CAPÍTULO 9

14 0 0
                                    

Licenciamento Ocupacional

A derrubada do sistema medieval de guildas foi um primeiro passo indispensável
ao surgimento da liberdade no mundo ocidental. Constituiu um sinal do triunfo
das ideias liberais, aliás, amplamente reconhecido como tal, o fato de que, em
meados do século XIX, na Inglaterra e nos Estados Unidos (e, em menor extensão,
no continente europeu), os homens pudessem dedicar-se a qualquer comércio ou
ocupação que desejassem, sem a autorização de nenhuma autoridade governamental
ou paragovernamen-tal. Em décadas mais recentes, tem ocorrido um retrocesso, uma
tendência crescente de restringir determinadas ocupações aos portadores de
licença para tanto fornecida pelo Estado.
Tais restrições à liberdade de os indivíduos usarem seus recursos conforme lhes
aprouver são importantes por si sós, além de criarem um tipo especial de
problemas aos quais podemos aplicar os princípios desenvolvidos nos dois
primeiros capítulos.
Examinarei primeiro o problema geral e depois um exemplo particular, o de
restrições à prática da medicina. A razão de ter escolhido a medicina reside no
fato de ser mais conveniente centralizar a discussão no caso que parece fornecer
justificativa maior - não há muito a aprender na derrubada de posições fracas.
Imagino que a maioria das pessoas, possivelmente até a maior parte dos liberais,
acredita ser necessário restringir a prática da medicina às pessoas que
obtiveram para isso a licença do Estado. Concordo com que se considere o caso da
medicina crucial - em compa-raçao com qualquer outro. Entretanto, as conclusões
a que chegarei são as *& que os princípios liberais não justificam a necessidade
de uma licença. rnesmo para a prática da medicina, e que. em termos concretos,
isso consti-"à um procedimento indesejável.
Ubiqüidade das restrições governamentais às atividades econômicas que os
indivíduos podem desenvolver
O licenciamento é um caso especial de um fenómeno bem mais geral e amplamente
desenvolvido - isto é, do conjunto de normas que estabelece que os indivíduos
não podem dedicar-se a atividades econômicas particulares, a não ser sob as
condições apresentadas por uma autoridade do Estado. As guildas medievais
constituíam um exemplo particular de um sistema explícito para especificar que
indivíduo poderia dedicar-se a certa ati-vidade. O sistema de castas indiano é
outro exemplo. As restrições eram postas em vigor por costumes sociais gerais, e
não expressamente pelo governo - de modo mais extenso no sistema de castas e
mais reduzido nas guildas.
Noção muito difundida sobre sistema de castas é a de que a profissão ou ocupação
de cada pessoa é completamente determinada pela casta em que nasceu. E óbvio
para um economista que se trataria, no caso, de um sistema impossível, pois
estabeleceria uma distribuição rígida das pessoas pelas ocupações, determinada
inteiramente pela taxa de natalidade e não pelas condições da demanda. É
evidente que não era assim que o sistema funcionava. A verdade é que - e ainda
continua sendo, em parte - um número limitado de ocupações era reservado a
membros de certas castas. mas nem todos os seus membros as exerciam. Havia ocupações gerais, como o trabalho da agricultura em geral, que podiam ser
desempenhadas por membros de várias castas. Assim, podia-se ajustar a
distribuição de pessoas às diversas ocupações conforme a necessidade de seus
serviços.
Atualmente, tarifas, leis comerciais, cotas de importação, cotas de produção,
restrições de sindicatos a contratações, e assim por diante, constituem exemplos
de fenómenos semelhantes. Em todos esses casos, autoridades governamentais
determinam as condições sob as quais certos indivíduos podem dedicar-se a certas
atividades - o que significa os termos em que alguns indivíduos recebem a
permissão para entrar em trocas com outros. O aspecto comum a tais exemplos, bem
como ao licenciamento, é que a legislação é estabelecida para o benefício de um
grupo produtor. No caso do licenciamento, o grupo produtor é constituído por uma
profissão. Nos outros exemplos, pode tratar-se de um grupo que produz
determinado produto e deseja uma tarifa; de um grupo pequeno que deseja proteção
contra grupos maiores; ou de grupos de produtores de petróleo, de agricultores
ou de trabalhadores da siderurgia.
Atualmente, o licenciamento profissional está muito desenvolvido nos Estados
Unidos. De acordo com Walter Gellhorn. que escreveu o melhor levantamento que
conheço:
"Por volta de 1952, mais de 80 profissões distintas, do tipo autónomo, como
companhias de táxis e restaurantes, foram licenciadas pelas leis estaduais, e.
l'm das leis estaduais, há normas municipais em abundância, sem mencio-os
estatutos federais que exigem o licenciamento de ocupações como as dos
operadores de rádio e agentes comissionados de venda de gado. Em 1938 um só
Estado, Carolina do Norte, já havia oficializado 60 ocupações. Não é de
surpreender que farmacêuticos, contadores e dentistas tenham sido alcançados
pela legislação, bem como sanitaristas e psicólogos, ensaiadores e arquitetos,
veterinários e bibliotecários. Mas que alegria há em descobrir a necessidade de
licenciamento também para operadores de debulhadoras e apanhadores de refugo de
tabaco? E para classificadores de ovos. treinadores de cães, controladores de
pragas, vendedores de iates, cultivadores de batatas. furadores de poços e
tratadores de árvores. E o que dizer então dos 'hipertri-cologistas' licenciados
no Connecticut. onde removem os pêlos excessivos com a solenidade apropriada ao
seu altissonante título?"1
'Na argumentação usada para persuadir as autoridades a estabelecer tais
licenciamentos, aparece em primeiro plano a necessidade de proteger os
interesses do público. Entretanto, a pressão exercida sobre as autoridades para
licenciarem uma ocupação raramente vem de membros do público que tenham sido
prejudicados ou que tenham sofrido abuso por parte de representantes de tais
ocupações. Ao contrário, vem sempre dos membros das próprias ocupações.
Evidentemente, melhor do que ninguém, eles estão informados de quanto podem
explorar os clientes e. portanto, devem saber o que estão fazendo.
De modo semelhante, as instruções estabelecidas para o licenciamento envolvem,
invariavelmente, o controle por parte de membros da ocupação em pauta. Ainda
aqui, o fato é, sob certo ponto de vista, natural. Se a profissão de bombeiro só
pode ser exercida pêlos que possuem os requisitos e capacidade para exercê-la de
modo conveniente, é evidente que apenas os bombeiros serão capazes de julgar os
que poderão ser licenciados. Conse-qüentemente, a comissão ou qualquer outra
organização encarregada de fornecer as licenças é constituída quase sempre por
representantes de bombeiros, farmacêuticos ou médicos ou de qualquer outra
profissão de que se trate no momento.
