CAPÍTULO XIV

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CONVERGÊNCIA

Corujas, corvos, pombos e libélulas chegavam ao Castelo Morningstar aos borbotões. Mensagens de cada reino e de cada canto das regiões mágicas ainda chegavam copiosamente. Muitas perguntavam a respeito da grande magnitude de energia que surgira com a morte de Úrsula e se haviam sido tomadas providências. Algumas das mensagens eram simples demonstrações de condolências pela passagem de Úrsula. Babá não tinha tempo para nada disso. Responderia a elas assim que tivesse lidado com Malévola. Uma mensagem, porém, não podia esperar. Era de sua irmã, informando-a de que um grupo de fadas estava a caminho para ajudá-la a cuidar da “situação das três irmãs esquisitas”. Essa era a última coisa de que Babá precisava: um punhado de fadas aterrissando em Morningstar enquanto Malévola estivesse ali!
Por que, em nome de Hades, o mundo resolve despencar todo de uma vez? Só minha irmã e suas tolas fadinhas concessoras de desejos para se meterem onde não são chamadas!
Babá ficou imaginando se tudo seria um esquema para confrontar Malévola. Teve dificuldade em acreditar que a Fada Madrinha se preocupasse com as irmãs esquisitas. Não, estava apenas sendo paranoica. Como as fadas poderiam ter ciência da aproximação de Malévola a Morningstar? As fadas estavam vindo para discutir a respeito das irmãs esquisitas. A importante Senhorita Bibidi-bobidi-bu vinha para julgar as irmãs esquisitas. Simples assim. Direto. Não havia nada com que se preocupar.
A intuição de Babá a incomodava. Não. Este encontro será desastroso. Tinha certeza disso.
Babá se sentia oprimida, não só por tudo o que estava acontecendo, mas também pelas recordações incessantes que continuavam a espocar em sua mente. Era estranho. Suas lembranças a inundavam, mas Babá não conseguia se lembrar de como as perdera, para início de conversa.
– Você provavelmente lançou um feitiço em si mesma para se esquecer. Parece-me algo que você faria – Circe disse à soleira da porta, interrompendo os pensamentos de Babá.
Circe devia ter razão. Era bem provável que Babá tivesse autoimposto a perda de memória como um modo de lidar com a dor por ter falhado em proteger Malévola. Já era horrível o suficiente lembrar-se dos próprios arrependimentos, mas lembrar-se das recordações de Malévola em detalhes vívidos era de partir o coração. Não era nenhuma surpresa que tivesse escolhido o olvidamento.
Babá mudou de assunto, em uma breve tentativa de evasão das lembranças.
– Como estão suas irmãs? Alguma alteração?
Circe sacudiu a cabeça.
– Nenhuma.
Babá pareceu triste, perdida em pensamentos. Não se expressou, mas Circe sabia que ela também estava muito inquieta com as irmãs esquisitas, e que também estava preocupada a respeito de Malévola.
– Não quero que se preocupe – Circe disse por fim. – Sei que encontraremos uma maneira de acordar minhas irmãs. E quanto a Malévola, você tem Pflanze. Tem Tulipa. E, claro, tem a mim. Estamos aqui. Não há nada que Malévola possa lhe fazer conosco ao seu lado.
– Francamente, estou mais preocupada com minha irmã e suas amiguinhas boazinhas – Babá confessou, entregando a missiva da Fada Madrinha para Circe. – Elas também estão a caminho.
Circe estreitou os olhos.
– Isto é um problema. Não há como sugerir que deem meia-volta? Dizer-lhes que não são necessárias?
Babá meneou a cabeça.
– Minha irmã nunca imagina uma situação em que não seja bem-vinda. Dizer-lhe que não é necessária sequer seria ouvido. Rejeitá-la não é uma opção. Ela simplesmente me olharia com placidez e fingiria não entender o que estou lhe dizendo.
Circe suspirou.
– Por que ela está vindo? Você não acha que foi ela quem adormeceu minhas irmãs, acha?
– Honestamente, não sei. Presumi que elas estivessem dormindo porque combater o feitiço que criaram para ajudar Úrsula tivesse lhes sugado as forças – Babá explicou. – Mas elas ainda não acordaram. Nada do que fiz ajudou. Nada que você tenha feito as ajudou. E agora fico me questionando se as fadas de algum modo intervieram.
Os olhos de Circe reluziram de raiva.
