Round 37

41 8 0
                                    

O campeonato havia acabado. Era difícil de crer. A medalha dourada no peito fazia-se pesada perante a realidade. Mesmo com a convocação, e notícias de Diogo, precisava viver o momento. Fazia tempos que não entrava num torneio, e tão pouco imaginei vencê-lo. — Era capaz até de agradecer o baiano. Ou não, o desgraçado havia me posto nesse estresse.

Por não saber andar na Barra da Tijuca fiquei um bom tempo perdido. Os pontos de ônibus eram distantes, vazios, sem a presença de uma única alma penada. Admito que pela minha vitória, fiquei bobo, e caminhei um longo trecho sem mesmo tomar ciência da exaustão do meu corpo. — além que, com sono, adormeci num dos pontos.

Eram sete da manhã do novo dia. O trânsito do Rio fazia-se presente. Os enxames de pessoas iam para os respectivos afazeres. Formigas que se amontavam fora dos formigueiros na intensão de caçar a comida durante o verão. — Pois para o trabalhador, o inverno era sempre algo perigoso.

Um toque. Outro. Algo vibrava em meu bolso, despertou o corpo da inércia e cansaço. A bateria não chegava aos três por cento. O celular logo iria desligar. Estranho, o número que me telefonava era desconhecido. — Talvez cobrança. Pobre está sempre a dever.

— Olha — bocejei largamente — Se for da conta do meu celular, eu vou pagar. Só tive um transtorno e-

— Ninõ!

El Jubilado?

— Ninõ! O Zeca. Não achamos o treinador desde o dia que você foi para o hospital! Todo mundo procurou, mas não sabe onde ele está.

O Zeca havia sumido? Minha boca — antes cheia de baba, que escorria na lateral dos lábios — estava seca. Rio de Janeiro não era uma boa cidade para se receber uma notícia como esta. Raciocinei sobre o fato, e até perdi o ônibus que me levaria para a zona sul.

Onde ele poderia estar? Como esse bêbado sumiu tanto tempo?

— Jubilado, ele não disse nada?

— Ninõ, a última pessoa que ele falou, foi com você.

Logo, mesmo sem resposta, era talvez o único capaz de encontra-lo. Até que um ônibus que apareceu no horizonte me surgiu de dica. Ele transitaria pela linha amarela, e chegaria onde o fim poderia ser o inicio. — ou vice-versa, estava preocupado demais para ser tão poeta.

Entrei no ônibus, e pedi carona ao motorista, que me deixou ficar sentado na parte da frente. O trânsito afunilava a tensão do clima, e intensificava a ansiedade. Só que não havia problema. Se o Zeca não estava em Botafogo, só poderia estar num lugar.

Após mais de uma hora de trajeto acabei no meu lar. Digo não meu lar durante a jornada do campeonato, mas onde nasci e fui criado. Complexo da Maré. Lá revivi o clima da favela que nunca amargou dentro do peito. As crianças que brincavam com as bolas murchas no campo de areia, e fugiam das poças de água.

O tráfico que tinha o trabalho mais empenhado que qualquer soldado do exército. O forró que soava nos carros com caixa de som alto, enquanto o comercio amanhecia e servia os moradores. Entrei na Vila do João, voltei ao bar onde fiz a primeira luta. Ali encontrei Zeca.

Meu treinador estava acobertado por garrafas de cerveja, pinga, vodca e cachaça. O homem bebeu por dias consecutivos no bar. Tão nojenta era a aparência que a mesa em que sentava era isolada das demais.

— Parente? — O dono do bar chegou próximo. Viu a paralisia que açoitava meu corpo.

— Meu... treinador.

— Então deve ser você a quem ele tanto chora. — O homem limpava os copos de cerveja com o pano encardido — Contou a história que falhou outra vez com um menino de ouro.

— Ele... — Meus olhos encheram de lágrimas. — Ele está aqui há quanto tempo?