Gellhorn observa que;
"75% das comissões encarregadas do licenciamento profissional em funcionamento
no país são atualmente compostas só de profissionais licenciados nas respectivas
ocupações. Esses homens e mulheres, a maior parte dos quais trabalha somente em
termos de meio expediente, podem ter interesse econômico direto em decisões que
tomam a respeito das condições para admissão e da definição dos padrões a serem
observados pêlos licenciados.
1 GELLHORN. Walter. Individual Freedom and Gouemmental Restraints Baton Roucje
Louisiana State University Press. 1956. Capítulo intitulado "The Right to Make a Living" p lOb
L 30 Mais importante ainda são, em geral, representantes de grupos organizados
dentro da profissão. Geralmente, são nomeados por tais grupos como primeiro
passo para uma nomeação governamental que consiste amiúde numa formalidade.
Quase sempre, a formalidade é inteiramente dispensada, e as indicações são
feitas diretamente pela associação profissional - como acontece, por exemplo,
com os embalsamadores na Carolina do Norte, os dentistas no Alabama, os
psicólogos na Virgínia, os médicos em Maryland e os promotores em Washington".2
O licenciamento, portanto, muitas vezes estabelece essencialmente o mesmo tipo
de regulamentação das guildas medievais, nas quais o Estado atribui poderes aos
membros da profissão. Na prática, as considerações envolvidas na concessão de
uma licença não têm, até onde o leigo pode julgar, qualquer relação com a
competência profissional. Isso não é de surpreender. Se alguns poucos indivíduos
vão decidir se outros podem ou não exercer determinada profissão, todo tipo de
considerações irrelevantes podem muito bem ser levadas em conta. Quais serão
eslas considerações irrelevantes que vão depender da personalidade dos membros
da comissão de licenciamento e da situação do momento? Gellhorn aponta o tipo de
juramento que foi exigido de alguns profissionais quando o medo da subversão
comunista se tinha alastrado pelo país. Escreve ele:
"Uma norma texana de 1952 exige que todos os que requeiram uma licença de
farmacêutico tenham que jurar 'não ser um membro do Partido Comunista ou não
estar de alguma forma associado a tal partido, não acreditar nele e não ser
membro ou não estar dando apoio a nenhuma organização que acredita nele,
pretenda ou propague a derrubada do Governo dos Estados Unidos pela força ou por
qualquer outro método inconstitucional ou ilegal'. A relação entre esse
juramento, de um lado, e, do outro, o bem-estar do público - que seria o
objetivo da criação de tais comissões 2 do licenciamento de farmacêuticos - é
bastante obscura. Também obscura é a justificativa de se exigir dos lutadores de
boxe profissionais em Indiana que jurem não ser subversivos... Um professor de
música de uma escola secundária, após ter sido obrigado a se demitir por ser
comunista, teve dificuldades em se tornar um afinador de pianos no Distrito de
Colúmbia porque, evidentemente, 'tratava-se de elemento perigoso'. No Estado de
Washington, veterinários não podem prestar seus serviços a uma vaca ou a um gato
a não ser que tenham assinado um juramento de não comunismo".3
Qualquer que seja a atitude com relação ao comunismo, não é possível ver uma
relação entre as exigências apresentadas e as qualidades que o licenciamento
pretende assegurar. Até onde tais exigências podem ir chega às raias do
ridículo.
Vejamos mais alguns trechos de Gellhorn.4
2/bid., p. 140-141. 3/bid..p. 129-130. 4 Para ser justo com Walter Gellhorn.
devo observar que ele não compartilha de meus pontos de vista
Um dos conjuntos de normas mais divertidos é o estabelecido para barbeiros, uma
profissão licenciada em muitos Estados. Aqui vai um exemplo de uma lei
considerada ilegal nos tribunais de Maryland. embora textos semelhantes possam
ser encontrados em estatutos de outros Estados que foram considerados legais.
"Este tribunal ficou surpreso, embora não impressionado, diante de normas que
obrigam um aspirante a barbeiro a receber instrução formal sobre os fundamentos
científicos do barbear: higiene, bacteriologia, histologia do cabelo, pele.
unhas, músculos e nervos, estrutura de cabeça, face e pescoço; química elementar
relativa à esterilização e anti-sépticos, doenças da pele. cabelo e unhas; corte
de cabelo; arte de barbear, pentear, pintar e de colorir os cabelos."5
Mais uma citação a respeito de barbeiros:
"Dentre os dezoito Estados representados numa reunião para estudo de
regulamentação da profissão de barbeiro em 1929, nenhum recomendou que o
aspirante à função fosse formado por uma 'escola de barbeiros', embora todos
considerassem necessário um período de aprendizado. Atualmente. os Estados
insistem tipicamente sobre uma formação formal numa escola de barbeiros, que
fornece nada menos (e às vezes muito mais) do que mil horas de instrução em
'temas
teóricos', como esterilização de instrumentos, que devem depois ser seguidas do aprendizado". 6
Confio em que tais citações tornem claro que o problema de licenciamento para as
ocupações constitui algo mais do que uma ilustração trivial do problema da
intervenção estatal. Já é neste país uma séria infração da liberdade individual
para dedicar-se às atividades escolhidas, e ameaça tornar-se ainda mais sério
com a pressão contínua para que se torne mais extensivo.
Antes de discutir as vantagens e desvantagens do licenciamento, é conveniente
notar por que ele existe e que problema político geral fica revelado pela
tendência em ser tal legislação especial posta em prática. A declaração de
grande número de organizações estaduais de que um barbeiro deve ser aprovado por
uma comissão de outros barbeiros não constitui uma evidência persuasiva de que
existe de fato interesse público em tal legislação. De fato, a explicação é bem
diferente. A verdade é que um grupo produtor tende a ser mais concentrado
politicamente do que um grupo consumidor. tste é um ponto óbvio observado
frequentemente e importante demais para ser negligenciado.7 Cada um de nós é
produtor e também consumidor.
