CAPÍTULO 6

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Papel do Governo na Educação

Hoje em dia, a educação formal é financiada e quase inteiramente administrada
por entidades governamentais ou instituições sem fins lucrativos. Essa situação
desenvolveu-se gradualmente e é de tal forma considerada natural que pouca
atenção explícita é dirigida às razões desse tratamento especial reservado às
escolas - mesmo nos países predominantemente partidários da livre empresa, quer
na organização quer na filosofia. O resultado foi uma extensão indiscriminada da
responsabilidade do governo.
Nos termos dos princípios desenvolvidos no capítulo II, a intervenção
governamental no campo da educação pode ser interpretada de dois modos. O
primeiro diz respeito aos "efeitos laterais", isto é, circunstâncias sob as
quais a ação de um indivíduo impõe custos significativos a outros indivíduos
pêlos quais não é possível forçar uma compensação, ou produz ganhos substanciais
pêlos quais também não é possível forçar uma compensação - circunstâncias estas
que tornam a troca voluntária impossível. O segundo é o interesse paternalista
pelas crianças e por outros indivíduos irresponsáveis. Efeitos laterais e
paternalismo têm implicações muito diferentes para (1) a educação geral dos
cidadãos e (2) a educação vocacional especializada. As razões para a intervenção
governamental são muito diferentes nessas duas áreas, e justificam tipos muito
diferentes de ação.
Uma observação preliminar: é importante distinguir entre "instrução" e
"educação".
Nem toda a instrução está relacionada com educação, e nem toda educação, com a
instrução. O tema de interesse adequado é a educação. As atividades do governo
estão em grande parte limitadas à instrução.
Educação geral dos cidadãos
Uma sociedade democrática e estável é impossível sem um grau mini-
mo de alfabetização e conhecimento por parte da maioria dos cidadãos e sem a
ampla aceitação de algum conjunto de valores. A educação pode contribuir para
esses dois objetivos. Em consequência, o ganho com a educação de uma criança não
é desfrutado apenas pela criança ou por seus pais mas também pêlos outros
membros da sociedade. A educação do meu filho contribui para o seu bem-estar em
termos de promoção de uma sociedade estável e democrática. Não é possível
identificar os indivíduos particulares (ou famílias) que se beneficiam em tal
caso e taxá-los por serviços usufruídos. Há, portanto, substancial "efeito
lateral".
Que tipo de ação governamental está justificado por tal efeito lateral? O mais
óbvio seria exigir que cada criança recebesse pelo menos o mínimo de instrução
de um tipo específico. Tal exigência poderia ser imposta aos pais sem nenhuma
outra ação governamental - da mesma forma que proprietários de prédios e de
automóveis são obrigados a obedecer a determinados padrões para protegerem a
segurança alheia. Há, entretanto, uma diferença entre os dois casos. Indivíduos
que não podem pagar os custos do cumprimento dos padrões estabelecidos para
prédios ou automóveis podem, em geral, livrar-se da propriedade vendendo-a. A
exigência pode, por isso, ser posta em vigor sem nenhuma outra providência por
parte do governo. A separação de uma criança dos pais por não poderem pagar sua
instrução numa escola é claramente inconsistente com nossa posição de considerar
a família como a unidade social básica e nossa crença na liberdade individual.
Além disso, muito provavelmente prejudicaria a educação da criança para o
exercício da cidadania numa sociedade livre.
Se o custo financeiro imposto pela exigência da instrução fosse compatível com a
situação da grande maioria das famílias de uma comunidade, ainda poderia ser
factível e desejável solicitar que os pais arcassem direta-mente com a despesa.
Casos extremos poderiam ser resolvidos por subsídios especiais para famílias
necessitadas. Atualmente há muitas áreas nos Estados Unidos onde tais condições
são atendidas. Nessas áreas, seria muito conveniente impor diretamente os custos
aos pais. Isso eliminaria a máquina governamental necessária para recolher os
impostos dos residentes durante toda a vida e para devolver esse mesmo dinheiro
a essas mesmas pessoas durante o período em que seus filhos estão na escola.
Isso reduziria a probabilidade de que o governo também administrasse as escolas,
assunto que discutiremos mais abaixo. E aumentaria a probabilidade de que o
componente de subsídio nas despesas para a instrução declinasse à medida que a
necessidade de tal subsídio diminuísse com o aumento geral do nível de vida. Se,
como agora, o governo paga por toda ou quase toda a instrução, um aumento na
renda leva simplesmente a um fluxo circular de fundos ainda maior através do
mecanismo dos impostos e a uma expansão do papel do governo. Finalmente, e ainda
igualmente importante, impor os
e a
custos aos pais tenderá a igualar o custo social e privado de ter filhos
promover melhor distribuição das famílias por tamanho.1
Diferenças entre as famílias em termos de recursos e de número de filhos além da
imposição de um padrão de instrução que exige custos consideráveis, torna tal
política dificilmente exequível em inúmeras partes dos Estados Unidos. Tanto
nessas áreas quanto nas áreas em que tal política poderia ser aplicada, o
governo tomou a si o custo financeiro de fornecer instrução. Pagou, não somente
pelo volume mínimo de instrução exigido de todos mas também por instrução
adicional em níveis mais altos, disponíveis para os jovens, mas deles não
exigidos. Um argumento para esses dois fatos está constituído pêlos "efeitos
laterais" que já citamos. Os custos são pagos porque esta é a única maneira
possível de garantir o mínimo exigido. E a instrução adicional é financiada
porque outras pessoas se beneficiam da instrução dessas de maior habilidade e
interesse, já que esse é o modo de prover melhor liderança política e social. Os
ganhos de tal medida devem ser comparados com os custos, e pode haver muitas
diferenças honestas de opinião quanto à extensão do subsídio que pode ser
justificada. A maioria, entretanto, concluiria sem dúvida que os ganhos são
suficientemente importantes para justificar o subsídio governamental.
Tais observações só justificam o subsídio governamental para certos ti-posde
instrução. Para adiantar, não justificam o subsídio a treinamento puramente
vocacional que aumenta a produtividade econômica do estudante mas não o prepara
para a cidadania ou para a liderança. É muito difícil estabelecer uma linha
divisória entre os dois tipos de instrução. Boa parte da instrução primária
aumenta o valor econômico do estudante - de fato, somente nos tempos modernos e
em alguns poucos países a alfabetização deixou de ter um valor de mercado. E boa
parte do treinamento vocacional alarga a visão do estudante. Entretanto, a
distinção deve ser feita. Subvencionar o treinamento de veterinários,
cabeleireiros, dentistas e outras especialidades, como é feito nos Estados
Unidos em instituições educacionais mantidas pelo governo, não tem a mesma
justificativa que pode ser apresentada para os subsídios à instrução primária
ou,
em nível mais alto, aos colégios. Se podem ser justificados de outra forma é o
que veremos adiante.
