Tomei alta no dia seguinte. Admito que após receber soro durante uma noite, havia dormido bem pela exaustão. Mas acordei alguns momentos para urinar durante cinco minutos cada. Antes de sair aproveitei para tomar um café da manhã. — Nem todos eram coniventes, mas considerava a comida do hospital maravilhosa. — Eu tinha que voltar a academia. A luta seria daqui a uns dias.
O sol da manhã possuía uma coloração menos vívida do que no meio-dia. Mesmo com bilhões de anos, mal possuía calor. Como um bebê aprendendo as funções motoras. Em harmonia ao vento quebrado que sobrevivia aos prédios do centro conseguia dar um frescor ao rosto e ardência ao trapézio. Encarei meu reflexo do outro lado da rua num prédio espelhado. Era o momento de voltar à academia.
Mas e a situação com Zeca? Durante a caminhada questionei. Não seria fácil fingir que a conversa de ontem foi um simples delírio. — Na verdade, queria que fosse. — No subterrâneo o balanço do metro me permitia refletir. O som arisco que se fazia alto, mas não perturbador, da velocidade, entrava em sintonia aos meus questionamentos. Enquanto esbarrar nas pessoas que ali presentes se encaminhavam para a rotina de um carioca, me trazia ao momento. Sem me afogar nos pensamentos.
Esperava não vê-lo. Mas por vergonha. Se o visse pediria desculpa na mesma hora. Quase deixei a estação de Botafogo escapar. — Não faça isso. O caminho de retorno é um tédio. — Vira e mexe neste horário da manhã eu possuía uma rotina programada.
Vestir o macacão.
Pegar a moto.
Trabalhar.
Era a primeira vez que sentia a essência de Botafogo na manhã. Aos não moradores do Rio, não se iludam. O bairro contém praia, mas o clima é de um centro urbano abafado. Botafogo parecia ser o limiar do pobre. Você podia dizer que morador de favela estava no centro para resolver algo, sem que fosse trabalhar. Agora em Botafogo? Para onde se iria? Era como se o pobre tivesse de ter um alvará para caminhar sem que fosse à intenção de trabalho.
O lugar sofria enchentes durante dias de chuva. O trânsito era insuportável, pois as vias são estreitas. Ou seja, um bairro que não deveria existir. Mesmo assim, era meu sonho morar aqui. Enquanto atravessava as ruas, me distanciava do metrô e aproximava da academia. Alguns porteiros de condomínio, ou faxineiros me cumprimentavam. Já havia feito entregas nos prédios deles. Cômico e trágico saber duas coisas. A primeira é que sempre via nordestinos executarem estas funções. A segunda é que eles só iam embora seis horas. Praticamente moravam nos trabalhos. – Não tinha o que falar. No meu caso morava na moto.
Ali estava escondido no terceiro andar de um prédio escondido.
Quando terminei de subir as escadas, fiquei fronte a porta de correr. A plaquinha acima "Academia do Zeca" me tirou um pequeno sorriso, mas me recordou das grosserias. Não fui certo, mas ele também não foi.
Abri a porta. A primeira vez que havia visto o treino feito na parte da manhã. A nossa sala era privilegiada, pois, o sol entrava pela janela deixando belos os objetos inanimados. A surpresa alçou meu rosto quando vi apenas Pinóquio e o Jubilado fazendo uma série de exercícios. — O horário não batia as nove, porém ambos ensopados de suor.
— Ahí está! — Jubilado despejou um sorriso animado. — Pensamos que ficaria mais tempo. Como foi a recuperação?
— Apenas um momento de descanso. — Apertamos as mãos. Mas uma peça faltava no lugar, e eu não a encontrava mesmo olhando para todos os lados de forma minuciosa.
— Él saiu. Para beber. — Jubilado sanou minhas dúvidas. — Havíamos conversado ontem. Disse que você poderia não se concentrar na ajuda dele ou até no treino se estivesse presente. Logo partiu cedo.
— Mas, não vou atrapalhar o treino de vocês?
Eles se olharam, e como ensaiado, sorriram um ao outro. Como se eu tivesse contado uma piada sem compreender o ponto da comédia.
