Round 32

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Havia chego o dia. Sem treinos exagerados ou sparrings que pudessem comprometer minha saúde. A noite de sexta era reservada ao duelo no ringue contra Henrique. Mesmo que nunca soubesse para onde seria teletransportado. Tenho de admitir a vocês que sempre fiquei ansioso antes das lutas, mas como a arte de se conhecer é compreender as necessidades, aqui estou. — Na verdade a "arte" não provém disto, mas podemos fingir que ele está certo. Em partes. Para não magoá-lo.

Milk-shake! Não havia erros sobre esta magnífica obra de arte criada pelo homem e o leite. Ela era capaz de amenizar o problema de qualquer mente perturbada, ou pelo menos ocorria com a minha. Os dias de verão em Botafogo traziam a sensação do deserto. Sabe? Quando você olha para o limiar do horizonte e tudo parece turvo por conta do calor. Como se estivesse a ponto de desmaiar por desidratação e surgisse uma miragem para te salvar. — Ou no caso te enganar.

Eram apenas nove horas da manhã, e a cidade tinha a capacidade de alcançar trinta e nove graus no termômetro. — O Rio fazia você sentir que ia morrer pelo suor da manhã. — Assim que entrei no estabelecimento a cortina de vento açoitou os dreads do meu cabelo. O vento gelado me trazia a sensação de frescor que poderia dormir em pé sem pestanejar.

— Vai ficar quanto tempo ai, bobão?

Uma voz feminina me insultou. Digo, não consigo levar bobão como insulto, mas talvez para a pessoa fosse algo sério a considerar. Quando sai debaixo da cortina de vento catei com os olhos, até encontra-la no canto. O timbre me era familiar, mas olhá-la sentada lá, com o cabelo colorido e milk-shake de morango, me fazia sorrir encantado.

Fui até o caixa, e lá comprei um milk-shake de Ovomaltine. E me sentei ao lado de Yasmin ali no canto. O banco dava visão para uma janela ampla que mostrava a correria desenfreada do exterior. Enquanto bebíamos nossos doces, ônibus despejavam gente, como caçambas de caminhões que jogavam baratas aos lixões. Assustadas. As criaturas corriam zonzas. Buscavam o escuro dos prédios, nas áreas de serviço, para caçar o que comer. Olhadas pelos humanos de tamanho semelhante, só recebiam desprezo, nojo e pisadas mortais.

— Pensa em que? — Ela deitou a cabeça sob os braços apoiados na mesa. Olhou-me com um sorriso encantado, como se admirasse em cada detalhe.

— Que a rotina de um favelado é angustiante. — A mirei, mas sorri ao invés de continuar uma entonação séria.

Yasmin tomou um gole do milk-shake e olhou para as cenas em que eu tanto refletia. Dava para sentir na respiração pesada do pomo e a perdição do fitar que tentava se imaginar na pele de qualquer outra pessoa que descia em algum dos ônibus. Os suspiros de tristeza, talvez fossem por compreender que não era tão fácil assim trocar de lugar.

— Você estaria ali, se não fosse o campeonato?

— Sim. Eu deixo a moto no Na Chapa. É mais seguro do que ir para casa com ela.

— Deve ser complicado estas coisas.

Assim que me encarou neguei com a cabeça. Balancei os dreads como pedaços de barbante. Ela sempre parecia estar apaixonada por meus movimentos.

— Não é complicado. Pobre se ajuda, se respeita, apoia as costas um no outro quando o ônibus está lotado e se levanta pros mais velhos. — Olhei para fora. Avistei um menino que tentava vender balas. Ele tomava um guaraná como o café matinal. Tropeçou e deixou o líquido e as balas despejarem nos sapatos de um homem. A criança não tinha a grossura do braço do rapaz. Não pelo excesso de músculos, mas pela falta. O homem, irritadiço, chutou as balas do garoto para distante e o xingou de coisas que o vidro abafado me impediu de ouvir, mas a sonoridade dos lábios me fez entender que a vida da criança não valia o sapato sujo. — Isso. — Ela olhava a cena junto comigo. — Isso é complicado.

