A TERRADOS SONHOSNa Terra dos Sonhos, tudo funcionava de modo diferente do que em praticamente qualquer outro lugar. Quase qualquer coisa era possível no cenário dos sonhos. A terra era imutável em um eterno crepúsculo. O sol, que nunca se punha, lançava um brilho etéreo e criava um tipo especial de magia conhecido por alguns como a hora dourada. Todos os habitantes da Terra dos Sonhos ocupavam um lugar próprio, como pequenos vilarejos em um reinado de tamanho incomensurável. Cada câmara era composta quase completamente de espelhos. E, se os sonhadores conseguissem compreender a magia dos espelhos, eles teriam um vislumbre do mundo exterior. No entanto, a magia do cenário onírico permanecia esquiva à maioria dos visitantes do reino e confundia alguns dos seus habitantes mais longevos, tornando-o um lugar extremamente solitário.
A magia não era algo desconhecido a Aurora. Ainda que suas cuidadoras tivessem escondido seus poderes nos últimos dezesseis anos, ela sempre sentira algo de mágico em relação a elas. Aurora jamais conversava sobre isso com suas tias fadas, mas sabia quando havia magia por perto. Não sabia por quê, mas isso nunca a assustara. Também conseguia sentir a magia se movendo nos outros reinos, mesmo naqueles distantes de si. Portanto, não lhe foi difícil desvendar como usar a magia na Terra dos Sonhos. Aurora concluiu que a magia que se podia controlar naquele mundo não era muito potente. Se fosse, ela teria encontrado um modo de despertar. Ao que tudo levava a crer, a magia de Malévola era forte demais para ser superada pela magia do cenário dos sonhos – além disso, a magia naquele lugar não era direta nem exatamente prática. Em vez disso, era um tanto básica e mundana, mas ao mesmo tempo imprevisível e caótica. No entanto, a princesa a canalizara para enxergar o mundo exterior.
O canto de Aurora no cenário onírico era uma câmara octogonal construída por espelhos retangulares muito altos. Ela conseguia ver uma miríade de eventos do passado e do presente, oriundos de diversos reinos, refletida nos espelhos. No início, ela se perguntou se o espaço e as imagens não passavam de um sonho, mas depois concluiu que eram reais. Essa simples decisão lhe deu o poder de controlar as imagens que apareciam nas superfícies refletidas. Aurora logo percebeu que só o que precisava fazer era pensar em alguém que quisesse ver e a imagem dessa pessoa apareceria em um dos painéis espelhados. Conseguiria ver onde essas pessoas estavam e o que faziam, o que possibilitou que se sentisse menos solitária naquele reino estranho. Isso lhe trouxe conforto, mesmo que acompanhado da ideia de que talvez nunca mais andasse pelo mundo desperto novamente.
Era estranho receber tanto conhecimento de uma só vez e tão pouco controle para direcionar o próprio destino. Mas ela ouvia, observava e aprendia. Aurora descobriu que seu noivo era, na verdade, o jovem por quem se apaixonara na floresta. Descobriu que Malévola providenciara para mantê-lo aprisionado em seu calabouço. Tomou conhecimento de que suas tias fadas mudaram seu nome para Rosa para protegê-la e descobriu o motivo disso. Ela sabia de tudo. Até chegou a achar que sabia por que Malévola estava fazendo aquilo tudo, mas essa parte era assustadora demais para pensar a respeito. Portanto, concentrou-se em outras pessoas. Aurora procurava as tias fadas, que pareciam planejar uma visita a bruxas que Aurora não conhecia. Às vezes, ela visitava a mãe e o pai enquanto eles dormiam. Tentava identificar o que eles sonhavam, mas não conseguia. A princesa supôs que seus sonhos fossem particulares. Até tentou encontrá-los no mundo dos sonhos, mas parecia ser impossível trafegar entre as câmaras. Com isso, Aurora procurou se contentar em conhecer a própria história. Observava os acontecimentos passados nos muitos espelhos do seu cômodo. Porções de imagens cascateavam em seu campo de visão e ela se viu bebê, no dia do seu batizado. Ali, no cenário dos sonhos, Aurora viu Malévola, a impassível e imponente Fada das Trevas, pela primeira vez. Ela era muito provavelmente a criatura mais bela que Aurora já vira, altiva entre os convidados de seus pais. Aurora testemunhou como acabou presa naquele reino, aprisionada numa morte sonial. O motivo de ter passado tantos anos sob o cuidado das fadas, acreditando ser outra pessoa: uma menina chamada Rosa que jamais imaginou ser uma princesa. De fato, ela não sabia o que era pior: passar a vida no mundo dos sonhos ou viver em um mundo onde todos lhe mentiam.
Uma voz ecoou pela sua câmara:
– Ah, nós sabemos. Sabemos muito bem o que é pior.
Aurora rodopiou, perscrutando os espelhos. Não conseguia descobrir quem falava com ela.
– Aqui, princesa. Ou devemos chamá-la de Rosa?
Aurora girou de novo. Espiando pelo canto direito de um dos espelhos, encontrou uma mulher estranha. Ela usava um vestido vermelho-vivo bem ajustado à cintura. As botas de bico fino se sobressaíam por debaixo da saia. Aurora não entendia bem o porquê, mas havia algo de sinistro naquelas botas. Pareciam-se com criaturas furtivas deslizando para fora de uma cortina de sangue. Aurora lembrou-se de que aquele era o mundo dos sonhos e que não deveria deixar a imaginação correr à solta. Mas nada a respeito daquela mulher parecia certo. Suas feições eram desproporcionais: a pele mortalmente pálida, os olhos esbugalhados, cabelos negros como o piche e minúsculos lábios vermelhos. Nada parecia se encaixar. Nesse instante, duas outras mulheres exatamente como ela surgiram nos espelhos, ladeando o da primeira e formando um trio.
– Sim, somos três! – cantarolaram em uníssono.
– Isto só pode ser um sonho – Aurora disse consigo. – Essas mulheres não podem ser reais!
– Ah, mas nós somos reais, princesa – disse a primeira delas.
– Bem-vinda ao mundo dos sonhos, pequena – a segunda entoou.
– Sim, estivemos à sua procura – acrescentou a terceira.
– Malévola ficará satisfeita porque a encontramos – as três disseram juntas. Dito isso, as três irmãs começaram a gargalhar, e o riso delas suscitou calafrios, atravessando o coração de Aurora.
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Malévola: A Rainha do Mal
Historia CortaEra uma vez uma adorável e indefesa donzela que dorme profundamente anos a fio - vítima de uma maldição - antes de ser resgatada pelo belo e corajoso príncipe encantado. Mas essa é apenas a metade da história. E quanto à Fada das Trevas, Malévola? T...