CAPÍTULO VIII

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O PÁSSARO NO SÓTÃO

Branca de Neve estava sozinha no sótão, sentada entre os pertences de sua mãe, rememorando como tinham sido as coisas no passado, na época em que sua madrasta morrera e se tornara a mãe que Branca sempre quisera que ela fosse. Branca entendia o motivo de sua mãe não querer subir até ali. Aqueles objetos lembrariam a velha rainha de um período em que havia se isolado anos atrás – a época em que enlouquecera por conta da dor do luto e planejara matar a própria enteada. Branca procurava compartimentalizar a mãe em três mulheres diferentes: a mulher que era hoje, a mãe que amara quando ela era muito pequena, e a mãe que tentara matá-la. Branca sabia que não era culpa da mãe. A rainha fora atormentada pelo próprio pai, estivera de coração partido em vista da perda do marido, e enfeitiçada pelo trio de bruxas. Branca transformara as várias versões da mãe ao longo dos anos em bonecas imaginárias – bonecas que mantinha trancadas num baú neste cômodo. Bonecas com que não queria brincar, tampouco ver.
Bonecas imbuídas de dor e cobertas por poeira.
Branca gostava da mãe que tinha agora. Não tinha motivos para revisitar as outras. Mesmo as lembranças de sua doce mãe do início de sua infância partiam o coração de Branca, porque ela sabia que aqueles dias terríveis após a morte do pai as seguiriam como uma avalanche, lembrando-a de como o luto destruíra aquela rainha.
Sim, ela gostava de se concentrar na mulher a quem amava profundamente e da qual dependia hoje em dia. Mas não conseguia olhar para os pertences da mãe sem levar à luz aquelas bonecas, pegando-as nas mãos e limpando-lhes a poeira enquanto repassava uma linha do tempo de sua vida. Aquelas bonecas, aquelas mães marcadas pela passagem de bons tempos, ainda que aterrorizantes.
Com passos leves e hesitantes, Branca se aproximou de um dos baús de madeira que continham os artefatos da sua infância torturante. Ele rangeu dolorosamente quando ela o abriu, como num aviso. O Livro dos Contos de Fadas, pelo qual procurava, estava debaixo de uma caixinha de madeira com um entalhe de um coração trespassado por uma adaga. Algo naquela caixa fez seu coração estremecer em calafrios. Não queria saber o que havia dentro dele. Não desejava ver o sofrimento no rosto da mãe se ela lhe perguntasse da caixa, portanto, isso teria de permanecer um mistério. Já bastava o fato de estar ali em cima sozinha, sabendo que a mãe a aguardava. Sabendo que cada momento passado ali era uma dor imbuída ao coração da mãe.
Branca subitamente reviveu como se sentia quando era muito pequena. No velho castelo onde crescera, existia um corredor que sempre a assustara. Não havia um motivo específico para justificar seu medo, a não ser o fato de que o corredor estava sempre escuro. A imaginação de Branca criara toda espécie de pesadelos habitando o breu. Mas ela costumava ter que passar por aquele corredor todos os dias para chegar à sala de aula em que se encontrava com sua tutora. Em alguns dias, sentia tanto medo que saía em disparada, mesmo sabendo que sua governanta, Verona, a admoestaria por seu comportamento tão pouco distinto. Branca não se importava. Sentia-se compelida a correr em busca da segurança mesmo nas horas claras do dia. Branca de Neve se sentia assim hoje. Tentou não ver o que mais havia no baú. Tentou subjugar o sofrimento que emergia em seu coração. Apanhou o livro o mais rápido que pôde, tentando não tocar nos demais objetos. Em seguida, fechou a tampa com força, agitando uma cascata de poeira no ar, onde as partículas brilharam na luz que passava pela pequenina janela do sótão. Olhou para aquilo por um instante, maravilhada com o fulgor de algo aparentemente tão mundano. Branca refletiu como algo normalmente feio poderia se tornar algo igualmente belo. E lembrou-se da mãe. Da transformação da mãe. Da beleza da mãe.
E, de pronto, não sentiu mais medo.

Malévola: A Rainha do MalOnde histórias criam vida. Descubra agora