O argumento qualitativo dos "efeitos laterais" não determina evidentemente o
tipo específico de instrução que deve ser subvencionado e em que quantidade. O
ganho social talvez seja maior para os níveis mais baixos da
Não é tão fantástico quanto parece declarar que tal providência teria efeito
considerável sobre o tamanho das famílias. Por exemplo, uma explicação para o
coeficiente de natalidade mais baixo apresentado pêlos grupos sócio-econômicos
mais altos em comparação com os apresentados pêlos grupos mais baixos pode ser o
fato de que filhos são mais dispendiosos para os primeiros do que para os
segundos. em grande parte devido ao padrão alto de instrução que mantêm por
cujos custos se responsabilizam.
instrução, onde existe praticamente unanimidade sobre o conteúdo, e declina
continuamente à medida que o nível de instrução aumenta. Mas. nem mesmo essa
declaração pode ser tomada como certa. Muitos governos subvencionaram
universidades antes de subvencionar escolas primárias. Que formas de educação
têm a maior vantagem social e que porção dos limitados recursos da comunidade
devem ser gastos com elas são decisões a ser tomadas pela comunidade e expressas
pêlos canais políticos convenientes. O objetivo desta análise não é o de decidir
tais questões em nome da comunidade, mas esclarecer os pontos envolvidos na
escolha, sobretudo se é adequado fazer a escolha numa base comunitária em vez de
individual.
Como vimos, tanto a imposição de um nível mínimo de instrução pelo Estado quanto
o funcionamento de tal instrução pelo Estado podem ser justificados pêlos
"efeitos
colaterais" da instrução. O terceiro passo, isto é, a administração das
instituições educacionais pelo governo, a "nacionalização" de boa parte da
"indústria
da educação", já é mais difícil de justificar em tal base ou, até onde posso
imaginar, em qualquer outra. A conveniência de tal nacionalização foi raramente
examinada de modo explícito. Os governos em geral financiaram a instrução por
meio do pagamento direto dos custos de manter instituições educacionais.
Portanto, tal passo pede ser considerado como exigido pela decisão de
subvencionar a instrução. Os dois passos, porém, poderiam ser facilmente
separados. O governo poderia exigir um nível mínimo de instrução financiada
dando aos pais uma determinada soma máxima anual por filho, a ser utilizada em
serviços educacionais "aprovados". Os pais poderiam usar essa soma e qualquer
outra adicional acrescentada por eles próprios na compra de serviços
educacionais numa instituição "aprovada" de sua própria escolha. Os serviços
educacionais poderiam ser fornecidos por empresas privadas operando com fins
lucrativos ou por instituições sem finalidade lucrativa. O papel do governo
estaria limitado a garantir que as escolas mantivessem padrões mínimos tais como
a inclusão de um conteúdo mínimo comum em seus programas, da mesma forma que
inspeciona presentemente os restaurantes para garantir a obediência a padrões
sanitários mínimos. Excelente exemplo de programa desse tipo é o programa
educacional dos Estados Unidos para os veteranos da Segunda Guerra Mundial. Cada
veterano recebia determinada soma máxima por ano que poderia ser aplicada em
qualquer instituição de sua escolha, desde que apresentasse certos padrões
mínimos. Exemplo mais limitado pode ser encontrado na Inglaterra, onde as
autoridades locais pagam as mensalidades de alguns estudantes que frequentam
escolas particulares. Na França também há o exemplo de o governo pagar parte dos
custos de estudantes que frequentam escolas não estatais.
Uma justificativa para a nacionalização da instrução, baseada nos "efeitos
laterais", diz respeito a que seria impossível de outra forma fornecer uma base
comum de valores considerados necessários à estabilidade social. A imposição de
padrões mínimos às escolas particulares, como sugerido acima pode não ser
suficiente para alcançar tal objetivo. Esse ponto pó de ser ilustrado
concretamente em termos de escolas dirigidas por grupo: reliqiosos diferentes.
Tais escolas, poder-se-ia argumentar, estariam incul cando conjuntos de valores
incompatíveis entre si e com os inculcados na; escolas não religiosas; assim,
estariam convertendo a educação numa force desagregadora em vez de unificadora.
Levado ao extremo, tal ponto de vista exigiria não só escolas administradas pelo
governo, mas também a frequência obrigatória a tais escolas. A situação nos
Estados Unidos e em outros países ocidentais é uma espécie de meio caminho em
tal direção. As escolas administradas pelo governo estãc disponíveis, mas não
são compulsórias. Entretanto, a ligação existente entre o financiamento da
instrução e a sua administração coloca as outras escolas em posição de
desvantagem: elas obtêm pouco ou nada dos fundos do governo para a instrução -
uma situação que tem originado sérias disputas políticas, particularmente na
França e agora nos Estados Unidos. A eliminação dessa desvantagem fortaleceria
as escolas paroquiais e tornaria ainda mais difícil o problema de se chegar a
uma base comum de valores.
Por mais persuasiva que possa ser tal argumentação, não significa que seja
válida ou que a desnacionalização das escolas tenha essas consequências. Em
termos de princípios, a argumentação entra em conflito com a preservação da
própria liberdade. A linha que deve existir entre a necessidade de estabelecer
uma base comum de valores para garantir a estabilidade de uma sociedade, de um lado, e o trabalho de doutrinação inibindo a liberdade de pensamento e de
crença,
de outro, é mais uma dessas fronteiras vagas, mais fáceis de citar do que de
definir.