— Nem sei mais. Só acorda para beber, e às vezes come alguma coisa. Deveria comunicar algum parente dele. Para leva-lo para casa.

Fui para perto da mesa, e dei toques no ombro dele. Com dificuldades, Zeca abriu os olhos, e assim que conseguiu me enxergar — quase que como uma miragem, ou sonho, pesadelo ou salvação. — Chorou. Tanto que as lágrimas sujavam minha camisa. Ele pedia desculpas, como se fosse julgado num purgatório.

O levantei. Apoiado em meu ombro comecei a caminhar com ele no sol de rachar às dez da manhã. Sabia onde era a casa dele, não tão longe dali. — próxima a minha para ser sincero. — Quando chegamos nela o ajudei a tirar a camisa.

— Vai se banhar, Zeca.

Com culpa no rosto amargurado e bêbado, ele foi. O lugar onde residia era um quartinho bem arrumado. Onde os demais cômodos eram cubículos. — A cozinha, sala, e quarto, por exemplo, eram separados por uma linha imaginária. E alguns móveis. — Ela estava bem jeitosa, mas parecia não receber o dono jazia tempo.

Enquanto aguardava o banho dele, olhei a geladeira e a dispensa. Separei ovos, pó de café, leite e água. Numa esquentada rápida de frigideira e chaleiro preparei ovos mexidos e café com leite, para amenizar a ressaca. Além de um copo com água cheio até a borda para limpar o organismo.

Zeca, ainda zonzo, trocou-se de roupa dentro do banheiro. Quando saiu, ficou sentado no sofá. Admirou a ceia posta.

— Come, e bebe. Precisa melhorar desta ressaca. Nós vamos sair assim que terminar o café. — O avisei.

— Matheus, olha... Me desculpa por-

— Eu que tenho de me desculpar. Você foi meu treinador esse tempo inteiro e prezou meu bem todas às vezes. Fui incapaz de perceber o quão nocivo o álcool estava sendo em sua vida, e normalizei isso.

Zeca segurou o choro.

— Garoto.

— Se adianta. Nós vamos sair logo.

Zeca comeu e bebeu. Não de modo apressado — mesmo que eu tivesse feito uma pressão. — Quem passou por momentos assim sabe como o corpo estava destruído. Mas ele lutava contra a própria doença para atender os pedidos.

Nós caminhamos por um longo tempo na favela. Passamos por ruas largas, e outras estreitas. Por alguns pontos que conectavam dois pontos de um valão. Ou por áreas de lixo a céu aberto. Também desviamos do transito de carros e motos.

Ali estávamos de frente ao letreiro azul.

Segurei a mão grossa de Zeca, e tomei o primeiro passo para entrar no recinto. Lá dentro, um homem de óculos mexia num computador, e assim que nos viu fez questão de erguer-se para nos cumprimentar.

— Bem-vindos aos alcoólicos anônimos. Ao que devo a honra? — De cabelo lambido e sorriso cortes, nos cedia uma boa vinda solicita.

Olhei para o Zeca — Você foi capaz de lutar por mim. Por Yasmin, Jubilado, Pinóquio. Está na hora de lutar por você.

— Por que, garoto? Por que está fazendo tudo isso?

— Por que você é o pai que não tive. Está na hora de alguém te motivar.

Zeca, sem forças emocionais, ou físicas, quase me abraçou outra vez. Mas impedi. Era chamego demais para um único dia. Ele teve de limpar as lágrimas e catarro com os pulsos.

— Assim que você melhorar, e estiver se salvando, nós vamos conquistar nossa carreira profissional!

O Zeca assentiu com a cabeça, enquanto se preparava para inscrever-se nas próximas sessões do AA. — Obrigado, garoto. — Ele se afastou de mim, indo junto ao solicito homem feliz para uma sala interna.

Era o meu momento de partir. Agora que estava na favela, podia finalmente rever a família. 

O Nocaute do X-TudoOnde histórias criam vida. Descubra agora