– Intervieram como? Se elas as machucaram…
– Não, a magia delas não permite que elas firam ninguém, nem mesmo seus inimigos – Babá explicou. – E suas irmãs nunca foram inimigas delas, não de verdade. Sim, ficaram ao lado de Malévola no passado. As irmãs esquisitas a ajudaram antes, mas elas nunca perseguiram as fadas. Ao que tudo leva a crer, minha irmã vem extrapolando suas funções nos últimos tempos. Ela vem estendendo demais as funções de Fada Madrinha. A Princesa Aurora não é sua afilhada, mas se ela tomou para si a tarefa de lançar um feitiço de sono eterno sobre suas irmãs, aposto como foi pela proteção das suas amadas princesas.
Circe franziu o cenho.
– Pensei que Cinderela fosse a única princesa dela.
– Ela é, e está vivendo muito feliz. Mas suspeito que minha irmã esteja se cansando de não ter muita coisa a fazer. Por isso está metendo seu narizinho rechonchudo onde não devia – Babá suspirou. – Chega de falar da minha irmã. Só espero que ela não traga aquelas insuportáveis aduladoras, as três fadas boas, com ela.
– Você não gosta das fadas, não é mesmo, Babá? – Circe perguntou com um sorriso. – Eu não a culpo. Se serve de consolo, não a considero uma fada. No meu coração, você é uma bruxa e sempre foi.
– Obrigada, querida. Suas irmãs certa vez disseram algo bem parecido para mim e para Malévola. Algo a respeito de termos nascido fadas, mas termos corações de bruxas. Suponho que estivessem certas.
Circe pensou a respeito.
– Veja, se pensar bem, uma fada pode muito bem ser uma bruxa, assim como um humano poderia, se fosse capaz de executar o tipo certo de magia. Mas com você, acho que existe mais por trás. É o que vejo em seu coração. Você não partilha das sensibilidades de fada.
– Não mesmo! E eu lhe agradeço por isso, minha querida, mas…
Babá foi interrompida por uma batida forte à porta de entrada do castelo, que sobressaltou a ambas. O coração de Babá despencou. Ainda não estava preparada para enfrentar Malévola.
Circe tomou a mão de Babá e a apertou, lembrando-a de que estava ali para protegê-la. Como Babá desejou ter Circe sempre em sua vida… Como teria sido contar sempre com uma jovem bruxa poderosa desejando fazer o bem ao seu lado? Uma bruxa de coração aberto e sem a intolerância que corria à solta em meio à comunidade das fadas? Babá vinha se preparando para a ira de Malévola, mas ainda não estava pronta para enfrentá-la. Não estava preparada para a censura. Talvez, quando Malévola visse Circe, ela enxergasse seu coração e visse Babá através dos olhos de Circe. E talvez a julgasse menos por conta do amor que Circe sentia por ela – uma mulher velha que apenas agora se lembrava de quem era de fato.
Hudson entrou na sala com uma expressão grave. Estava pálido e parecia pouco à vontade.
– O que foi, Hudson? Qual o problema? Quem está aqui? – Babá perguntou.
– É a Rainha Branca de Neve, senhora. Ela enviou uma mensagem.
Pelo amor de todas as coisas boas, o que Branca de Neve poderia querer conosco?, Babá se perguntou.
Hudson passou o peso para a frente e para trás, desajeitado.
– E o pajem, senhora, diz que a mensagem é da Rainha Branca de Neve e da mãe dela.
Não era do feitio de Hudson fazer perguntas, ainda mais quanto à realeza, mas ele não pôde se conter.
– Senhora, a Rainha Branca de Neve perdeu o juízo? Todos sabem a história da derrocada da velha rainha. Por favor, desculpe a minha impertinência, mas…
– Meu caro Hudson, por favor, não se preocupe com isso. Eu lhe garanto que a Rainha Branca de Neve não enlouqueceu – Babá afirmou.
– Sim, senhora – Hudson disse nervoso. Ele não parecia nada à vontade com o conhecimento de que a mal-afamada Rainha Grimhilde de alguma maneira ainda habitava este mundo.
– O temperamento da velha rainha mudou desde a sua morte, Hudson. Por favor, não se preocupe – Babá tranquilizou-o. Hudson lançou um olhar a Babá ao qual ela já se acostumara: um olhar maravilhado por ela ter lido seus pensamentos. – Ficarei com a mensagem agora, Hudson, se você não se importar – acrescentou com um sorriso recatado.