Em termos de consequências, a desnacionalização das escolas daria maior espaço
de escolha aos pais. Se, como acontece atualmente, os pais podem mandar os
filhos a escolas públicas sem qualquer pagamento especial, muito poucos os
mandariam a outras escolas a não ser que também fossem subvencionadas. As
escolas paroquiais ficam em desvantagem por nada receberem dos fundos públicos
destinados à educação, mas têm a vantagem de ser administradas por instituições
dispostas a subvencioná-las e podem levantar fundos para isto. Há poucas outras
fontes de subsídios para as escolas particulares. Se os investimentos atuais em
instrução fossem postos à disposição dos pais independentemente de para onde
enviassem seus filhos, ampla variedade de escolas surgiria para satisfazer a
demanda. Os pais poderiam expressar sua opinião a respeito das escolas dire-
tamente,
retirando seus filhos de uma escola e mandando-os para outra - de modo muito
mais amplo do que é possível agora. Em geral, eles agora só podem tomar tal
atitude arcando com os elevados custos de colocar os filhos numa escola
particular ou trocar de residência. Quanto ao resto, só podem expressar seus
pontos de vista através de complicados canais políticos. E possível que uma
liberdade de escolha de escolas se possa estabelecer num sistema escolar
administrado pelo governo, mas seria difícil levar
essa liberdade muito longe em vista da obrigação de dar uma vaga a cada criança.
Aqui também, como em outros campos, a empresa competitiva pode satisfazer de
modo mais eficiente as exigências do consumidor do que as empresas
nacionalizadas e as organizadas para servir a outros propósitos. O resultado
final, portanto, poderá ser o declínio das escolas paroquiais em vez da sua
ascensão.
Um fator que está trabalhando na mesma direção é a compreensível relutância de
pais que mandam seus filhos a escolas paroquiais em aceitar o aumento das taxas
para financiamento das crescentes despesas com a instrução pública. Como
consequência, as áreas que dispõem de escolas paroquiais importantes têm grande
dificuldade em levantar fundos para escolas públicas. Até onde a qualidade está
relacionada com os gastos, como de fato quase sempre está, as escolas públicas
em tais áreas tendem a ser de qualidade inferior, e, portanto, as escolas
paroquiais são relativamente mais atraentes.
Outro caso especial da argumentação de que as escolas públicas são necessárias à
educação como uma força unificadora é a afirmação de que as escolas privadas
tendem a exacerbar as diferenças de classe. Existindo maior liberdade de escolha
de escolas, os pais de uma certa classe tenderão a reunir-se, impedindo, assim,
saudável integração de crianças de ambientes diferentes. Quer esse argumento
seja válido ou não, em princípio, não está bem claro que o resultado será
realmente o previsto. Sob as condições presentes, a estratificação das áreas
residenciais restringe efetivamente a integração de crianças de ambientes
diferentes. Além disso, os pais não estão agora impedidos de mandar seus filhos
a escolas particulares. Somente uma classe muito limitada pode fazê-lo ou o faz
- deixando as escolas paroquiais de lado - , produzindo assim maior
estratificação.
Na realidade, tal argumento parece estar apontando justamente na direção
contrária - em direção à desnacionalização das escolas. Examinemos sob que
aspecto o morador de um bairro de baixa renda - ou um bairro negro - está em
maior desvantagem. Se para ele for muito importante, digamos, um carro novo, ele
poderá economizar e comprar um igual ao do residente de bairros melhores. Para
isso, não precisa trocar de residência. Ao contrário, poderá obter parte do
dinheiro por pagar aluguel mais baixo. E o mesmo acontece com roupas, móveis,
livros e tantos outros artigos. Mas, se uma família que mora num cortiço tiver
um filho superdotado e, ao mesmo tempo, der grande valor a uma boa educação,
pouca coisa poderá fazer a respeito, mesmo que faça economia mais apertada. A
não ser que obtenha tratamento especial ou uma bolsa de estudos numa das poucas
escolas particulares existentes, a família ficará numa posição muito difícil. As
"boas" escolas públicas estão situadas nos bairros ou quarteirões de renda alta.
A família pode estar disposta a gastar um pouco mais além do que paga em impostos para colocar o filho numa escola melhor, mas
dificilmente poderá trocar de bairro ou de quarteirão.
Nossos pontos de vista sobre isso ainda estão, pelo que me parece, dominados
pela pequena cidade de províncias que dispunha de uma só escola tanto para os
ricos quanto para os pobres. Em tais circunstâncias, as escolas públicas podiam
estar de fato fornecendo igualdade de oportunidade. Com o crescimento das áreas
urbana e suburbana, a situação mudou drasticamente. Nosso sistema atual de
educação, longe de igualar as oportunidades, está fazendo muito provavelmente o
contrário. Torna cada vez mais difícil aos poucos excepcionais - e eles
constituem a esperança do futuro - erguer-se acima de sua pobreza inicial.
Outro argumento apresentado a favor da nacionalização das escolas é o do
"monopólio
técnico". Em pequenas comunidades e áreas rurais, o número de crianças pode ser
ínfimo para justificar mais de uma escola de porte razoável; assim sendo, a
competição não pode ser levada em conta para proteger os interesses dos pais e
das crianças. Como em outros casos de monopólio técnico, as alternativas são
monopólio privado irrestrito, monopólio privado controlado pelo Estado e
operação pública - opção entre três males. Esse argumento, embora claramente
válido e significativo, foi muito enfraquecido nas últimas décadas pelo
desenvolvimento dos transportes e aumento da concentração da população em
comunidades urbanas.
O tipo de solução que parece o mais adequado e justificado por estas
considerações - pelo menos para os níveis primário e secundário - seria a
combinação de escolas públicas e particulares. Os pais que quiserem mandar os
filhos para escolas privadas receberiam uma importância igual ao custo estimado
de educar uma criança numa escola pública, desde que tal importância fosse
utilizada em educação numa escola aprovada. Essa solução satisfaria as partes
válidas do argumento do "monopólio técnico". E também resolveria o problema das
justas reclamações dos pais quando dizem que, se mandarem os filhos para escolas
privadas, pagam duas vezes pela educação - uma vez sob a forma de impostos e
outra diretamente. Tal solução também permitiria o surgimento de uma sadia
competição entre as escolas. Assim, o desenvolvimento e o progresso de todas as
escolas seriam garantidos. A injeção de competição faria muito para a
preocupação de uma salutar variedade de escolas. E também contribuiria para
introduzir flexibilidade nos sistemas escolares. E ainda ofereceria o benefício
adicional de tornar os salários dos professores sensíveis à demanda de mercado.
Com isso, as autoridades públicas teriam um padrão independente pelo qual julgar
escalas de salário e promover um ajustamento rápido à mudan-Ça de condições de
oferta e da procura.