116 ? so'u^° CO3Teta para estes problemas é abandonar o licenciamento Ao
contrário, ele acha wnbora o licenciamento tenha ido longe demais, há funções
reais que ele pode e deve desenvol-ele reformas e alterações que. en sua
opinião,
limitariam os abusos observados no licencia-
•- P- 121-- P- 146.
exemplo, o famoso artigo de MITCHELL. Wesley. "Backward Art o! Spendmg Money"
Re-em
seu livro de ensaios do mesmo título. Nova York, McGraw-Hill. 1937 p 3-
Entretanto,
estamos muito mais especializados e devotamos fração bem maior de nossa atenção
à nossa atividade como produtores do que como consumidores. Consumimos milhares,
senão milhões de itens. O resultado é que pessoas de uma mesma área de
atividades - como barbeiros ou médicos - têm grande interesse nos problemas
específicos desta área e estão dispostas a devotar grande parte de sua energia
para tratar deles. De outro lado, aqueles que procuram barbearias, fazem-no de
modo pouco frequente e só gastam nelas pequena parte de sua renda. Seu interesse
é incidental. Dificilmente um de nós estaria disposto a dedicar muito tempo
procurando as autoridades convenientes para protestar contra a iniquidade de se
restringir a prática da profissão. O mesmo ponto se aplica às tarifas. Os grupos
que têm interesse especial em determinadas tarifas são grupos concentrados para
quem tais questões são muito importantes. O interesse público está altamente
disperso. Como consequência, na falta de qualquer procedimento geral para fazer
frente à pressão de interesses específicos, invariavelmente os grupos produtores
conseguirão exercer influência maior sobre a ação legislativa do que a
eventualmente exercida pêlos interesses muito diversificados do grupo
consumidor.
Aliás, desse ponto de vista, a questão não é saber por que temos tantos
regulamentos tolos, mas por que não os temos em número ainda maior. A questão é
saber como conseguimos manter uma liberdade relativa quanto aos controles
governamentais em termos da atividade produtora dos indivíduos, no passado e
atualmente, quer em nosso país quer em outros.
O único meio para fazer frente aos grupos de produtores é estabelecer uma
presunção legal contra o desempenho estatal de certas atividades. Só o
reconhecimento geral de que as atividades governamentais devem ser severamente
limitadas com respeito a determinada classe de casos poderá permitir o controle
das circunstâncias em que tais limites são ultrapassados. Com isso, haveria
razoável esperança de se poder limitar o estabelecimento de medidas especiais
para proteger interesses especiais. Este é o ponto sobre o qual sempre tenho
insistido. E também faz parte do quadro que vimos até então discutindo.
Questões levantadas pelo licenciamento
É importante distinguir três estágios diferentes de controle: primeiro, o
registro; segundo, o certificado; terceiro, a licença.
Por registro, refiro-me às normas para que determinado indivíduo registre seu nome em alguma agência oficial, quando desejar exercer uma profissão. Não existe
nenhuma condição que possibilite a negação do direito de exercer a profissão a
qualquer pessoa que desejar registrar-se. Poderá ter que pagar uma taxa de
registro ou outro qualquer tributo.
O segundo estágio refere-se ao certificado. A agência governamental
de certificar que um indivíduo tem determinados conhecimentos ou ca-oacidades,
mas não pode, de modo algum, impedir a prática da profissão por pessoas que não
possuem o certificado. Bom exemplo é o da profissão de contador. Na maioria dos
Estados, qualquer um pode ser contador, tenha ou não certificado público, mas
somente as pessoas que se submeteram a determinado teste podem colocar o título
CPA (Certified Public Ac-countant) após o nome, ou indicação em seus escritórios
de que são portadores de certificado público. O certificado é em geral apenas um
estágio intermediário. Em muitos Estados, tem havido tendência a restringir um
número cada vez maior de atividades a contadores com certificado público. Quanto
a tais atividades, trata-se de licença, e não de certificado. Em alguns Estados,
"arquiteto" é um título que só pode ser usado por aqueles que se submeteram a um
determinado exame. Neste caso, trata-se de certificado. Não há proibição para
qualquer outro indivíduo que queira dedicar-se ao negócio de aconselhar pessoas
sobre construção de casas.
O terceiro estágio diz respeito ao licenciamento propriamente dito. Trata-se de
norma que estabelece que os indivíduos devem obter licença de uma autoridade
reconhecida a fim de se dedicarem a uma profissão. A licença é mais do que uma
formalidade. Requer demonstração de competência ou submissão a alguns testes
explicitamente criados para investigar a competência, e quem não tiver tal
licença não está autorizado a exercer, e fica sujeito a multa ou prisão, se
assim o fizer.
A questão que desejo considerar é a seguinte: em que circunstâncias - se é que
há algumas - podemos justificar um ou outro desses estágios? Há três casos
diferentes em que me parece que o registro pode ser justificado de modo
consistente com os princípios liberais.
Primeiro, pode ser útil para outras finalidades. Explico-me. A polícia está
frequentemente envolvida em atos de violência e é conveniente saber quem tem
acesso a armas de fogo. Além disso, convém impedir que armas
. i * ^ í l
ue togo caiam em mãos de pessoas que poderão vir a usá-las para propósitos
criminosos. Por isso, as lojas que vendem armas de fogo devem ser registradas.
Evidentemente, se me permitirem voltar a um ponto já muitas vezes enfatizado
aqui, nunca é bastante dizer que pode haver uma justificativa, sob certas
circunstâncias, para concluir que há uma justificativa. Seria necessário
organizar uma lista com as vantagens e desvantagens de tal procedimento, à luz
dos princípios liberais. Tudo o que estou dizendo agora é que esta consideração
pode. em alguns casos, justificar a excessão. em ter-nios de se exigir o
registro.
oegundo, o registro é. algumas vezes, um simples meio para facilitar a wiposição
de taxas e nada mais. A questão seria, neste caso. saber se a taxa ^n questão é
um método apropriado de levantar fundos para o financiamen-° de serviços
governamentais considerados necessários e se o registro facili-a coleta das
taxas. No caso, o registro pode ser necessário porque há uma a ser imposta à
pessoa que se registra ou porque a pessoa que se regis-
tra é utilizada como coletor de taxas. Por exemplo, para coletar uma taxa sobre
a venda de determinadas mercadorias, é necessário ter um registro ou uma lista
de todos os lugares em que tais mercadorias são vendidas.
