A FADA DAS TREVAS
Corvos negros voavam em círculos, seguindo a Fada das Trevas à medida que ela avançava pela floresta desordenada. A cada passo, as árvores ficavam mais densas. A floresta era um ser vivo, movendo-se e respirando. Suas vinhas se curvavam em si mesmas ao redor de tudo no caminho dela, inconscientemente criando uma escuridão penetrante e profunda conforme se amarravam pelas copas das árvores, obscurecendo o céu. Nas sombras, a Fada das Trevas podia manter as vinhas e árvores sôfregas à distância. Mesmo sem compreender essa faceta de sua magia, Malévola usava-a em seu benefício. Em oposição às histórias ao redor da Fada das Trevas, as trepadeiras não se submetiam por completo aos seus desejos. Ouvira histórias de como ela conseguia controlar a natureza. De como ela podia conduzir florestas terríveis a fim de destruir seus inimigos. Era irônico, considerando-se a realidade. A natureza a amaldiçoara por uma transgressão prévia. A natureza era sua inimiga, e aquela floresta não era nada diferente disso.
Ainda que conseguisse manter a floresta ao largo nas sombras, Malévola não tinha absoluta certeza do que aconteceria se abandonasse o amparo da escuridão fornecida pela abóboda celeste. Perguntava-se se seria capaz de afastar a floresta se andasse sob os raios plenos do sol.
Por enquanto, satisfazia-se com plenitude em ver as folhagens cor de esmeralda definhando e se retraindo diante de si por causa do calor que seu cajado irradiava. As árvores nas colinas adjacentes se juntavam às vinhas. A folhagem se misturava, criando uma espécie de exército contra ela.
Não há nada mais assustador para uma floresta do que a ameaça do fogo.
A Fada das Trevas gargalhou ao lançar um jato de luz verde contra os galhos, que se retraíram ante o calor. Desejou que a floresta lhe desse motivos para que lhe ateasse fogo. No entanto, controlou seu ímpeto de destruição, lembrando-se de seu objetivo e de seu destino.
Malévola se ressentia de ter de viajar sob tais contingências; odiou ter se afastado da Bela Adormecida e do príncipe apaixonado que ameaçava seus planos. Poucos dias antes, a princesa espetara o dedo em uma roca, bem como sua maldição decretara. Malévola ordenara que seus lacaios sequestrassem o Príncipe Felipe e o levassem para seu calabouço, onde permaneceria distante da princesa adormecida. Ela não permitiria que ele interviesse em seu plano magistral. Mesmo assim, a Fada das Trevas necessitava de auxílio. Precisava de bruxas – de bruxas poderosas que a ajudassem a fortalecer a maldição da Bela Adormecida de modo que ela jamais despertasse. Se não podia matar a princesa, Malévola teria que se contentar com o fato de Aurora habitar para sempre a Terra dos Sonhos. Por isso, a Fada das Trevas se aventurou no Reino Morningstar.
Como desejava estar viajando a partir de seu método preferido, através das chamas… Porém, queria que as bruxas do Castelo Morningstar tomassem conhecimento da sua aproximação. Queria lhes dar tempo para lamentar a perda da Bruxa do Mar e das irmãs esquisitas antes de chegar. Malévola sabia que o motivo da sua visita seria obscurecido pelo medo se aparecesse sem avisar. Por isso, demorou-se caminhando lentamente até o Reino Morningstar, seguindo seus amados corvos. O dossel florestal estava tão denso nesse momento que ela não via seus pássaros voando logo acima, mas sua magia era forte o suficiente e lhe permitia enxergar o caminho que jazia adiante, por meio dos olhos deles. Adorava esse aspecto da sua magia mais do que qualquer outro. Fazia com que se sentisse voando com eles, livre do mundo. Mas Malévola não precisava de magia para encontrar seu caminho. Os corações das bruxas a atraíam para elas, brilhando como um farol iluminado entre as ruínas de algumas das maiores feiticeiras de seus tempos.
Malévola enviara Diaval na frente até o Reino Morningstar. Conforme a ave circundava o castelo, ela conseguia ver a extensão da carnificina e da destruição deixada no rastro de Úrsula. Envolvida pelos restos da Bruxa do Mar, a antiga fortaleza quase pulsava de ódio. Malévola não amava Úrsula e não lamentava sua perda. Na verdade, acreditava que muitos reinos em terra e no mar estavam melhores sem tamanha bruxa tola e avara por poder. Úrsula arriscara a vida de todos eles ao criar um feitiço tão perigoso pelo qual as irmãs esquisitas agora sofriam as consequências.
Malévola não previa o futuro, tal qual algumas bruxas e fadas, mas era boa juíza de caráter. Pressentira o volume de poder que Úrsula vinha acumulando, e tivera certeza de que a Bruxa do Mar trairia as irmãs. Apenas desejou que as irmãs esquisitas tivessem dado ouvidos aos seus avisos. Malévola outrora as amara profundamente, embora mais recentemente parecessem parentes distantes que mal suportava e às quais evitava sempre que podia. Esforçou-se para se lembrar de como foram um dia, para se lembrar de como as amara. Mas esse sentimento – amor – era apenas uma lembrança.