Comenta-se muito a urgência de levantar mais dinheiro para melhorar as condições
das escolas e pagar salários mais altos aos professores a fim
de tornar a profissão atraente. Parece que se trata, no caso, de um diagnóstico
falso. A quantidade de dinheiro gasta em educação tem aumentado em proporções
extraordinariamente altas, de modo bem mais rápido do que o aumento da renda. O
salário dos professores tem aumentado mais rápido do que os de profissões
comparáveis. O problema não consiste principalmente em gastar muito pouco
dinheiro - embora talvez isso seja verdade -, mas receber tão pouco por dólar
gasto. Talvez seja correio classificar como despesas de instrução as realizadas
na construção de estruturas luxuosas e magníficos campi. Mas é difícil
considerá-las
como despesas de educação. Isso também é verdade para os cursos de basquete, de
danças sociais e outros tantos itens assim considerados por educadores ingénuos.
Apresso-me a acrescentar que não tenho nada contra os pais gastarem seu dinheiro
em tais frivolidades. Trata-se de decisões deles próprios. A obje-ção repousa na
utilização de dinheiro levantado com impostos cobrados de pais e não pais, da
mesma forma, para tais propósitos. Onde estão os "efeitos laterais" que
justificam tal uso do dinheiro dos impostos?
A razão principal dessa utilização do dinheiro público reside no atual sistema
de combinar a administração de escolas com o seu financiamento. Os pais que
preferirem ver o seu dinheiro usado para professores melhores e mais livros, ao
invés de ser esbanjado em {utilidades, não dispõem de nenhum modo de expressar
sua preferência, a não ser tentando persuadir a maioria a mudar as condições
para todos. Este é um caso especial do princípio geral de que o mercado permite a cada um satisfazer seus gostos - representação proporcional efetiva, enquanto
o processo político impõe a conformidade. Além disso, os pais que desejarem
gastar dinheiro extra na educação dos filhos ficam limitados. Não podem
acrescentar nada à importância que está sendo gasta com os estudos dos filhos e
transferi-los para uma escola mais cara. Se transferirem os filhos, terão que
pagar o custo total, e não apenas o custo adicional. Só podem gastar facilmente
dinheiro extra em atividades extracurriculares - lições de dança, lições de
música etc. Como as vias privadas do escoamento para o gasto de mais dinheiro
com instrução estão bastante bloqueadas, a pressão para gastar mais na educação
das crianças manifesta-se em investimentos públicos cada vez maiores, em itens
cada vez menos relacionados com a justificação básica para a intervenção do
governo na instrução.
Como está implícito nesta análise, a adoção das sugestões acima levaria a um
decréscimo da despesa do governo com a educação; haveria, porém, um aumento nas
despesas em geral. Permitiria aos pais comprar o que desejarem de modo mais
eficiente e com isso os levaria a gastar mais do que o fazem agora direta e
indiretamente por meio de impostos. Evitaria que os pais ficassem frustrados com
os impostos para a instrução - tanto por terem que se conformar com o modo como
o dinheiro é usado como por relutarem, muito justamente, em pagar impostos cada
vez mais al-
tos por algo que está muito longe do que consideram educação sobretudo no caso
dos que não têm filhos nas escolas e não pretendem tê-los.2
Com relação ao salário dos professores, o principal problema não é o de serem em
média tão baixos - eles podem até mesmo ser muito altos em média - mas o de
serem demasiado uniformes e rígidos. Professores de nível baixo têm salários
muito altos, e bons professores têm salários muito baixos. Os níveis salariais
tendem a ser uniformes e determinados por tempo de serviço, diplomas obtidos de
cursos - mais do que por mérito. Isso também, em grande parte, é o resultado do
atual sistema de administração governamental das escolas, e torna-se mais grave
ã medida que a área sobre a qual o governo exerce controle torna-se maior.
Aliás,
esse é o motivo por que as organizações educacionais profissionais são tão
entusiasticamente favoráveis ao alargamento desta área - da escola distrital
local ao Estado, do Estado ao Governo Federal. Em toda organização burocrática,
as escalas de salários padronizados são quase inevitáveis; é praticamente
impossível estimular uma competição capaz de levar a diferenças significativas
nos salários baseados no mérito. Os educadores, o que significa os próprios
professores, passam a exercer o controle principal. A comunidade local passa a
exercer controle menor. Em qualquer área, seja a da carpintaria ou a do
magistério, a maioria dos trabalhadores é favorável a escalas de salários
padronizados e opõe-se a diferenças baseadas em mérito, pela razão óbvia de que
os especialmente talentosos são sempre poucos. Trata-se de um caso especial da
tendência geral que as pessoas têm de se associarem para fixar preços por meio
de sindicatos ou de monopólios industriais. Mas esse tipo de acordo é sempre
destruído pela competição, a não ser que o governo os oficialize ou pelo menos
dê apoio razoável.
Se alguém quisesse organizar um sistema para recrutar e pagar professores,
deliberadamente concebido para repelir os imaginativos, autoconfian-tes e
ousados a atrair os medíocres, tímidos e fracos, não precisaria fazer outra
coisa senão imitar o sistema de requerer certificados de cursos e pôr em vigor
estruturas de salários padronizadas - como é feito atualmente nos sistemas
adotados pelas metrópoles e pêlos Estados. É aliás surpreendente que o nível de
ensino nas escolas primárias e secundárias seja tão alto - tendo em vista as
circunstâncias. O sistema alternativo resolveria esses problemas e permitiria
que a competição regulasse a questão do mérito e atraísse bons profissionais
para o magistério.
Por que a intervenção do governo na instrução desenvolveu-se desse
2 Um exemplo notável do mesmo efeito em outro campo é o do British National
Health Service. Num estudo muito detalhado e penetrante. D. S. Lees apresenta
como conclusão: "Muito longe de serem extravagantes, as despesas do NHS têm sido
menores do que as que os consumidores teriam provavelmente gasto num mercado
livre. Os números para a construção de hospitais são particularmente
deploráveis". "Health Through Choice". In: Hobart Paper 14. Londres. Institute of Economic
Affairs. 1961. p.
modo nos Estados Unidos? Não tenho o necessário conhecimento detalhado da
história da educação para dar resposta definitiva a essa pergunta. Algumas
conjeturas poderiam, contudo, ser úteis para sugerir os tipos de considerações
que podem alterar a política social apropriada. Não estou de forma alguma seguro
de que as soluções que proponho agora seriam de fato convenientes há um século.
Antes do grande desenvolvimento dos transportes, o argumento do "monopólio
técnico" era bem mais poderoso. Também era importante, nos Estados Unidos do
século XIX e de princípio do século XX, não promover a diversidade, mas criar
uma base de valores comuns e essenciais a uma sociedade estável. Correntes
substanciais a emigrantes estavam chegando de todas as partes do mundo aos
Estados Unidos, falando línguas diferentes e obedecendo a diferentes costumes.