Terceiro - e esta é a justificativa mais próxima de nosso interesse principal -,
o registro pode ser um meio de proteger os consumidores contra fraudes. Em
geral,
os princípios liberais atribuem ao Estado o poder de reforçar contratos, e a
fraude envolve a violação de um contrato. É, sem dúvida, pouco provável que se
deseje ir tão longe na tentativa de proteger contratos antecipadamente contra
fraudes, pois tal atitude implica em interferência nos contratos voluntários. Mas não acho que se deva excluir, na base de princípios, a possibilidade de
existirem certas atividades tão passíveis de ensejar fraude que tornam
conveniente dispor de uma lista de pessoas que as desempenhem. Exemplo
conveniente talvez seja o registro de motoristas de táxi. Um motorista de táxi
que sirva uma pessoa à noite pode estar em posição especialmente propícia para
roubá-la. Para inibir tais comportamentos, pode constituir boa medida uma lista
com os nomes das pessoas que exercem tal profissão, dar a cada uma um número, e
exigir que este número seja colocado no táxi; assim, quem for molestado precisa
lembrar-se apenas do número do táxi. Isso envolve simplesmente o uso do,poder da
polícia de proteger os indivíduos contra a violência por parte de outros
indivíduos e pode ser o modo mais conveniente de fazê-lo.
O certificado é muito mais difícil de justificar, pois há certas coisas que o
mercado pode fazer muito bem por si só. O problema é o mesmo tanto para produtos
quanto para serviços. Há agências privadas de certificação em inúmeras áreas que
certificam a competência de uma pessoa ou a qualidade de um produto particular.
O selo Good Housekeeping é um dispositivo de certificação privado. Para produtos
industriais, há laboratórios privados de exame que certificarão a qualidade de
um determinado produto. Para produtos de consumo, há agências de exame de
consumidores, das quais as mais conhecidas são a Consumer's Union e a Consumer's
Research. As Better Business Bureau são organizações de voluntários que
certificam a qualidade de determinados negociantes. Escolas técnicas, colégios e
universidades certificam a qualidade dos que lá se formam. Uma das funções dos
varejistas e das grandes lojas é certificar a qualidade dos inúmeros itens que
vendem. O consumidor adquire confiança na loja, e a loja. por sua vez, tem
icentivo para manter tal confiança investigando sempre a qualidade do que vende.
E evidente que se pode sempre argumentar que, em alguns casos, ou talvez mesmo
em muitos, a certificação voluntária envolve o problema de se manter a
informação em caráter confidencial. A questão é essencialmente a mesma levantada
com relação a patentes e copyrighís, isto é. saber se é possível aos indivíduos
estabelecer o valor dos serviços que prestam aos outros. Se monto um negócio de
certificação de pessoas, pode não existir
nhum modo eficiente por meio do qual eu possa obter o pagamento da 116 ha
certificação. Se vender minha informação a uma pessoa, como pos-mi impedi-la de
passá-la para outras? Conseqüentemente, talvez não seja
ssível obter troca voluntária efetiva com respeito à certificação, mesmo
tratando-se de um serviço pelo qual as pessoas estão dispostas a pagar. A
maneira de contornar o problema, como nos demais casos de efeitos laterais é a
de recorrer à certificação governamental.
' Outra justificativa possível para a certificação baseia-se na questão do
monopólio. Há alguns aspectos de monopólio técnico envolvidos na certificação,
pois o custo de realizar uma certificação é. em grande parte, independente do
número de pessoas a quem a informação é transmitida. Entretanto, não fica
completamente claro que o monopólio seja inevitável.
Ò licenciamento parece ainda mais difícil de justificar. Esse procedimento vai
ainda mais longe na direção de atentar contra os direitos de o indivíduo
participar de contratos voluntários. Há entretanto algumas justificativas que o
liberal terá que reconhecer como dentro de sua concepção de ação governamental
apropriada, mas, mesmo aqui. como sempre, as vantagens têm que ser consideradas
junto com as desvantagens. A justificativa principal, considerada relevante pelo
liberal, é a existência de efeitos laterais. Ò exemplo mais simples e mais óbvio
é o do médico "incompetente" qut provoca uma epidemia. No caso de só prejudicar
seu cliente, trata-se de exemplo de contrato voluntário, e de trocas entre o
paciente e seu médico. Sob esse ponto de vista, não há motivo para intervenção.
Entretanto. pode-se argumentar que, se o médico não cuidar bem de seu paciente,
poderá provocar uma epidemia e prejudicar terceiros não envolvidos direta-mente
na transação. Em tais casos, é compreensível que todos, inclusive o paciente
potencial e o médico, se mostrem dispostos a submeter-se às restrições da
prática da medicina às pessoas "competentes", de modo a evitar que tais
epidemias ocorram.
Na prática, o principal argumento apresentado a favor do licenciamento pêlos
seus proponentes não é esse. que tem algum sentido para um liberal, mas outro,
de caráter estritamente paternalista, que faz pouco ou nenhum sentido. Os
indivíduos, diz-se, são incapazes de escolher adequadamente seus criados, seus
médicos, seus bombeiros ou seus barbeiros. Para que um homem escolha
inteligentemente seu próprio médico, é preciso que também seja médico. A maioria
das pessoas são. portanto, incompetentes e devem ser protegidas contra sua
própria ignorância. Isso significa dizer que nós, em nossa qualidade de
eleitores, devemos nos proteger a nós próprios, em nossa qualidade de
consumidores, contra nossa própria ignorância, a fim de não utilizarmos os
serviços de médicos ou bombeiros incompetentes.
Até aqui, apresentei argumentos a favor do registro, da certificação e do
licenciamento. Nos três casos, é claro que há também elevados custos
sociais a serem comparados com essas vantagens. Alguns desses custos já foram
citados e tratarei de ilustrá-los melhor para o caso da medicina, rnas é
conveniente apresentá-los sob a sua forma geral.
O custo social mais óbvio consiste em que uma destas medidas - registro,
certificação ou licenciamento - quase inevitavelmente se torna um instrumento
nas mãos de um grupo produtor especial para a obtenção de uma posição de
monopólio às expensas do resto do público. Não há meios de evitar esse
resultado.
Pode-se estabelecer um ou mais conjuntos de procedimentos de controle destinados
a evitar essa consequência, mas nenhum deles será capaz de fazer frente ao
problema que se origina dessa concentração maior de interesses dos produtores em
comparação com a dos consumidores. As pessoas mais interessadas nesse tipo de
procedimento, as que maior pressão exercem para sua adoção e as de maior
interesse pela administração serão aquelas que pertencem à profissão ou ao ramo
de negócio envolvido. Inevitavelmente, estenderão a pressão do registro para a
certificação e desta para o licenciamento. Uma vez estabelecida a necessidade de
licenciamento, as pessoas que possam ter alguma intenção de alterar os
regulamentos existentes serão impedidas de poder exercer sua influência. Não
obterão licença; terão, portanto, que passar para outras profissões e perderão o
interesse. O resultado será o controle da entrada na profissão pêlos membros da
própria profissão e, portanto, o estabelecimento de um monopólio.
