Azul turquesa

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Sentia-me a flutuar, por míseros segundos, até que fiquei de pé, abri os olhos lentamente e olhei para os lados, para as portas que formavam um círculo ao meu redor, e além e debaixo delas, onde a grama era azul escuro e as folhas azul turquesa, que estavam presas a galhos completamente negros que pareciam sugar toda a luz do lugar para si, a paisagem era completamente linda, mas não me parecia desconhecida, ao contrário das portas, que me despertavam imensa curiosidade, ou melhor, algumas delas.

Não consigo olhar para o chão, ou não quero, é como se algo estivesse a me prender e não me largasse, mas sei que estou descalço, sinto a grama molhada abaixo de meus dedos, e, sem meu comando meus pés se movem, como se já soubessem o que deveriam fazer.

Me vejo parado de frente para uma das portas, a mão na maçaneta fria, a testa encostada na madeira, a respiração forte, entrecortada. Em dias normais eu a abriria sem pensar duas vezes, mas aquele ano era diferente e eu não estava muito confiante em o fazer. Giro a mão o mais rápido que posso, como se a qualquer minuto fosse perder a coragem, mas com um misto de necessidade, abro a porta ficando surpreso com o quê me espera, emoções, desespero e saudade me tomam, e acabo sorrindo, enquanto lágrimas escorrem devagar por meu rosto. Uma lembrança de minha infância, como estou aqui ou porque, não sei, mas tenho certeza que essa imagem é de mim.

Um jovem loiro, cabelo cortado estilo cuscuzeira, como minha mãe costumava chamar, de olhos castanhos e banguela, eu corria com uma garotinha, meu amor de criança, que se tornou de adolescente e adulto, Kátia tinha cabelos cacheados, aos quais de vez enquanto eu pegava um cacho só para que gritasse comigo dizendo que não podia pois desmancharia eles, olhos azuis turquesa de boneca e o sorriso mais lindo que já vi em toda minha vida, nós estávamos girando e girando e girando, até que nossas mãos se soltaram e caímos cada um de um lado e explodimos em gargalhadas altas, só para depois nos levantarmos e girarmos de novo, com sorrisos inocentes nos lábios.

Eu senti minha mente estremecer, como se houvesse um sino dentro da mesma, e, no fundo de mim soube com todas as forças e certezas possíveis, que chegará a hora de me despedir, então volto a caminhar, dessa vez para trás, e fecho a porta, enquanto meus olhos se fixam em outra.

Era como se estivesse preso dentro de minha própria memória, preso a mim mesmo, e a procurar uma saída sem nunca encontrá-la, era uma sensação de vazio. Abro a próxima porta e sinto como se estivesse sendo preenchido, mesmo que só um pouco, aquele buraco de escuridão foi preenchido com luz, e o frio foi se esvaindo e dando lugar ao calor.

- Ian, seu mocinho danado. Vem aqui.

Eu tinha dez anos na época, e estava escondido na casa da árvore que meu pai tinha feito a alguns anos, minha mãe, Mônica, estava cheia de farinha de trigo que não era para ela, mas sim para Kátia, que tinha me pregado uma peça na semana anterior. Desço da árvore com o rosto ardendo e vou ao encontro de minha mãe.

- O quê você estava pensando, mocinho? - Ela pergunta com as mãos na cintura.

- Não era para você, mamãe. - Eu respondi baixo, se tinha alguém que eu respeitava era minha mãe. - Kátia pregou-me uma peça na semana passada. Eu só estava devolvendo - Respondi mais baixo ainda, olhando para os meus pés.

Depois de uma gargalhada minha mãe me disse que deveria prestar mais atenção e foi embora, resmungando que Kátia e eu ainda iríamos namorar e coisas do tipo, assim que entrou em casa, um riso alto soou atrás de mim, e soube que era Kátia.

- Você se livrou dessa, Kátia, mas não perde por esperar.

- Ian, não fale o que não pode cumprir, você não teria coragem.

Lhe encaro com um sorriso travesso no rosto.

- Não, não, não - Diz dando passos para trás e correndo.

- SIM! - Grito e a sigo. Sorrindo. Quando a alcanço rolamos no chão entre gargalhadas, enquanto fazemos cócegas um no outro, ficamos assim por um tempo, até que rolo para o lado e me deito de costas para o chão, os dedos entrelaçados ao dela.

O sino ecoa em minha mente de novo, e mesmo que não queira voltar é preciso, fecho a porta novamente e caminho até a terceira, que está um pouco mais longe, do outro lado do círculo. Abro-a. O frio me atinge e tento voltar. Mas não posso, não consigo.

Era noite, fria, não vejo como aconteceu, mas sinto que não estava errado, o erro não tinha sido meu, a frente de um carro estava amassada, minha moto de um lado e meu corpo do outro. Eu estava próximo de casa, sentia isso, e, por isso, Kátia estava ao meu lado e tinha a cabeça em meu peito, com um choro alto, doloroso, de partir o coração do monstro mais frio que pudesse existir. Tento correr até ela, mas tenho um limite até o qual posso caminhar, como se uma parede invisível me impedisse de ir além, então, vejo seu sofrimento de longe, seus murmúrios para que não lhe deixasse, que não fosse embora, que ela precisava de mim ali, ao seu lado, sem poder fazer nada.

Seus cabelos cacheados caiam no seu rosto, seus olhos estavam vermelhos e ela parecia tão derrotada, eu não suportava ver a tristeza em seu lindo rosto, e eu lutei, porque eu queria voltar para ela, por ela, eu queria minha vida de volta, não podia acabar assim e não iria, eu não permitiria, de forma alguma. Mas, então, sinto meu corpo ser puxado para trás, luto contra a força mas é inútil e a porta é fechada em meu rosto, com um último vento frio de adeus.

Sou arrastado até o meio do círculos de portas, onde a grama azul some e da lugar a um... Corpo. Meu corpo. Não sei o porquê, talvez seja um tipo de instinto, mas me deito devagar, em cima de meu próprio corpo, até nos fundirmos e se tornamos um só. Fecho os olhos e sinto como se estivesse ao ar livre e voasse muito, muito rápido, e é em meio a essa passagem que me lembro de porque tudo ser azul, principalmente turquesa, era a cor dos olhos de Kátia, minha amada azul turquesa. Essa se tornou minha cor preferida porque me lembrava a ela, e eu sempre quis tê-la comigo a todo momento.

A primeira coisa que chega a mim é um bipi e continuo de olhos fechados, até sentir que não estou mais em queda livre. Abro os olhos e encaro a luz branca que me espera, com a sensação de dever cumprido.

Por Stefani Soares

Contos para se inspirar: Porque a vida não é o bastanteOnde histórias criam vida. Descubra agora