Era preciso introduzir um mínimo de conformidade e lealdade a valores comuns. A
escola pública tinha uma função importante nessa tarefa, a partir da imposição
do inglês como língua comum. Sob o sistema alternativo que propus, o padrão
mínimo imposto às escolas para ser aprovado poderia incluir o uso do inglês. Mas
seria talvez mais difícil garantir o cumprimento desse requisito num sistema
escolar privado. Não estou, com isso, concluindo que o sistema escolar público
fosse preferível à alternativa proptosta, mas que seria mais fácil justificar
sua existência sob tais circunstâncias do que agora. Nosso problema atual não é
garantir a conformidade, pois estamos, ao contrário, sendo ameaçados por excesso
de conformidade. Nosso problema é promover a diversidade, e a solução
alternativa seria capaz de alcançar tal objetivo de modo muito mais eficiente do
que o sistema escolar nacionalizado.
Outro fator que pode ter sido importante há um século era a combinação de
desconfiança geral quanto ao fornecimento de verbas a indivíduos com a ausência
de uma eficiente organização administrativa para a distribuição das verbas e a
fiscalização de seu uso adequado. Uma organização desse tipo é fenómeno dos
tempos modernos, e desenvolveu-se a partir da ampla imposição de impostos e de
programas de assistência social. Na sua ausência, a administração das escolas
pode ter sido considerada como o único meio possível de financiar educação.
Conforme dois exemplos citados (Inglaterra e França) indicam, existem algumas
características da solução proposta no atual sistema educacional. E têm surgido
fortes pressões nesse sentido em grande parte dos países ocidentais. Em parte,
essa tendência pode ser explicada pelo desenvolvimento moderno da máquina
administrativa governamental que facilita esse tipo de arranjo.
Embora possam surgir muitos problemas administrativos na mudança do atual
sistema para o proposto e na sua organização, não serão eles nem insolúveis nem
únicos. Como no caso da desnacionalização de outras ativi-dades, material e
equipamento existentes podem ser vendidos a empresas privadas que desejam
trabalhar nesse campo. Assim, não haverá perda de
ca em
•t l transição. Uma vez que entidades governamentais, pelo menos P1 9 rtas
áreas,
continuariam a administrar as escolas, a transição seria gra-H \& fácil A
administração escolar local dos Estados Unidos e em outros "fees facilitaria de
modo semelhante a transição, pois estimularia a experimentação em pequena
escala.
Surgiriam sem dúvida dificuldades quanto à distribuição das verbas por parte de
determinada entidade governamental, mas seriam elas idênticas ao problema
existente na determinação de qual entidade está obrigada a prover a vaga para
determinada criança. Diferenças no valor das verbas tornarão uma área mais
atrativa do que outra, do mesmo modo que atualmente as diferenças de qualidade
das escolas têm o mesmo efeito. A única dificuldade adicional reside numa
possível maior oportunidade de abuso devido ã maior liberdade de escolha na
educação dos filhos. Supostas dificuldades administrativas constituem a defesa
padrão do status quo contra qualquer mudança proposta; neste caso particular, é
ainda mais fraca do que de costume porque deve arcar não só com os problemas
envolvidos no sistema atual mas também com a administração das escolas como
função governamental.
Instrução em nível superior A discussão acima prendeu-se, em sua maior parte, aos níveis primários e
secundários. No caso do nível superior, a nacionalização justificada em termos
de efeitos laterais ou monopólio técnico é ainda menos aceitável. Nos níveis
mais baixos de ensino, há uma concordância considerável, quase unanimidade,
quanto ao conteúdo apropriado de um programa educacional para os cidadãos de uma
democracia. Nos níveis seguintes, a área de concordância diminui cada vez mais.
Já abaixo do nível do college, há concordância insuficiente para justificar a
imposição dos pontos de vista de uma maioria, e muito menos de uma pluralidade.
A falta de concordância é tal, nesta área, que já permite levantar dúvidas sobre
a conveniência da subvenção à instrução neste nível; e é bastante grande para
impedir qualquer tentativa de defesa da nacionalização na base da criação de um
conjunto comum de valores. Não se pode levantar a questão do "monopólio técnico"
neste nível, devido às distâncias que os indivíduos são obrigados a percorrer
para frequentar instituições de nível superior.
Instituições governamentais desempenham papel menos amplo no ensino superior nos
Estados Unidos do que nos níveis primário e secundário. Contudo, sua importância
cresceu muito, sobretudo até a década de 1920. e hoje elas têm a
responsabilidade de metade dos estudantes que frequentam a universidade.3 Uma
das principais razões de seu crescimento reside
QQ r STIGLER, George J. "Employment and Compensation in Education" !n Ocasiona/
Paper N. •13. Nova York, National Bureau of Economic Research. 1950. p. 33.
na sua conveniência - a maioria dos colleges e universidades estatais e
municipais cobram anuidades bem menores do que as instituições privadas. Como
consequência, as universidades privadas vêm enfrentando problemas financeiros
sérios e têm protestado, muito justamente, contra a competição "desonesta". Elas
tentam manter a independência com relação ao governo e, ao mesmo tempo, levadas
por problemas financeiros, têm que pedir ajuda ao governo.
A análise já apresentada sugere as linhas mestras ao longo das quais poder-se-ia
tentar uma solução. O investimento público no ensino superior pode ser
justificado como meio de treinar os jovens para a cidadania e a liderança -
embora faça questão de acrescentar que a grande porção de investimento que está
sendo atualmente aplicada no treinamento estritamente vocacional não pode ser
justificada dessa forma e nem mesmo, como veremos, por nenhuma outra. Restringir
a subvenção à instrução obtida numa instituição administrada pelo Estado não
pode ser justificado sob nenhum ponto de vista. Qualquer subvenção deve ser
passada aos indivíduos, para ser utilizada em instituições de sua própria
escolha, com a única condição de que sejam do tipo e natureza convenientes. As
escolas governamentais que continuarem em funcionamento deveriam cobrar
anuidades que cobrissem os custos educacionais, competindo, assim, em nível de
igualdade com as escolas não subvencionais pelo governo.4 O sistema final
seguiria de modo geral o adotado nos Estados Unidos após a Segunda Guerra
Mundial para o financiamento da educação dos veteranos, mas os fundos viriam
provavelmente dos Estados, e não do Governo Federal.