— Inclusive — Mudei de assunto. Gente de boas condições sempre possui bons discursos, mas nunca sabe o que falar quando vê a realidade na frente. — Sumiu da academia, o que aconteceu?

Ela coçou o cabelo e riu de mal jeito. Como se contasse uma piada. Sempre que me encarava via o olhar confuso, que só queria compreender o ocorrido. Ao notar que não seria capaz de escapar do assunto, aliviou o pomo de Eva, e tomou coragem para me responder.

— Eu não vou mais treinar com o Zeca. — Foi incisiva.

— Ele te tratou mal? — Mal fui capaz de conceber a ideia de algo assim.

— Não! — Ela riu. Descontraiu minha feição assustada — O Zeca é maravilhoso, mas ele tem o foco dele. — Me olhou, como se eu fosse à resposta. Acabou por corar meu rosto. — Você é o foco dele. Eu estive lá, e fui bem treinada, mas não é a mim que ele escolheu como parceira de carreira.

Fiquei um pouco envergonhado de ouvir sobre o Zeca e nossa relação. Principalmente por não estar muito bem com ele. — E vai para onde? — Confesso. Quando perguntei, fiquei triste. Não era como se esperasse em algum momento me afastar da mina que gosto.

— Vou embora do Brasil.

Se antes, as coisas me batiam como uma pancada sorrateira de panela na nuca. Agora, o choque superior travou meus lábios abertos. Por sorte não havia moscas próximas. A notícia partiu de algo desgostoso a um trauma.

— Vai... embora?

Ela balançou a cabeça, afirmativa. — Rita me falou do projeto dela de vida. Ela quer criar uma academia de magos-boxeadores, apenas para mulheres. Fazer desse centro, um ambiente de oportunidade para o cenário feminino no mundo de lutas mistas.

— Isso é... Incrível!

— É sim!

Nós rimos, mas como se fosse algo cortês. Que parou alguns segundos após. Mal nos olhávamos. Ela parecia ter vergonha de falar a verdade, e eu, medo de deixa-la partir. Dei tapas fortes no meu rosto. A ação chamou atenção dos clientes — e até funcionários.

— Fico muito feliz por você tomar essa atitude! — Esbocei o melhor sorriso — Sempre lutou por esse espaço e agora é a ponta de outra lança. Desta vez, abre caminho para outras garotas que querem a mesma oportunidade!

Ela corou de emoção, e com os olhos abeira do cair de lágrimas, me abraçou forte. Limpava o rosto em minha camisa verde. Podia ouvir leves murmúrios de lamento, porém tentava se controlar. Ao fim, aceitei o afeto e envolvendo-a nos meus braços. Passei a mão sobre a nuca delicada e macia como a penugem de um pato. E beijei a testa como se demonstra carinho a uma criança.

Eu tinha medo das minhas próprias palavras. Na verdade queria dizer que era uma ideia absurda, maluca. Que ela tinha que ficar comigo porque gostava dela. E que o lugar dela era ali, onde treinávamos juntos.

Mas eu a amava.

E amar é deixar ir, para ser tão livre quanto você. Por sorte, ao teu lado. Por azar, por conta própria. Mas amor é isso.

— Hoje é a luta contra o Henrique, não é? À noite? — Ergueu o queixo, ainda lacrimejante.

— É sim. Desculpe-me, mas eu vou surrar seu irmão. — Ri descontraído. Mas me cagava de medo contra ele.

Ela balançou a cabeça. Riu da fala.

— Ele é muito soberbo. Merece uma surra.

— Vai ser difícil ganhar outras lutas, sem a tua calcinha de cacto para me dar sorte.

Chorosa, eirritadiça, me esbofeteou no braço. Repreendeu minha fala. Infelizmente nãoconseguia ser tão sério para tais momentos, mesmo que necessário. Eu precisavade Yasmin, mas teria que aprender a ser forte sem ela.

O Nocaute do X-TudoOnde histórias criam vida. Descubra agora