A certificação é muito menos prejudicial sob esse aspecto. Se os que recebem o
certificado abusarem de sua situação e se, para a certificação de novos membros,
os dirigentes da classe apresentarem condições desnecessariamente rigorosas,
reduzindo em demasia o número dos que praticam determinada profissão, o
diferencial de preço entre os certificados e os não-certificados tornar-se-á
suficientemente grande para levar o público a utilizar os serviços destes. Em
termos técnicos, a elasticidade da demanda para o serviço dos profissionais
certificados será bastante ampla, e os limites dentro dos quais poderão explorar
o resto do público aproveitando-se de sua posição especial serão bastante
estreitos.
Em consequência, a certificação sem o licenciamento é uma prática que mantém boa
dose de proteção contra a monopolização. Também tem suas desvantagens, mas é bom
notar que os argumentos costumeiros para licenciamento - e em particular a
justificativa paternalista - podem ser praticamente satisfeitos pela
certificação. Se a justificativa estiver baseada em nossa ignorância para julgar
bons profissionais, tudo o que se deve fazer é pôr as informações relevantes à
disposição do público. Se, mesmo assim, ainda desejarmos consultar alguém que
não possua certificado, trata-se de problema nosso, e não nos podemos queixar de
que não estávamos informados. Como as justificativas para o licenciamento feitas
por pessoas não membros da profissão podem ser inteiramente satisfeitas pela
certifica-
acho pessoalmente muito difícil apontar um caso em que o licencia-mato seja
preferível à certificação.
Até mesmo o registro tem custos sociais significativos. Trata-se de um rimeiro
passo importante na direção de um sistema em que todo indivíduo tem que carregar
um cartão de identidade ou tem que informar as autoridades a respeito de seus
planos, quaisquer que sejam eles. Além disso. como já se observou, o registro
tende a ser o primeiro passo em direção à certificação e ao licenciamento.
Licenciamento médico O exercício da medicina é uma das profissões cuja prática já foi há muito tempo
restringida a portadores de licença. De imediato, a pergunta: "Devemos permitir
que um médico incompetente exerça a profissão?", só parece admitir uma resposta
- a negativa. Mas gostaria de mostrar aqui a necessidade de uma pausa para
analisarmos melhor a questão.
Em primeiro lugar, o licenciamento é a chave do controle que a profissão médica
pode exercer sobre o número de médicos. Para entender tal declaração, é preciso
examinar a estrutura da profissão médica. A American Medicai Association é,
talvez, a associação profissional mais poderosa dos Estados Unidos. A essência
do poder de uma associação reside na sua capacidade de restringir o número dos
que podem dedicar-se a determinada profissão. Essa restrição pode ser exercida,
indiretamente, pela tentativa de elevar significativamente a importância dos
ordenados pagos, isto é, de colocá-los num nível que não alcançariam em outras
circunstâncias. Se tal salário puder ser posto em vigor, o resultado será a
redução do número de pessoas que poderá conseguir um emprego e, assim,
indiretamente, do número das que se dedicarão à profissão. E essa técnica de
restrição tem desvantagens. Há sempre um grupo de pessoas inconformadas tentando
penetrar na profissão, e uma associação poderá ficar mais segura se limitar
dire-tamente
o número de indivíduos que entram para a profissão. Alguns deles poderão,
portanto, ser eliminados de início, e a associação não terá mais que se
preocupar com eles.
A American Medicai Association está em posição de agir assim. Trata-se de
associação profissional que pode limitar o número de pessoas que pretendem
dedicar-se à medicina. Como pode fazê-lo? O controle essencial reside no estágio
da admissão a uma faculdade médica. O Council on Medicai Education and Hospitais
of the American Medicai Association deve fornecer aprovação às faculdades de
medicina. Para que uma destas consi-9a fazer parte da lista de faculdades
aprovadas, terá que ater-se aos padrões estabelecidos pelo Conselho. O poder do
Conselho já foi demonstrado diversas vezes quando exerceu pressão para a redução
do número de
138 estudantes admitidos. Por exemplo, nos anos 30, durante a depressão, o
Council on Medicai Education and Hospitais escreveu a diversas faculdades de
medicina declarando que estavam admitindo mais estudantes do que deviam - o que
prejudicava a qualidade de sua preparação. Nos dois anos seguintes, cada
faculdade reduziu o número de vagas, dando demonstração muito clara de que a
recomendação tinha surtido efeito.
Por que a aprovação do Conselho é tão importante? Se este abusa de seu poder,
por que não surgem faculdades de medicina que não procuram sua aprovação? A
resposta é que, em quase todos os estados do país. uma pessoa tem que obter o
licenciamento para praticar a medicina e, para isso. deve ter diploma de uma
escola aprovada. Em quase todos os Estados, a lista de escolas aprovadas é
idêntica à das aprovadas pelo Council on Medicai Education and Hospitais. Por
isso, o licenciamento é a chave do controle efetivo de admissão. Tem dois
efeitos. De um lado, os membros da comissão de licenciamento são sempre médicos
e, portanto, têm algum controle no momento em que os médicos solicitam o
licenciamento. Esse controle é mais limitado em suas possibilidades do que o
exercido ao nível das faculdades de medicina. Em quase todas as profissões que
exigem licenciamento, as pessoas podem tentar a admissão mais de uma vez. Se uma
pessoa tenta repetidas vezes em diversos locais, acabará sendo, cedo ou tarde,
admitida. Como gastou tempo e dinheiro em seu treinamento, o interessado tem
todos os incentivos para continuar insistindo. Os processos de licenciamento,
iniciados somente depois de o indivíduo estar treinado, afetam. portanto, o
ingresso na profissão e, em grande parte, aumentam os custos de fazê-lo, pois
existe, sempre, um fator de incerteza envolvido. Mas esse aumento nos custos é
bem pouco efetivo em comparação com a possibilidade de evitar que um homem
inicie determinada carreira. Se for eliminado no estágio da entrada para a
faculdade, jamais aparecerá como candidato para exame de licenciamento, jamais
se tornará um problema nesse estágio. O modo eficiente de manter controle sobre
o número de pessoas que exercem uma profissão é, portanto, o de controlar a
admissão ã respectiva faculdade.
O controle sobre a admissão às faculdades de medicina e mais tarde sobre o
licenciamento permite à profissão limitar o ingresso de dois modos. O modo mais
óbvio é simplesmente eliminar candidatos. O menos óbvio - mas provavelmente muito mais importante - é estabelecer padrões para admissão e licenciamento tão
severos que tornem o ingresso muito difícil e desencoragem os jovens de tentarem
a admissão. Embora a maioria das leis estaduais exija somente dois anos de
preparação anterior para a entrada numa faculdade médica, quase 100% dos
candidatos estudaram durante quatro anos. De modo semelhante, o treinamento
médico propriamente dito foi alongado, sobretudo por meio de uma organização
mais restrita do aproveitamento de residentes.