A adoção de tal sistema tornaria mais efetiva a competição entre os diversos
tipos de escolas, e mais eficiente a utilização de seus recursos. Também
diminuiria a pressão para uma assistência direta do governo aos colleges e
universidades privadas, preservando assim sua completa independência e
diversidade - ao mesmo tempo que poderiam crescer em comparação com as
universidades estatais. Esse sistema teria ainda a vantagem adicional de
permitir melhor fiscalização dos propósitos para os quais as subvenções são
fornecidas. A subvenção a instituições, em vez de a indivíduos, levou a uma
subvenção indiscriminada de todas as atividades apropriadas a tais instituições
- em substituição às apropriadas ao Estado e à sua subvenção. Mesmo um exame
superficial mostraria que, embora as duas classes de atividades se sobreponham,
estão longe de ser idênticas.
A conveniência e a justiça do sistema alternativo ficam particularmente claras
nos níveis superiores devido à existência de grande número e variedade de
instituições privadas. O Estado de Ohio, por exemplo, diz a seus cidadãos: "Se
você tem um filho que quer estudar na faculdade, nós lhe garantimos
automaticamente uma bolsa de estudo total para todo o curso.
4 Não estou levando em conta o investimento em pesquisa básica. Interpretei instrução de modo restrito a fim de poder excluir considerações que nos levariam
a um campo mais amplo de debates.
H sde que preencha um mínimo de condições educacionais e que seja bastante
esperto para escolher a Universidade de Ohio. Se seus filhos quiserem estudar no
Oberlin College ou na Western Reserve University ou ainda nas Universidades de
Yale, Harvard, Northwestern, Beloit ou Chicago, não lhes daremos um só centavo".
Como pode tal programa ser justificado9 Não seria muito mais justo e não
promoveria um melhor padrão de ensino usar o dinheiro que a Universidade está
disposta a gastar em educação superior para o fornecimento de bolsas a serem
usadas em quaisquer outras e exigir que a Universidade de Ohio entre em
competição com as outras instituições nos mesmos termos?5
Preparação vocacional e profissional
A preparação vocacional e profissional não apresenta os efeitos laterais do tipo
atribuído à educação geral. Trata-se de uma forma de investimentos em capital
humano precisamente análoga ao investimento em maquinaria, instalações ou outra
forma qualquer de capital não humano. Sua função é aumentar a produtividade
econômica do ser humano. Se ele se se tornar produtivo, será recompensado, numa
sociedade de empresa livre, recebendo pagamento por seus serviços - mais alto do
que receberia em outras circunstâncias.6 Essa diferença no retorno é o incentivo
econômico para o investimento de capital - quer sob a forma de uma máquina quer
em termos de ser humano. Em ambos os casos, o retorno extra deve oferecer a
compensação para os custos de adquiri-lo. No caso da preparação vocacional, os
custos mais importantes são as quantias antecipadas durante o período de
treinamento, os juros perdidos pelo adiantamento do início do período efetivo de
trabalho e as despesas especiais para a realização do treinamento, como as
anuidades e a compra de livros e equipamento. No caso do capital físico, os
custos mais importantes são as despesas com construção do equipamento e juros
cessantes durante a construção. Em ambos os casos, um indivíduo considerará
provavelmente o investimento como desejável se o retorno extra, como ele o
considera, exceder os custos, tal como ele os interpreta.7 Em ambos os casos, se
o indivíduo decide investir e se o Estado não subvencionar o investimento e
também não criar impostos
5 Utilizarei Ohio em vez de Illinois porque, desde a confecção do artigo (1953)
do qual este capítulo constitui uma revisão. Illinois adotou um programa que
segue em parte as linhas que expus, fornecendo.bolsas de estudo para
universidades privadas em Illinois. A Califórnia fez o mesmo. A Virgínia adotou
um programa similar em níveis mais baixos, mas por motivos muito diferentes -
para evitar a integração racial. O caso da Virgínia será discutido no capítulo
VII.
O aumento no retomo poderá ser apenas parcialmente de forma monetária, poderá
também constituir em vantagens não pecuniárias relacionadas com a profissão para
a qual a preparação vocacional habilitou o indivíduo. De modo semelhante, a
profissão pode ter vantagens não pecuniánas. que deverão ser levadas em conta
nos custos do investimento.
Para estudo mais detalhado e preciso das considerações que entram na escolha de
uma profissão, ver FRIEDMAN, Milton e KUZNETS Simon. Income from Independem
Professional Pratice. Nova York. National Bureau of Economic Research. 1945. p.
81-95. 118-137.
sobre o retorno, ele (ou seus pais, patrocinadores ou benfeitores) em geral
arcará com os custos extras e receberá todo o retorno extra: não há nenhuma
circunstância com relação a custos ou retorno que faça os incentivos privados
divergirem sistematicamente dos que são socialmente adequados.
Se houvesse capital prontamente disponível para investimento em seres humanos
(como
existe em termos de investimento em bens físicos). quer através do mercado quer
através do investimento direto pêlos indivíduos envolvidos ou por seus pais ou
benfeitores, a taxa de retorno sobre o capital tenderia a ser quase igual nos
dois campos. Se ela fosse maior sobre o capital não humano, os pais teriam um
incentivo para comprar esse capital para seus filhos em vez de investir uma soma
correspondente em treinamento vocacional, e vice-versa. Entretanto, há
considerável evidência empírica de que a taxa de retorno sobre o investimento em treinamento é muito mais alta do que sobre o investimento em capital físico.
Essa diferença sugere a existência de subinvestimento no capital humano.8
Esse subinvestimento no capital humano reflete provavelmente uma imperfeição do
mercado de capital. O investimento em seres humanos não pode ser financiado nos
mesmos termos ou com a mesma facilidade do investimento em capital físico, e é
fácil perceber por quê. Se um empréstimo fixo em dinheiro é feito para financiar
investimento em capital físico, o indivíduo ou organização que concede o
empréstimo pode garantir-se sob a forma de uma hipoteca ou de existência sobre
os bens físicos e pode realizar pelo menos parte de seu investimento, em último
caso, pela venda dos bens físicos. Se for feito o mesmo empréstimo para aumentar
o poder ou capacidade produtiva de um ser humano, não se pode evidentemente
obter garantia comparável. Num Estado em que não existe escravatura, o indivíduo
que representa o investimento não pode ser comprado ou vendido. Mesmo se
pudesse,
a segurança não seria a mesma. A produtividade do capital físico não depende em
geral da cooperação do que tomou emprestado. A produtividade do ser humano está
evidentemente presa a essa dependência. Um empréstimo para financiar o
treinamento de um indivíduo, que não tem nada a oferecer a não ser seus ganhos
futuros, é, portanto, bem menos atrativo do que um empréstimo para financiar a
construção de um prédio - a garantia é menor, e o custo do recolhimento dos
juros e do principal é bem maior.