Hudson tateou desajeitadamente à procura da mensagem e a colocou na mão estendida de Babá.
– Claro. S-sinto muito! – ele gaguejou.
– Por favor, Hudson, não se preocupe. Por que não desce e toma uma bela xícara de chá? Acho que isso lhe fará bem.
– Pobre Hudson – Circe disse com uma risada enquanto as bruxas viam-no se afastar. – O que diz a carta?
– Deixe-me ver – respondeu Babá. Circe a observou, analisando as feições de Babá em vez de ler seus pensamentos. Evidentemente as rainhas não enviavam boas notícias. – Parece que suas irmãs deixaram um livro no antigo castelo da rainha em uma das suas visitas, quando Branca ainda era pequena – Babá explicou. – Um Livro dos Contos de Fadas. Aparentemente, a velha rainha costumava ler o livro para Branca quando ela era criança, e existe uma história sobre uma Bruxa Dragão que faz uma jovem adormecer para sua própria proteção. Elas agora se perguntam, com tudo o que vem acontecendo com Aurora e com Malévola, se esse livro não previu a história delas.
Circe não sabia o que entender a partir dessa informação, mas Babá prosseguiu antes que ela pudesse fazer alguma pergunta.
– A parte mais preocupante para ela é que o livro parece prever a história de todos. Não apenas a de Aurora, mas a de Branca, de Ariel, de Tulipa, de Cinderela e até a sua! A velha rainha e Branca de Neve estão preocupadas que o livro esteja enfeitiçado.
Circe nem quis pensar no que significaria caso suas irmãs tivessem enfeitiçado o livro.
– Acredita que ele seja?
– Enfeitiçado? Não, acho que conheço esse livro. Acredito que esteja simplesmente registrando o tempo. Não é uma profecia nem um encantamento. Duvido que até mesmo suas irmãs fariam algo assim.
Circe não tinha tanta certeza.
– Se minhas irmãs enfeitiçaram esse livro, você sabe que a rainha Grimhilde buscará vingança. Todos irão querer.
Babá estremeceu ante a ideia. Se as irmãs esquisitas tivessem mesmo enfeitiçado o livro, nem mesmo Circe seria capaz de protegê-las das repercussões dos seus graves feitos.
– Precisamos ver esse livro. Circe, pode escrever para Branca de Neve e pedir que o envie? A única maneira de sabermos se o livro está enfeitiçado é você o avaliar. Se suas irmãs fizeram isso…
Circe a interrompeu.
– Será devastador.
Babá sentiu um calafrio terrível ao pensar na destruição que as irmãs esquisitas causaram no decorrer dos anos. Sentiu um peso no coração – um peso que não sentia há tanto tempo que nem se lembrava da última vez. Ficou se perguntando se deveriam mesmo trazer as irmãs de volta. Prometera a Circe ajudá-la a despertá-las simplesmente porque era a vontade de Circe, e Babá não desejava outra coisa senão fazer Circe feliz. Mas será que seria mesmo o melhor rumo para Circe? Ela ficaria feliz com as irmãs no mundo, infligindo morte e destruição em tudo o que tocavam? Circe passaria o resto de sua longa vida consertando os erros das irmãs e ajudando àqueles que as irmãs tivessem prejudicado. Será que um dia atingiria seu potencial máximo nas sombras delas? Babá sentia o coração despedaçado no rastro dessa revelação. Não posso me recusar a ajudá-la agora. Não posso recuar na minha promessa. Mesmo que fosse melhor para Circe se as irmãs permanecessem dormindo.
O rosto de Circe estava carregado de pesar. Ouvira os pensamentos de Babá e se sentiu traída por eles.
– Como pôde? – Circe lamuriou-se enquanto o rosto de Babá empalidecia.
Babá não tivera a intenção de que Circe ouvisse suas ponderações.
– Só quero protegê-la, Circe. Eu juro – insistiu.
Circe permaneceu em silêncio, sem saber o que dizer. Sentia-se entorpecida e à beira das lágrimas. Não conseguia encarar Babá.
– Acho que vou para casa agora, escrever para Branca de Neve, e perguntar mais a respeito desse livro – anunciou Circe. – Além disso, acho que me faria bem uma mudança de ares.

Malévola: A Rainha do MalOnde histórias criam vida. Descubra agora