A propósito, os advogados nunca foram capazes de exercer controle tão efetivo
como o dos médicos na fase de admissão à faculdade, embora já se estejam movendo
nessa direção. A razão é divertida. Quase todas as faculdades de direito que
fazem parte da lista de faculdades aprovadas da Associação funcionam em regime
de tempo integral - não há quase nenhuma faculdade noturna aprovada. Inúmeros
legisladores estaduais, de outro lado, formaram-se em faculdades de direito
noturnas. Se votarem pela restrição da admissão à profissão dos formados em
faculdades aprovadas, estarão, de fato, declarando que eles próprios não estão
qualificados. Sua relutância em condenar a própria competência tem sido o fator
mais importante para evitar que os advogados sigam o caminho dos médicos. Há
muitos anos não faço um estudo detalhado das condições para a admissão na
profissão de advogado, mas parece que as coisas estão mudando. A maior
influência de estudantes demonstra que uma fração maior da população está
frequentando faculdades de direito de tempo integral, e este fato está alterando
a composição do grupo de legisladores.
Voltando à medicina, é a condição de graduação em escolas aprovadas a fonte mais
importante de controle profissional sobre o ingresso. A profissão tem usado esse
controle para limitar o número. Para evitar mal-enten-didos, deixem-me enfatizar
que não estou dizendo que os membros individuais da profissão médica, os líderes
da profissão médica ou os dirigentes do Council on Medicai Education and
Hospitais decidam deliberadamente limitar a entrada de modo a aumentar suas
rendas. Não é assim que a coisa funciona. Mesmo quando tais pessoas discutem
explicitamente a conveniência da limitação do número de profissionais para
aumentarem a renda, elas imediatamente justificam tal política na base de que,
se "demasiadas" pessoas forem admitidas, suas rendas inevitavelmente baixarão.
Com isso, serão levadas a recorrer a práticas não éticas para obterem renda
"apropriada".
A única maneira, argumentam, de se manter uma prática pautada na ética é dar aos
profissionais condições de obterem renda compatível com os méritos e
necessidades da profissão médica. Devo confessar que isso sempre me pareceu
refutável, tanto do ponto de vista ético quanto do factual. E extraordinário que
líderes da medicina proclamem, publicamente, que eles e seus colegas devam ser
pagos para que se comportem eticamente. E, se for realmente assim, duvido que os
preços possam ser limitados. Parece que há pouca relação entre pobreza e
honestidade. Poder-se-ia até esperar o contrário. A desonestidade pode não ser
sempre conveniente.
algumas vezes o é.
O controle do ingresso é racionalizado nestes termos somente em oca-como a
Grande Depressão, quando há muito desemprego e rendas re"tivamente baixas. Em
tempos comuns, a racionalização para a restrição diferente. Diz-se, então, que
os membros da classe médica desejam levan-- ° ue consideram padrões de
"qualidade"
da profissão. O defeito dês-
sa racionalização é muito comum e é o mais destrutivo em termos de urna
compreensão adequada da operação de um sistema econômico: trata-se da
incapacidade de distinguir entre a eficiência técnica e econômica.
Uma historieta sobre advogados poderá ilustrar esse ponto. Numa reunião de
advogados, na qual foram discutidos problemas de admissão, um meu colega, ao
argumentar contra padrões de admissão restritivos, usou uma analogia com a
indústria de automóveis. Não seria absurdo, disse ele. que a indústria
automobilística declarasse que ninguém deveria dirigir um carro de qualidade
inferior e, portanto, que nenhuma fábrica de automóveis tivesse a permissão de
produzir um carro que não satisfizesse os padrões de um Cadillac? Um membro da
audiência levantou-se e disse, aprovando a analogia, que o país não se pode
permitir senão advogados Cadillac! É assim que se apresenta a atitude
profissional. Os membros só consideram os padrões técnicos do desempenho e argumentam que só podemos ter médicos de primeira qualidade, mesmo que isso
signifique que algumas pessoas venham a ficar sem nenhum atendimento médico -
embora naturalmente jamais coloquem a coisa nesses termos. Não obstante, o ponto
de vista de que as pessoas devem obter apenas um serviço médico "ótimo" sempre
leva a práticas restritivas - práticas que baixam o número de médicos
disponíveis. Não quero afirmar ser essa a única força em atuação, mas somente
que é esse o tipo de consideração que leva muitos médicos bem intencionados a
apoiar políticas que rejeitariam imediatamente não fosse o uso de tal
racionalização.
É fácil demonstrar que a qualidade só constitui a racionalização, e não a razão
subjacente à restrição. O poder do Council on Medicai Education and Hospitais
tem sido usado para limitar o número de profissionais sem nenhum tipo de relação
com qualidade. O exemplo mais simples é a recomendação a diversos Estados para
que a cidadania seja estabelecida como condição para a prática da medicina. Não
consigo imaginar como tal fato possa ser relevante para a prática da medicina.
Uma outra exigência que tentaram impor em diversas ocasiões foi a de que os
exames para licenciamento fossem feitos em inglês. Uma prova dramática do poder
da Associação bem como da falta de relação com a qualidade está evidenciada num
fato que sempre me impressionou. Após 1933, quando Hitler subiu ao poder na
Alemanha, houve intensa saída de profissionais da Alemanha. Áustria e outros
países, incluindo naturalmente médicos que queriam trabalhar nos Estados Unidos.
O número de médicos treinados no exterior que obtiveram licença para trabalhar
nos Estados Unidos nos cinco anos seguintes a 1933 foi exatamente igual ao total
dos cinco anos anteriores. Não se trata evidentemente do resultado do curso
natural dos fatos. A ameaça desses médicos adicionais levou a uma restrição
ainda maior nas condições de admissão para médicos estrangeiros - o que lhes
impôs custos muito altos para ingressarem na profissão.
Está claro que o licenciamento é a chave da possibilidade de a profis-
são médica restringir o número de médicos que praticam a profissão. E tam-hém o
que lhe permite limitar as mudanças técnicas e organizacionais no modo como é
praticada a medicina. A American Medicai Association tem-se colocado
decididamente contra a prática da medicina em grupo e contra nlanos médicos com
pagamento prévio. Esses métodos podem ter aspectos positivos e negativos, mas
são inovações tecnológicas que as pessoas devem ter a liberdade de poder
experimentar e avaliar, se assim o desejarem. Não há base para se declarar, de
modo conclusivo, que o método técnico ótimo de organizar a prática médica seja
da prática exercida por um médico independente. Talvez seja a prática em equipe,
talvez por corporações. É preciso ter um sistema em que todas as variedades
possam ser tentadas.