Uma complicação adicional é introduzida pela inconveniência de empréstimos fixos
de dinheiro para o financiamento de treinamento. Tal investimento envolve
necessariamente grandes riscos. O retorno médio esperado pode ser alto, mas há
ampla variação com relação à média. Morte ou incapacidade física é uma fonte
óbvia de variação, mas é provavelmente
'Ver BECKER. G. S. " Underinvestment in College Education?" In: American
Economic Review. Pro-ceedings L (1960) 356-364: e SCHULTZ. T. W. "Investment in
Human Capital". In: American Economic Review. LXI (1961). 1-17.
bem menos importante do que as diferenças em capacidade, energia e sorte
Conseqüentemente, se forem feitos empréstimos fixos de dinheiro, e se tiverem
como garantia apenas os ganhos futuros previstos, uma fração considerável nunca
será paga. Para tornar tais empréstimos atrativos para os aolicadores, a taxa de
juros teria que ser suficientemente alta para contrabalançar as perdas de
capital com os empréstimos não devolvidos. A taxa nominal de juros muito alta
entraria em conflito com as leis da usura e tornaria os empréstimos pouco
atrativos para os que deles precisassem.9 A prática adotada para resolver o
problema correspondente em outros investimentos que envolvem riscos resume-se em
lucratividade do investimento mais responsabilidade limitada dos acionistas. Em
contrapartida, o investidor em educação "compraria" parte dos ganhos futuros do
indivíduo; os fundos necessários a seu treinamento lhe seriam fornecidos com a
condição de que concordasse em pagar ao investidor determinada fração de seus
ganhos futuros. Desse modo, o investidor receberia de volta mais do que o seu
investimento inicial no caso de sujeitos que alcançassem sucesso relativo - o
que o compensaria dos prejuízos que viesse a sofrer, no caso dos indivíduos que
não obtivessem sucesso profissional.
Parece não haver obstáculo legal aos contratos privados desse tipo, mesmo
economicamente equivalentes à compra de uma participação na ca-pacdade de ganhar
do indivíduo, e, portanto, eles podem ser considerados escravidão parcial. Uma
das razões pelas quais esses contratos não se tornaram comuns, a despeito de sua
conveniência potencial para ambas as partes, talvez seja o alto custo de sua
administração dada a liberdade de os indivíduos se mudarem de uma região para
outra, a necessidade de obter informações apuradas sobre as declarações de renda
e o período longo de duração dos contratos. Tais custos seriam extremamente
altos para um investimento em pequena escala, com uma distribuição geográfica
ampla dos indivíduos financiados. Esses custos devem ter sido. sem dúvida, a
razão pela qual o tipo de investimento nunca se desenvolveu sob a iniciativa
privada.
Parece, entretanto, altamente provável que um papel importante tenha sido
representado pelo efeito cumulativo da novidade da ideia, pela relutância de
pensar em investimentos em seres humanos como estritamente
A despeito desses obstáculos para os empréstimos fixos em dinheiro, fui informado de que são muito usados para financiar a educação na Suécia, onde
aparentemente estão sujeitos a taxas moderadas de juros. E possível que a
explicação para esse fato seja a dispersão menor da renda entre os graduados em
universidades, em comparação com os Estados Unidos. Mas não é explicação última,
e pode não ser^a única ou a mais importante razão para a diferença na prática.
Um estudo mais detalhado das con-QJÇoes na Suécia e de experiência semelhante
nos permitiriam testar se as razões apresentadas acima são adequadas para
explicar a ausência, nos Estados Unidos e em outros países, de um mercado alta-
rnente
desenvolvido de empréstimos para financiar a educação vocacional ou se existem,
na realidade. outros obstáculos facilmente removidos.
Recentemente tem havido desenvolvimento animador nos Estados Unidos de
empréstimos privados a estudantes de curso superior. O movimento foi estimulado
pelo United Student Aid Funds. instituição
m ""alidade lucrativa que avaliza empréstimos feitos por bancos individuais
comparáveis a investimentos em bens físicos, pela provável e irracional
condenação pública a tais contratos, mesmo estabelecidos voluntariamente; pelas
limitações legais e convencionais sobre o tipo de investimento que podem ser
feitas pelo intermediário financeiro mais indicado para este tipo de transações
- as companhias de seguros de vida. Os lucros potenciais para os primeiros a
entrar nesse negócio seriam tão grandes que valeria a pena aceitar os custos
administrativos extremamente altos.Qualquer que tenha sido a razão, uma
imperfeição do mercado levou a um subinvestimento no capital humano. A
intervenção do governo pode. portanto, ser justificada na base do "monopólio
técnico", até onde os obstáculos para o desenvolvimento do sistema alternativo
tenham sido os custos administrativos, e do desenvolvimento das operações do
mercado, até onde se tenha tratado simplesmente de fricções e rigidez do
mercado.
Se o governo intervém, de que forma deve fazê-lo? Uma forma óbvia de
intervenção,
e a única até agora adotada, é a subvenção governamental dos treinamentos
vocacional e profissional financiada pêlos impostos comuns. Esta me parece
claramente imprópria. O investimento deve ser levado até o ponto em que o
retorno extra repõe, compensa e produz a taxa de juros do mercado. Se o
investimento for em ser humano, o retorno extra toma a forma de pagamento mais
alto para os serviços do indivíduo. Num sistema de economia de mercado, o
indivíduo receberá esse retorno sob a forma de renda pessoal. Se o investimento
for subvencionado, ele não arcará com nenhum dos custos. Como consequência, se
forem fornecidos subsídios a todos os que desejarem o treinamento e puderem
alcançar os padrões de qualidade mínimos, haverá tendência de superinvestir no
seres humanos, pois os indivíduos terão um incentivo para procurar o treinamento
até quando tiverem capacidade de produzir uma quantidade qualquer de retorno
extra sobre os custos privados, mesmo que o retorno seja insuficiente para repor
o capital investido e, ainda menos, para produzir os juros convenientes. Para
evitar superinvestimento, o governo teria que restringir a subvenção. Deixando
de lado a dificuldade de calcular o volume "correto" de investimento, isso
envolveria o racionamento de modo essencialmente arbitrário, do volume limitado
de investimento entre um número de candidatos maior do que o que poderia ser
financiado. Os que tiverem sorte para serem escolhidos receberiam todo o retorno
sobre o investimento - enquanto o custo seria dividido pêlos pagadores de
impostos em ge-
10 É divertido especular sobre como poderia ser feito o negócio e imaginar
alguns métodos secundários para tirar maior proveito dele. Os primeiros a
investir nesse negócio poderiam escolher os melhores investimentos, impondo
padrões de qualidade muito altos para os indivíduos que estariam dispostos a
financiar. Agindo assim, aumentariam a rentabilidade de seu investimento por
obter o reconhecimento público da qualidade superior dos indivíduos que
financiam. A legenda "Treinamento Financiado pela Companhia de Seguros XYZ"
poderia tornar-se uma garantia de qualidade que atrairia os clientes. Grande
número de outros serviços comuns poderiam ser fornecidos pela companhia XYZ a
"seus"
médicos, advogados, dentistas etc.
