeros liberais,
como Henry Simons, escrevendo numa época em que o governo era pequeno em
comparação com os padrões atuais, estavam dispostos a permitir que o governo se
envolvesse em atividades que os liberais de hoje não aceitariam agora que o
governo se tornou tão poderoso.
Ação através do governo em bases paternalistas
A liberdade é um objetivo válido somente para indivíduos responsáveis. Não
acreditamos em liberdade para crianças e insanos A necessidade de traçar uma
linha entre indivíduos responsáveis e outros é inevitável; con-
tudo, significa que existe uma ambiguidade essencial em nosso objetivo último de
liberdade. O paternalismo é inevitável para aqueles que definimos como
irresponsáveis.
O caso mais claro é talvez o dos insanos. Estamos dispostos a não permitir que
desfrutem de liberdade, mas, ao mesmo tempo, não podemos permitir que os
eliminem. Seria ótimo se pudéssemos contar com a ativida-de voluntária de
indivíduos para alojar e cuidar dos insanos. Mas acho que não devemos afastar a
possibilidade de que tais atividades filantrópicas sejam inadequadas, quando
menos por causa do efeito lateral envolvido no fato de eu me beneficiar se outro
homem contribuir para o cuidado dos insanos. Por esta razão, podemos achar mais
conveniente deixar que sejam cuidados pelo governo.
As crianças constituem um caso mais difícil. A unidade operacional última de nossa sociedade não é o indivíduo, mas a família. Contudo, a aceitação da
família como a unidade repousa de modo considerável mais num expediente do que
num princípio. Acreditamos, em geral, que os pais estão mais categorizados para
proteger seus filhos e para tratar que se desenvolvam corno indivíduos
responsáveis, para os quais a liberdade é adequada. Mas não acreditamos na
liberdade dos pais para fazer o que quiserem com outras pessoas. As crianças são
indivíduos responsáveis em potencial, e quem acredita em liberdade acredita em
proteger seus direitos últimos.
Para colocar o problema em outros termos, as crianças são, ao mesmo tempo,
consumidoras de produtos e membros responsáveis, em potencial, da sociedade. A
liberdade de os indivíduos usarem seus recursos econômicos do modo que desejarem
inclui a liberdade de usá-los para ter crianças - para comprar, por assim dizer,
os serviços de crianças como uma forma particular de consumo. Mas, uma vez que
tal escolha tenha sido feita, as crianças têm um valor em si próprias e por si
próprias e uma liberdade que lhes pertence e que não consiste, simplesmente,
numa extensão da liberdade dos pais.
A justificação paternalista para a atividade governamental é a mais incómoda
para um liberal; ela envolve a aceitação de um princípio - o de que alguns podem
decidir por outros - que considera questionável em inúmeros casos e que lhe
parece, muito justamente, o ponto característico de seus principais inimigos
intelectuais - os prepotentes do coletivismo em qualquer uma de suas formas -
quer se trate de comunismo, de socialismo ou do estado de bem-estar social.
Entretanto, não há nenhuma vantagem em considerar os problemas como mais simples
do que realmente são. Não há possibilidade de evitar o uso de algumas medidas
paternalistas. Dicey escreveu em 1914 a respeito de uma lei para a proteção dos
deficientes mentais:
"O Mental Di/iciency Act constitui o primeiro passo ao longo de um caminho em
que nenhum homem sensato poderia declinar entrar; mas que. ao mesmo
- -._.". ^^^ii^Lvni^L l_i vr\C tempo se percorrido para além do necessário,
trará aos homens de Estado dificuldades que não poderão resolver sem uma
considerável interferência na liberdade individual .'
Não há nenhuma fórmula que nos ensine onde parar. Temos que contar com nosso
julgamento falível e, tendo chegado a uma decisão com habili dade para persuadir
nossos concidadãos de que se trata de uma decisão correia ou, com a habilidade
deles de nos persuadirem a mudar nossos pontos de vista. Temos que colocar nossa
fé, aqui como em outras quês toes, num consenso alcançado por homens imperfeitos
e preconceltuosos por meio da discussão e do ensaio e erro. ^HUUSOS,
Conclusão
Um governo que mantenha a lei e a ordem; defina os direitos de propriedades;
sirva de meio para a modificação dos direitos de propriedade e de outras regras
do jogo econômico; julgue disputas sobre a interpretação das regras; reforce
contratos; promova a competição; forneça uma estrutura monetária; envolva-se em
atividades para evitar monopólio técnico e evite os efeitos laterais
considerados como suficientemente importantes para justificar a intervenção do
governo; suplemente a caridade privada e a família na proteção do irresponsável,
quer se trate de um insano ou de uma criança; um tal governo teria,
evidentemente, importantes funções a desempenhar. D Ijberal consistente não é um
anarquista.
