Round 4

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Na porta de casa. Na manhã seguinte. Encarava a conversa crua e medonha com a "coroa". Minha mãe. Mulher de mão calejada. As chineladas dela doíam, e nós, os filhos, tínhamos medos das palmas da dona Marielle. — Somos sete ao todo.

Segurava o caçula no colo, e minha irmãzinha não se desgrudava no outro braço. Vestida com o avental surrado que usava para cozinhar, e a tiara que prendia o afro. — Óbvio que não o suficiente. Ainda caiam alguns fios na comida, mas nunca contamos a ela. O medo de apanhar era grande. Existia um consenso entre nós irmãos que os fios eram o toque de amor da coroa.

— Morar numa academia em Botafogo... — Mamãe repetiu a ideia em voz alta.

— Não vou largar do trabalho, mãe. É só enquanto essa maluquice das lutasx continuar. — A voz embargava em medo. — Além do maisx, vou continuar no China. Trarei dinheiro para casa!

Ela bufou descontente. — Eu já te disse essas duas coisas, e volto a repetir Matheus. Não dá para ser bom em duas coisas na vida, ou você dá tudo de si, ou vai ser medíocre. E nós pretos não temos o direito de sermos medíocres. — Olhou minha mochila, e me deu um beijo delicado na testa. — A outra é que minhas obrigações não são tuas. Mas você é cabeça dura como o pai! — Brigou. — Pelo que vejo está decidido. Não me volte sem resolver o que começou.

Dei um sorriso. — Mas quem começou tudo foi o Baiano. — Beijei meus irmãos. E fechei o portão antes de partir. Encontrei o Baiano no meio do caminho. Estava de malas prontas para morar comigo na academia. Fomos para o ponto. Os ônibus para Botafogo passavam a todo o momento, mas havia trânsito após o meio-dia.

***

Baratas. Muitas baratas. Baratas procriando. Baratas dançando. Baratas jogando basquete. Baratas que faziam de tudo no ambiente úmido e escuro. — Há quanto tempo à academia não recebia a visita do sol? — Não era para menos. Parecia ser tão antiga quanto à fundação do Rio de Janeiro.

O Zeca entrou primeiro. Afugentou as baratas. Elas de início até relutaram — Juro. Quase um motim. — Mas aceitaram. Os pisões do bêbado podiam causar o apocalipse das baratas. Baiano, que era amigo de tudo quanto era coisa ficou um pouco ressentido com o afugento.

— Pô cero — Parceiro em baianês. Ele estava chateado. — Precisava dar um chá de se pique nas bichinhas?

— Começa não, baiano. — Alertei. Entrei no emaranhado de tralha.

O Zeca puxava o ar até o diafragma. Como se recordasse de brilhantismo morto. Apenas o louco faria isso. Era muito pó. Os equipamentos de treino estavam sujos, e ultrapassados. As janelas cobertas com alumínio. Inclusive achei uma plaqueta da prefeitura.

— Isso aqui foi fechado, Zeca.

— Conversei com um amigo meu na prefeitura. — Soluçou. — Ele deixou a gente usar, isso faz uns dez anos já. — Outra vez. — A prefeitura está mais ocupada com as academias que têm magos.

Zeca pegou algumas vassouras jogadas no canto. As jogou em nossas mãos. Sabão vencido. Desinfetante fora da validade. Tudo que precisávamos para deixar o ambiente no brilho.

Abrimos a janela e começamos a faxina.

Baiano colocou forró na caixinha de som que trouxe na mochila.

Aos poucos o lugar começou a tomar forma e tonalidade. A poeira — que saía pelas janelas como fumaça de churrasco — começava a diminuir. O piso parava de exalar o cheiro de barata.

Zeca foi à rua. Voltou com remédios para insetos. Colocou nas tocas matou as baratas. Por fim, levava os corpos para fora da academia. O inseticida era forte. Creio que viveram o apocalipse. O som do borrifador era a trombeta dos anjos.

Baiano chorou no meu ombro, triste pelos insetos.

Após o belo trato na academia. Chegou o momento de colocar os equipamentos nos devidos lugares. Era nostálgico. Tocar neles me recordava à puberdade. Meu tempo de lutar e sonhar com o boxe. Terminei de limpar o saco de areia. Fiz questão de dar um soco nele. Tão limpo e sucinto que soou como uma pancada abafada e seca.

Zeca aplaudiu na hora, mas pouco entendi a felicidade.

— Teu soco está forte, como vi na noite. — Ele sorriu. Em seguida soluçou — Mas você não luta há um tempo, não é?

— Uns anosx. — Afirmei.

— Consigo sentir pela falta de velocidade. Não está polido o suficiente. Para conseguirmos alguma chance contra os magos-boxeadores precisamos que você seja mais rápido do que as magias deles. — Foi a maior frase que ele disse com clareza. Mas soluçou no final.

— Temosx tempo para isso. Um mês até a próxima luta.

— Concordo, mas antes da gente treinar, eu preciso saber onde estão teus pontos fortes. — Soluçou. — E as limitações. Por isso arrumei um sparing para você.

A porta da academia correu. A visita comunicada por Zeca acabou de chegar. Poxa vida. Estou convicto que minha boca ficou aberta por muito tempo. O baiano me auxiliou a fechá-la para a baba não correr pelo piso.

Era ela. A garota do cabelo arco-íris! Como um bêbado como o Zeca — que estava bêbado no momento — conhecia alguém tão encantadora? Tinha o corpo atlético, e olhar penetrante.

Como duas faces do imã. Norte e sul. Veio em minha direção, e sem dúvidas, correspondi. Nós dávamos passos leves e lentos. Podia contemplar na cara dela certa felicidade.

Era hoje! O garoto da favela conquistaria a garota da Zona Sul! Fechei os olhos, e estendi o bico da boca. Pronto para beijá-la. De resposta, recebi um soco bem-dado no nariz. Parei na outra ponta da academia.

— Esse é o campeão, Zeca? — A voz dela era grossa — Ele é lento!

— Eu te falei, temos que trabalhar ele.

— Não vou treinar com um garoto lento, ele vai atrapalhar meu treino para o campeonato.

— Só o temos por enquanto Yasmin. — Soluçou. — Além do mais, você não tem muitas escolhas.

Ela me olhou irritada, e bufou descontente. Foi em direção ao vestiário.

O baiano chegou do meu lado, e se agachou sorridente.

— Meu negão tu é do barril! — baiano estava feliz. Minhas costas doíam. — Ela logo arrastou asa!

Não preciso explicar... Eu odeio o baiano.

O Nocaute do X-TudoOnde histórias criam vida. Descubra agora