Round 39

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Nossos sapatos soerguiam do asfalto quente uma poeira rala. Que se elevava pelo tecido e sumia antes de chegar em nossas canelas. Distinto do velho oeste, o público não se escondia das balas, e os desafiantes não usavam de armas.

— Quantos rounds?

— Você planejou um limite? — Diogo debochou.

Sorri atrás das luvas. Esperava a resposta. Nós andávamos e analisávamos os movimentos um do outro. Toda energia gasta era calculada. A pressão do Diogo era pior em luta do que no treino. Ele mexia os braços, disfarçando golpes, mas meus reflexos me forçavam a desviar. — admito, estava com medo, no mesmo balanço que excitado.

Diogo levou o punho para tocar no meu nariz, leve, como os movimentos de um bebê. Tão distinto das minhas expectativas, que não tive reação para desviar. Foi ali que errei. Ele desferiu um direto na minha cara. Senti o corte na bochecha — feito por Henrique — ficar mais machucado, a ardência manteve meus sentidos acordados, mas foi torturante.

Ele mediu a distância entre nós e veio de guarda aberta? Isso foi insano. Dei alguns passos para trás, e ouvi murmúrios da plateia. Eu estava feliz. Por quê? Por que, mesmo levando um soco tão bruto não conseguia deixar de sorrir?

Desta vez, um cruzado de esquerda. Agachei, flexionando ao máximo meus joelhos. Lembrei-me, no instante, das lutas que via barzinho onde o Zeca ficou bêbado, pois o dono era vidrado em boxe. Dos movimentos plásticos que me faziam brilhar os olhos, e agora, estava executando.

Assim que esquivei, soltei um swing de esquerda. Isso havia o afastado de mim, mas foi pouco. Não iria derrubar o búfalo com um mero soco de reação. Nossas guardas eram exemplares. Sem peso em nossos braços. Mas adiantava?

Trocamos socos. Ele pegou um jab, enquanto recebeu o contragolpe de um gancho. Sangue voou de sua boca. — Da minha nem se fala. — A temperatura acima dos trinta graus parecia não importar, mas pingávamos de suor. Diogo executou outra série de socos. Jab e direto em sequência, tentando me pegar dentre as esquivas. Por fim, finalizou com num cruzado de direita.

Alguns dos meus golpes não encaixavam. Eram impedidos de machuca-los pelos braços dele. Outros o atingiam cheio.

Como um combate de treino contra o El Jubilado, nosso round jazia mais de quinze minutos. Sabia disto pelas fofocas ditas atrás de mim. Despreparado, levei ganhos na boca do estômago, tentei sair do ataque, mas não havia fuga. Num último ataque, virou outro cruzado na minha têmpora — pronto. Mal havia me recuperado dos socos no lado esquerdo, tinha de me preocupar com o oposto.

Quando tentei reagir ele trocou a base. Evitando os contra-ataques e permitindo chegar próximo ao meu rosto. — ele era ambidestro? Acreditei que não. Só que essa crença me levou a conclusão de que Diogo era a pura mistura de talento e técnica.

Outro combo de cruzados atingiu meu rosto. Sem forças para me manter de pé, fui levado ao asfalto quente. A queda raspou o braço. Assim que sentei, vi os pequenos machucados nos ombros — como marcas de um gato. — Não havia contador no embate. Perderia quem fosse levado a nocaute.

Diogo provocou, usando da mão para me chamar para levantar outra vez. Minhas pernas tremiam, mas as dele também. O dano que causou em mim foi o tanto que havia cometido a ele. Não tínhamos nos recuperado das lutas anteriores, mas não fazia mal.

Estamos felizes.

Cheguei próximo a sua guarda e dei uma finta. Assim que ele arqueou a coluna vi a oportunidade, e desferi um poderoso gancho no queixo. O baque bruto o fez me agarrar para manter-se de pé. A plateia vaiou a atitude — eles só queriam ver a gente se socando até o fim do dia.

Quando consegui me soltar do abraço dele levei dois jabs consecutivos no nariz. Fiquei desnorteado e lutava contra meu cansaço para não cair. Todo o clima me recordou do passado. Já havíamos no enfrentado? Parecia que sim.

Me lembrei da travessa em que ficava com meus amigos. Onde formávamos rodinhas para lutar uns contra os outros. As brigas eram sérias — mesmo para crianças — mas o final era impagável. O sorriso que via em Diogo — identifico ao meu — era o que fazia-nos, no fim da tarde, continuarmos amigos.

— Meu pai havia me dito uma vez, que o boxe era dança. E que como as danças mais lindas, só tem boas performances por casais que nunca se separam. — Diogo tentou me dar um direto de esquerda, mas consegui me afastar há tempo. — Quando encontrar alguém com que queira dançar, agarre a oportunidade, e extraia todo suor e sangue. Será o dia mais feliz da sua vida. Ele me disse.

Consegui encaixar um cruzado na barriga. A brancura da pele começou a ficar roxeada. Assim como o negro da minha. — Obrigado, por dançar comigo, vira-lata. — Diogo concluiu, me acertando outro cruzado na bochecha.

Fui ao chão. Sentindo o quente da pista, como se a pele começasse a descolar por conta da temperatura. Minhas costas grudavam no asfalto, unindo ao preto das pedras como se fosse uma areia movediça pintada de piche. Era impossível de me erguer.

A população ao meu redor contava meu tempo.

Um.

Dois.

Eu estava em paz. Era o suficiente ter chego até o momento. Meus olhos estavam pesados demais para continuar. Só queria dormir.

Três.

Diogo... Quanto tempo esperei por alguém que amasse o boxe como eu. E enfrenta-lo me fazia sentir vivo.

Quatro.

Cindo.

Seis.

Sete.

Oito.

— É agora que você tem uma brecha, garoto! — Um berro me despertou. O lobo, que havia fugido da alcateia para sobreviver sozinho no inverno aprendeu a sobreviver sem a motivação ou complicação dos outros. Mas o Vira-lata, jogado ao lixo, banhado pelo próprio sangue e apoiado nos machucados, encontrou outros vira-latas.

Quando abri os olhos, percebi que era Zeca, me impulsionando uma última vez. Para dar cabo a minha peleja mais desejada. Não sei como, mas arranquei forças, para estar de pé e trocar mais alguns socos.

Meu corpo caiu para trás. Mas, como as cordas de um ringue, Zeca me impediu de sair da arena. —Houve uma corrida de cães, no bairro da Gávea, que eu acabei não vendo o vencedor, e sempre fiquei com isso na cabeça. — O treinador falava ao pé do meu ouvido. — Na disputa entre a primeira e segunda colocação estava um vira-lata, azarado, que ninguém apostava, a não ser eu. O nome dele era Memento Mori. Na outra ponta, um cão de raça que vencia a maioria das partidas, chamado Carpe diem. — Nos olhamos. — Me diga quem venceu essa corrida.

Sorri para ele. — Que conversa mais imbecil para um último round.

Soltei-me das "cordas", e fui para cima. Sem guarda, nos socamos com violência. Até o último ficar de pé. 

O Nocaute do X-TudoOnde histórias criam vida. Descubra agora