A American Medicai Association tem resistido a tais tentativas, e tem sido capaz
de impedir todas elas. E só foi capaz de fazer isso porque o licenciamento lhe
deu indiretamente o controle da admissão para praticar em hospitais. O Council
on Medicai Education and Hospitais aprova hospitais do mesmo modo que aprova
faculdades de medicina. Para que um médico consiga ser admitido para praticar
num hospital "aprovado", deve, em geral, ser aprovado pela associação médica de
seu condado ou pela comissão do hospital. Por que hospitais não-aprovados não
podem se estabelecer? Porque, sob as condições econômicas atuais, para que um
hospital possa funcionar, precisa ter certo número de internos. As leis que
regem o licenciamento em inúmeros Estados exigem que o candidato tenha uma certa
experiência como interno em hospitais - mas. em hospitais "aprovados". A lista
dos hospitais "aprovados" é geralmente idêntica à do Council on Medicai
Education and Hospitais. Conseqüentemente. a lei de licenciamento dá à profissão
controle sobre os hospitais e sobre as faculdades. É esta a chave do sucesso da
AMA em sua oposição a diversos tipos de prática em grupo. Em alguns casos, os
grupos conseguiram sobreviver. No Distrito de Colúmbia, alguns grupos tiveram
sucesso porque levaram a AMA aos tribunais, sob a proteção da lei federal
antitruste Sherman - e ganharam a causa. Em outros poucos casos, ganharam por
motivos especiais. Há, entretanto, sem sombra de dúvida, uma indicação clara de
que a tendência em direção à prática em grupo foi grandemente retardada pela
oposição da AMA.
E interessante - e trata-se aqui de um comentátio incidental - observar que a
associação médica só é contrária a um tipo de prática em grupo. Kto é, à prática
com pagamento prévio. A razão econômica parece ser a de que esse procedimento
elimina a possibilidade de se estabelecer preços discriminatórios.8 
Está claro, pois, que o licenciamento é o âmago da restrição à entrada
"VerKESSEL. Reuben. "Price Discrimination in Medicina" In: The Joumo l (outubro
de 1958). p. 20-53.
I.c.íi jnd Economics
na profissão e envolve um custo social pesado - tanto para os indivíduos que
desejam praticar a medicina e são impedidos de fazê-lo quanto para o público
privado dos cuidados médicos que deseja comprar e é impedido de fazê-lo. Deixem-
me
agora fazer a pergunta: tem o licenciamento os bons efeitos que se declara?
Em primeiro lugar, promove realmente a elevação dos padrões de competência? Não
ficou de modo algum provado que ele eleva o padrão de competência na prática da
profissão por diversas razões. Sempre que se estabelece um bloco para entrada
num campo qualquer, se está criando um incentivo para a busca de meios capazes
de contorná-lo e, evidentemente, a medicina não constitui uma exceção. O
aparecimento de profissões como a osteopatia e outras não é independente das
restrições à entrada na medicina. Ao contrário, cada uma delas representa, de
certo modo, uma tentativa de contornar as restrições à entrada. Cada uma delas,
por sua vez, está tomando as providências necessárias para também impor o
licenciamento e respectivas restrições. O efeito é a criação de níveis e tipos
diferentes de práticas e o estabelecimento de uma distinção entre o que é
denominado de prática médica e substitutos como osteopatia, quiroprática. cura
pela fé etc. Tais alternativas podem ser de qualidade inferior Á que
apresentariam sem as restrições ao ingresso na profissão médica.
De modo mais geral, se o número de médicos é menor do que seria em outras
circunstâncias, e se todos estão inteiramente ocupados, como geralmente estão,
isso significa que há uma quantidade menor de prática médica, por médicos
treinados - um número menor de homens-hora de prática médica. A alternativa é a
prática não treinada por parte de outros, e poderá ser levada a cabo por pessoas
sem qualquer qualificação profissional. Além de tudo, a situação é bem mais
alarmante. Se a "prática médica" é limitada a profissionais licenciados, é
preciso definir em que consiste a prática médica. A partir da interpretação das
normas existentes proibindo a prática não autorizada da medicina, inúmeras
coisas ficaram restritas a médicos licenciados - coisas essas que poderiam muito
bem ser feitas por técnicos ou outros profissionais competentes que não dispõem
de treinamento médico do tipo Cadillac. Não tenho conhecimentos suficientes para
citar grande número de exemplos. Mas os que examinaram a questão declararam que
a tendência é incluir na "prática médica" uma gama cada vez mais ampla de
atividades que poderiam ser desempenhadas por técnicos. Médicos treinados
dedicam grande parte de seu tempo a coisas que poderiam ser feitas por outros. O
resultado é a redução drástica da quantidade de cuidados médicos. Um atendimento
médico de boa qualidade, se é que se pode definir tal conceito, não pode ser
obtido por meio de simples nivelamento da qualidade do atendimento efetivamente
dado. Seria como julgar a eficiência de um tratamento médico considerando apenas
os sobreviventes. É preciso considerar também que as restrições reduzem a
quantidade de atendimento. Na verdade, é possível que o nível médico de compe-
. no sentido em que realmente interessa, tenha ficado reduzido pelas
1 Mesmo esses comentários não são bastante amplos, pois consideram a 'tuação num
certo ponto no tempo e não permitem a consideração de mudanças ao longo dele. Os
avanços sem qualquer ciência ou campo surgem ase sernpre do trabalho de um entre
inúmeros charlatães e malucos ou de pessoas que não pertencem à profissão. Na
profissão médica, nas atuais circunstâncias, é muito difícil trabalhar em
pesquisa ou experimentos se não se pertencer à profissão. Se uma pessoa ë membro
da profissão e deseja manter-se com segurança dentro dela, ficará seriamente
limitada quanto ao tipo de experimentação que poderá desenvolver. Um "curador
pela fé" poderá ser um charlatão explorando a crueldade de seus pacientes, mas
talvez um entre milhares ou entre milhões leve a um desenvolvimento importante
na medicina. Há muitos caminhos que levam ao conhecimento - e o efeito de
restringir a prática do que é denominado medicina e defini-la (como costumamos
fazer, com relação a um determinado grupo, que, de modo geral, deve conformar-se
à ortodoxia existente) levará certamente a uma redução no volume da
experimentação e. por conseguinte, a uma redução da taxa de crescimento do conhecimento nessa área. O que é verdade no contexto da medicina também o será
para a sua organização, como já sugerimos acima. Discutirei esse ponto em
detalhes mais adiante.