ral Esse seria um modo inteiramente arbitrário e quase certamente perverso de redistribuir a renda.
O importante não é redistribuir a renda, mas tornar o capital disponível em
termos compatíveis, tanto para o investimento humano quanto para o físico. Os
indivíduos devem ser responsabilizados pelo custo de seu investimento e receber
as recompensas. Não devem ser impedidos pelas imperfeições do mercado de fazer o
investimento, se estão dispostos a arcar com os custos. Um modo de obter tais
resultados seria o governo atuar no investimento em seres humanos em termos
semelhantes aos demais investimentos. Uma agência governamental poderia
financiar ou ajudar a financiar o treinamento de qualquer indivíduo que pudesse
satisfazer um padrão mínimo de qualidade. Ofereceria anualmente uma soma
limitada durante número especificado de anos, desde que os fundos fossem
utilizados em treinamento numa instituição reconhecida. Em troca, o indivíduo
concordaria em pagar ao governo em cada ano futuro determinada porcentagem de
sua renda superior a uma soma fixada para cada l 000 dólares recebidos do .
governo.
Esse pagamento poderia ser facilmente combinado com o pagamento do imposto de
renda, envolvendo, assim, urn mínimo de despesas administrativas adicionais. A
importância básica deveria ser igual à média estimada de vencimentos que seriam
obtidos sem o treinamento especializado, a fração de renda paga deveria ser
calculada de modo a tornar o proje-to autofinanciado. Assim, os indivíduos que
recebessem o treinamento estariam de fato arcando com o custo inteiro. O volume
de investimento poderia então ser determinado por escolha individual. Uma vez
que esse fosse o único meio pelo qual o governo financiasse os treinamentos
vocacional e profissional, e que os ganhos calculados refletissem todos os
retornos e custos relevantes, a livre escolha dos indivíduos tenderia a produzir
o volume ótimo de investimento.
Infelizmente, não é muito provável que a segunda condição venha a ser
inteiramente cumprida devido à impossibilidade de incluir os retornos não
pecuniários mencionados acima. Na prática, portanto, tal investimento ainda
seria um tanto reduzido e não seria distribuído adequadamente.Por diversas
razões, seria preferível que instituições financeiras privadas com ou sem
finalidade lucrativa, como fundações e universidades, desenvolvessem esse plano.
Devido às dificuldades envolvidas em estimar a base dos vencimentos e a fração
dos investimentos superiores ã base a serem pagos ao governo, existe grande
perigo de que o esquema se transforme em futebol político. As informações sobre
os vencimentos atuais em diversas profissões só poderia fornecer uma estimativa
grosseira para os valores que tornariam o projeto autofinanciador. Além disso, a
base de venci-
grato a Harry G. Johnson e Paul W. Cook por sugerirem a inclusão desta
qualificação Para discus-om j.?mPc'a do papel das vantagens e desvantagens não
pecuniárias na determinação de vencimentos m "'"entes atívidades. ver FRIEDMAN e
KUZNETS. loc cit.
mentos e a fração deveriam variar de indivíduo para indivíduo, de acordo com a
diferença na capacidade estimativa de obter determinados vencimentos que podem
ser previstos antecipadamente, da mesma forma que os prémios dos seguros de vida
variam entre grupos diferentes.
Até onde as despesas administrativas constituem obstáculo para o desenvolvimento
de um tal plano em caráter privado, a unidade governamental adequada ao
fornecimento de fundos é o Governo Federal - e não unidades menores. Qualquer
estado teria os mesmos custos que uma companhia privada para manter contato com
os indivíduos que tivessem financiado. Essas despesas ficariam minimizadas,
embora não completamente eliminadas, se o Governo Federal tomasse a seu cargo
tal empreendimento. Um indivíduo que emigrasse para outro país, por exemplo,
continuaria ainda legal e moralmente obrigado a pagar a quantia estabelecida,
mas talvez fosse difícil e dispendioso obrigá-lo a isso. Pessoas que obtivessem
grande sucesso na profissão teriam, por essa razão, um incentivo para emigrar. O
mesmo problema surge, evidentemente, com relação ao imposto de renda e de modo
bem mais extenso. Estes e outros problemas administrativos relacionados com a
condução desse plano a nível federal, embora complicados, não parecem tão
sérios.
O problema sério é o político e já mencionado - como impedir que o plano se
torne um futebol político e acabe por passar de um projeto autofinanciador para
um instrumento,de subvenção da educação profissional. Mas, se o perigo é real, também o é a oportunidade. As imperfeições existentes
no mercado de capital tendem a restringir o treinamento vocacional e
profissional mais dispendiosos a indivíduos cujos pais ou benfeitores estão em
condições de financiar o treinamento exigido. Tais imperfeições tornam essas
pessoas um "grupo não competitivo", protegido da competição pela impossibilidade
de muitos indivíduos talentosos obterem o capital necessário à sua preparação. O
resultado é a perpetuação da desigualdade de sta-tits e de riqueza. O
desenvolvimento de programas como os apresentados acima tornaria o capital
disponível de modo mais amplo e contribuiria, assim, para tornar real a
igualdade de oportunidades, para diminuir as desigualdades de renda e de
riqueza,
e promover o uso completo dos novos recursos humanos. E isso seria feito sem
impedir a competição, destruir o incentivo e cuidar só dos sintomas - que é o
que acontece quando se trata somente da redistribuição da renda -, mas
estimulando a competição, tornando os incentivos efetívos e eliminando as causas
da desigualdade.

Capitalismo e Liberdade - Milton FriedmanOnde histórias criam vida. Descubra agora