Talvez fosse melhor assim. As irmãs esquisitas tornaram-se um incômodo, enlouquecendo um pouco mais a cada ano. Já não sentia mais a presença delas no mundo – nem em seu coração – e subitamente sentiu uma afinidade com as irmãs como há muito não sentia. Tentou se lembrar de como era preocupar-se com elas – ou com qualquer pessoa, a bem da verdade. Mas não conseguiu. E agora as irmãs estavam perdidas para ela; distantes demais para o alcance da sua magia. Isso quase a entristeceu.
Tristeza. O sentimento se esquivara dela por tanto tempo que sua lembrança era como um sonho embaçado. E era ali que estavam as irmãs: em um sonho, perdidas para sempre para o mundo desperto.
Vagando em sonhos. Sozinhas.
Malévola não desejava pensar no que as irmãs sonhavam ou em como o mundo dos sonhos se apresentava para elas. Viver em um cenário fantasioso equivalia a morar nos lugares mais profundos e sombrios da mente. Não conseguia imaginar quais segredos ganhavam vida para as irmãs em sua nova realidade. Estremeceu ao pensar na Terra dos Sonhos sendo invadida pelos pesadelos das irmãs, e imaginou se elas encontrariam a Bela Adormecida em seu próprio cantinho dessa visão onírica.
Que vão para Hades essas irmãs com seus espelhos, suas rimas e sua loucura! Elas tinham que salvar sua preciosa irmãzinha!
Mas a velha rainha no espelho fora quem melhor as definira: “Como muitas de nós, Malévola, aquelas odiosas irmãs foram incapazes de pensar com sensatez quando sua família correu perigo.”
Malévola rira perante a velha rainha, a quem conhecia como Grimhilde. Dentre tantos absurdos, ela se referir a família para Malévola… Mas engolira as palavras como se fossem pedras afiadas, não desejando mencionar a filha da velha rainha, Branca de Neve, que agora vicejava como rainha em seu próprio reino.
O pensamento causou náuseas a Malévola.
Como seria experienciar uma vida tão encantadora? Viver intocada pela discórdia que dilacerara tantos reinos? Mas isso era feito da velha rainha, não? De alguma maneira, a magia dela agora era maior do que durante sua existência. Grimhilde atravessara o véu da morte para manter a filha e a família a salvo. Talvez esse fosse o castigo de Grimhilde por ter tentado matar Branca de Neve quando esta era criança. Grimhilde assumira o lugar do próprio pai no espelho mágico. Seria escrava de Branca de Neve para todo o sempre, assim como o pai de Grimhilde fora dela antes disso. Estava amaldiçoada a ser a protetora de Branca de Neve – sem nunca descansar. Vigiava constantemente Branca de Neve enquanto esta dormia, e para sempre protegeria os filhos e os netos de Branca. Eternamente levando felicidade para aquela pirralha infernal e sua prole.
O amor de Grimhilde pela filha pesou no estômago de Malévola como uma pedra fria, provocando um formigamento que revelava à fada má que ela deveria sentir algo a respeito. Um pressentimento de que isso teria tocado o seu coração. Mas empurrou essa suspeita para junto de outras que habitavam o fundo do seu estômago. Imaginou que todas elas se pareciam com pedaços partidos de uma pedra angular. Imaginou como todas elas poderiam caber ali e como era possível que alguém tão pequeno conseguisse carregar tudo aquilo. Às vezes, sentia que o peso delas a esmagaria; no entanto, isso nunca aconteceu. Supunha que todos carregassem seus fardos ali. Parecia o lugar ideal – perto do coração, mas não tão ameaçadoramente próximo.
As irmãs esquisitas um dia lhe disseram que Grimhilde também mantinha sua dor no estômago. Para a velha rainha, fora como se vidro quebrado estivesse cortando-a por dentro. Malévola perguntou-se o que seria pior: o peso do seu fardo ou a dor de Grimhilde. As irmãs esquisitas teriam lhe dito que ambos seriam capazes de destruir seu hospedeiro. Mas Malévola sentia como se o peso da sua tristeza a mantivesse com os pés no chão, firme. Sem sua dor, ela poderia simplesmente sair flanando.
As irmãs esquisitas decretaram que a rainha pirralha e sua família fossem deixadas em paz, a fim de não enraivecer Grimhilde. Mas Branca de Neve não era completamente intocada pelas irmãs esquisitas, não é mesmo? A velha rainha Grimhilde não podia controlar os sonhos da filha. Isso não lhe cabia. Não era seu domínio.
Os sonhos pertenciam às fadas boas e às três irmãs.
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Malévola: A Rainha do Mal
Historia CortaEra uma vez uma adorável e indefesa donzela que dorme profundamente anos a fio - vítima de uma maldição - antes de ser resgatada pelo belo e corajoso príncipe encantado. Mas essa é apenas a metade da história. E quanto à Fada das Trevas, Malévola? T...