— No vamos competir mais no boxe. — Jubilado caminhou até o ringue, onde pegou minhas luvas penduradas no corner desde o acidente. Quando chegou perto de mim, começou a pôr. — Me he dado cuenta que amo o boxe. Mas estava usando-o para fugir da luta que precisava treinar de verdade. Este inclusive é meu último dia aqui na academia.
Fiquei pasmo. Confesso que as mãos tremeram. Era descrente imaginar um lutador do nível dele parar de usar o ringue, e até desistir de competir. Olhei para Pinóquio. Tentei buscar nele um rosto tão perplexo quanto o meu. Mas ele sorria de lábios fechados abaixo do nariz fino. Ambos sabiam do final da história, e eu, havia ficado sem ar com a reviravolta.
— Por que tomou essa decisão!? Você pode muito bem ganhar o campeonato dos veteranos!
— Boxeo não é apenas competição, ninõ. É sobre quando dá o soco certo, e aproveitar a oportunidade cedida pelo teu esforço. — Ele pegou luvas, que serviam para aparar os socos. — Mi lucha não é mais no ringue. Agora é como ser pai.
Bem, eu não esperava pela frase. Recordei da situação desagradável que teve com Diablito dias atrás, e logo a reconciliação. Ambos deviam estar precisando um do outro. — não fugir da luta... Era isso que ele queria dizer? O ringue que ele estava evitando subir, era à paternidade?
O rosto dele era de um homem que não recuaria nas palavras, e estava contente com a decisão. Parecia interessante a ideia de lutar para ser um pai melhor.
— E você Pinóquio? Concorda com isso?
— B-be-bem! — Ele começou a coçar o cabelo, e o rosto corou como se pego o sol do meio-dia. — É-é-é que e-eu não te-te-tenho de concor-concordar com nada. — De fato. Pinóquio tinha razão. — Inclu-inclusive é meu ú-ú-último dia aqui também.
Pronto, mal me acostumei à ideia da saída de um. O outro veio para piorar a situação.
— Você também, Pinóquio? Mas nem filho tu têm.
— V-vou me dedi-dedi-dedicar a dança! — Ele me despejou um sorriso aliviado. — Desde aque-aquele dia, e o-o-o encontro no Na-na-na Chapa, pensei bastante so-so-sobre isso. — Abaixou a cabeça, levando os olhos a percorrerem o passado. — Boxe era o so-so-sonho do meu pai. Por isso fi-fi-fiz. Mas o meu é-é-é-é ser dança-dança-dançarino! Inclusive a-a-a Darlene me apoiou!
Ele tapou a boca, como se tivesse falado por demais.
— Você e a Darlene estão saindo? — Ele assentiu com a cabeça. — Desde quando seu safado!? — O prendi em meu braço para dar socos na nuca desprotegida.
Após algumas leves risadas, comecei a compreender e aceitar os fatos. Todos ali tinham uma luta para terminar. Um ringue de verdade para subir. Algo que deviam fazer de fato, sem fugir. Era admirável, mesmo que triste, deixa-los partir.
— Gracias, ninõ — Jubilado me viu comovido, e emotivo por saber que os dois partiriam. — Fue usted que nos deu a margem disto. Se não tivesse atravessado nossas vidas, e mostrado-nos pelo que deveríamos lutar de verdade, talvez não tivéssemos coragem de encarar nossos medos. Teus socos libertam qualquer um.
Socos que libertam...
— Pre-pre-preparado? — Pinóquio se prontificou no ringue. Preparado para um sparring.
Jubilado e o filho. Pinóquio e a dança. Baiano e os estudos.
Estava na hora de eu me preparar para minha luta.
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O Nocaute do X-Tudo
Fantasy🏆VENCEDOR DO THE WATTYS 2021 NAS CATEGORIAS CORINGA E ENREDO MAIS CATIVANTE🏆 A magia transformou o mundo do boxe. Pugilistas normais saíram de cena com o novo espetáculo das lutas envoltas de magia e reviravoltas marcantes. Mas o que ocorreu com o...