Entretanto, fica também óbvio que tal governo teria funções claramente limitadas
e não se envolveria numa série de atividades, agora desenvolvidas pêlos Governos
Federal e Estadual nos Estados Unidos e pêlos órgãos equivalentes em outros
países do hemisfério ocidental. Os capítulos seguintes tratarão com detalhes de
algumas destas atividades, algumas discutidas acima. Ajudará a dar um sentido de
proporção ao papel que o liberal atribui ao governo, listando simplesmente, ao
encerrar este capítulo, algumas das atividades atualmente desempenhadas pelo
Governo dos Estados Unidos e que não podem, até onde sou capaz de perceber, ser
validamente justificadas em termos dos princípios acima apresentados:
1. Programa de apoio à equivalência de preços para a agricultura.
2. Tarifas sobre as importações e restrições às exportações, como as atuais cotas de importação de petróleo, cotas de açúcar etc.
1 DICEY A v
tO
3. Controle governamental da produção, quer sob a forma de progra-nas fazendas,
quer através da divisão proporcional do petróleo conforme eito pela Texas
Railroad Commission.
4. Controle de aluguéis, como ainda praticado em Nova York, ou con-roles mais
gerais de preços e salários como os impostos durante e após a segunda Guerra
Mundial.
5. Salários mínimos legais ou preços máximos legais, como o máximo egal de zero
na taxa de juros que pode ser paga para depósitos por bancos :omerciais ou as
taxas máximas legalmente estabelecidas que podem ser nagas nos depósitos de
poupança e depósitos a prazo.
6. Regulação detalhada de indústrias, como a regulação de transporte Dela
Interstate Commerce Commission. O fato tinha alguma justificação em :ermos de
monopólio técnico quando inicialmente introduzido para estradas de ferro; não
tem nenhuma agora para qualquer tipo de transporte. Ou-:ro exemplo é a
regulamentação-detalhe da atividade bancária.
7. Um exemplo semelhante, mas que merece menção especial devido ã sua censura
implícita e violação de palavra, é o controle do rádio e televisão pela Federal
Communications Commission.
8. Os atuais programas sociais de seguros, especialmente os que envolvem a
velhice e a aposentadoria, obrigando as pessoas a: a) gastar uma fra-ção
estabelecida de sua renda na compra de uma anuidade de aposentadoria; b) comprar
a anuidade de uma empresa pública.
9. A exigência de licenciamento em diversas cidades e Estados que restringem
determinados empreendimentos ou ocupações ou profissões a pessoas que possuem
uma licença, quando a licença constitui mais do que o recibo de uma taxa que
qualquer um que o deseje possa pagar.
10. Os programas de habitação e tantos programas destinados direta-mente a
patrocinar a construção residencial, tais como as garantias para hipotecas F. H.
A. e V. A.
11. A convocação de homens para serviço militar em tempo de paz. A prática
apropriada ao mercado livre seria a organização de uma força militar voluntária,
ou seja, empregar homens para servir. Não há justificação para que não se pague
o preço necessário à obtenção do número conveniente de homens. A organização
atual é injusta e arbitrária, interfere seriamente com a liberdade dos jovens
para planejar suas vidas e é, provável-
mente, mais cara do que a alternativa do mercado. (O treinamento militar
universal, a fim de criar uma reserva para o tempo de guerra, é um problema
diferente e pode ser justificado em termos liberais.)
12. Parques nacionais, comentados acima.
13. A proibição legal do transporte de correspondência, com fins lucra-
tivos.
14. A cobrança pública do pedágio nas estradas, comentada acima. Essa lista está
longe de ser completa.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Capitalismo e Liberdade - Milton Friedman
Non-Fiction"Este livro é de grande atualidade, em especial na América Latina. Sua ideia central é a de que o mesmo Estado que constrange a liberdade econômica termina por também tolher a liberdade individual. É o que todos nós vivenciamos no cotidiano da Améri...