Há, ainda, outro modo em que o licenciamento e o monopólio associado na prática
da medicina tendem a tornar mais baixos os padrões da prática da profissão. Já
mostrei como os padrões da prática são baixados pela redução do número de
médicos disponíveis, pela redução do número total de horas disponíveis ao médico
treinado para tarefas mais ou menos importantes e pela redução do incentivo à
pesquisa e ao desenvolvimento. O padrão é ainda tornado mais baixo por ser muito
difícil para o cidadão tomar providências contra um profissional incompetente.
Uma das proteções do cidadão contra a incompetência é a proteção contra a fraude
e a possibilidade de levar determinados casos até o tribunal. Algumas causas
chegam até lá e os médicos se queixam do alto preço que têm que pagar por isso.
Entretanto, causas desse tipo são muito raras e frequentemente não têm sucesso -
devido ao olho protetor das associações médicas. Não é fácil conseguir que um
médico testemunhe contra um colega, se tiver que enfrentar a sanção de ver
negado seu direito de praticar num hospital "aprovado". As testemunhas têm que
vir geralmente de membros de grupos estabelecidos Pelas próprias associações -
sempre, naturalmente, em benefício do alegado interesse dos pacientes.
Quando esses efeitos são levados em consideração, fica claro que o li-
Cenciamento
reduziu tanto a quantidade como a qualidade da prática médi-A;.'**", que reduziu
as oportunidades disponíveis aos que desejavam estudar forçando-os a aceitar
profissões que consideram menos atraen-
que forçou o público pagar mais por atendimento médico menos satis-
fatório; que retardou o desenvolvimento tecnológico tanto na própria medicina
quanto na organização da prática médica. Concluo, pois, que o licenciamento
deveria ser eliminado em termos de requisito para a prática da medicina.
Depois disso, muitos leitores, imagino eu, como inúmeras pessoas com quem
discuti o assunto, dirão: "Bem, mas de que outra maneira poderei eu ter a prova
da qualidade de um médico? Apesar de tudo o que disse sobre os custos, não é
licenciamento o único meio de dar ao público alguma segurança de ter pelo menos
um mínimo de qualidade?" A resposta é, em parte, que o público não escolhe
médicos agora numa lista de médicos licenciados e, ainda, que a capacidade de um
homem de ter passado num exame há vinte ou trinta anos não constitui garantia de
sua qualidade atual. Logo, o licenciamento não é agora a principal ou uma das
principais fontes de segurança de um mínimo de qualidade. Mas a resposta
principal é muito diferente. É que a própria pergunta revela a tirania do status
quo e a pobreza de nossa imaginação em campos em que somos leigos - e até mesmo
naqueles em que temos alguma competência, em comparação com a fertilidade do
mercado. Permitam que ilustre esse ponto com algumas especulações sobre como a
medicina se teria desenvolvido e que garantias de segurança poderiam ter surgido
- se a profissão não tivesse exercido o poder do monopólio. .
Suponhamos que todos tivessem a liberdade de praticar a medicina sem nenhuma
restrição, a não ser a responsabilidade legal e financeira de qualquer dano
infligido a outros por fraude ou negligência. Imagino que o inteiro
desenvolvimento da medicina teria sido diferente. O mercado atual para serviços
médicos, apesar de todas as dificuldades enfrentadas, pode dar-lhe alguns
indícios sobre as diferenças envolvidas. A prática em equipe, juntamente com os
hospitais, teria crescido enormemente. Em vez de prática individual, mais
instituições hospitalares dirigidas pelo governo ou sociedades filantrópicas,
poderiam ter-se desenvolvido sociedades médicas ou corporações -- equipes
médicas. Poderiam elas, então, fornecer equipamento central para diagnóstico e
tratamento, incluindo o internamento em hospitais. Em alguns casos, haveria
pagamento prévio, combinando em um só plano seguro médico, seguro hospitalar e
prática médica em equipe. Outros poderiam cobrar honorários separados por
prática separada. E, evidentemente, muitos poderiam usar os dois tipos de
pagamento.
Essas equipes médicas - grandes mercados da medicina, se assim preferirem -
seriam os intermediários entre os pacientes e o médico. Dotadas de vida longa
teriam grande interesse em estabelecer boa reputação de segurança e qualidade.
Pela mesma razão, os consumidores viriam a conhecer sua reputação. Teriam o conhecimento necessário para julgar a competência dos médicos. De fato, seriam
elas os agentes dos consumidores em tal tarefa, como o são para muitos produtos
os grandes departamentos de vendas atualmente. Além disso organizar com
eficiência o serviço médico,
binando médicos de diferentes capacidades e treinamento, usando téc-de
treinamento, limitados para ac tarefas para as quais estão habilita-e reservando
os especialistas altamente capazes e competentes para as que só eles podem
realizar. O leitor pode adicionar outras tantas ^possibilidades a seu gosto,
tomando como base o que acontece agora nas grandes clínicas.
Obviamente, nem toda a prática médica se desenvolveria por meio dessas equipes.
A prática individual privada continuaria, tal como continuam existindo as
pequenas lojas com clientela limitada ao lado dos gran-estabelecimentos
comerciais e os advogados individuais ao lado das fir-formadas por um grande
número de associados. Alguns profissionais ibeleceriam sólidas reputações
individuais, e alguns pacientes preferi-a privacidade e a intimidade do
atendimento particular. Certas áreas .m pequenas demais para serem servidas por
equipes médicas. E assim diante.
Não quero nem mesmo afirmar que as equipes médicas dominariam > o campo. Meu
objetivo é somente mostrar, por meio de exemplo, há inúmeras alternativas à
presente organização da prática médica. A ibilidade de qualquer indivíduo ou
grupo pequeno ser capaz de con-todas as possibilidades - e muito menos de
avaliar seus méritos - é maior argumento contra o planejamento governamental
central e contra organizações do tipo monopólio profissional que limita as
possibilidades experimentação. De outro lado, o grande argumento em favor do
mer-lo
é a diversidade, sua habilidade em utilizar uma ampla variedade de hecimentos e
capacidade especiais. É capaz de tornar impotentes gru-especiais que tentassem
reduzir a experimentação e permite aos consu-lores - e não aos produtores -
decidir o que melhor atende às suas dades.

Capitalismo e Liberdade - Milton FriedmanOnde histórias criam vida. Descubra agora