A casa 175

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Acordo atrasada, para variar. Pulo da cama e começo a me vestir da forma mais rápida possível. Sou professora em uma escola pública localizada no subúrbio de minha cidade e minha chefe não está nada satisfeita com meus atrasos costumeiros. Eu sou uma pessoa naturalmente atrasada, sou assim há 25 anos, já tentei ser mais pontual, contudo, não obtive sucesso.

Saio de casa e caminho em passos apressados para o metrô enquanto faço um coque em meus longos cabelos ruivos. O metrô está surpreendentemente vazio, por isso, consigo me sentar dentro do trem, o que é ótimo para mim que mal acordei ainda. Pego meu exemplar de Dom Casmurro de dentro da bolsa, é meu livro favorito de Machado de Assis e como sou professora de literatura, não existe nada melhor para matar o tempo.

"Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá ideia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros, mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me (...)"

- Não me interessa – uma voz autoritária arranca-me de minha leitura – Eu quero o relatório em minha mesa até às 18 horas.

O homem desliga o celular de modo furioso, o coloca no bolso e passa a mão no rosto, tornando ainda mais evidente o quão cansado está se sentindo. Não consigo evitar de ficar impressionada com sua beleza, sua cabeleira loura curta, seu terno e pasta preta lhe dá um ar de sério, suponho então que deve trabalhar em algum escritório. Entretanto, algo mais me chama atenção, ao seu lado está um livro que não consigo ver a capa, o que me frustra, pois eu sempre quero saber que livro a pessoa está lendo em público.

Em certo momento, o trem para e o homem de terno se levanta para descer. Ele sai apressadamente mas esquece o livro no banco. Me levanto rapidamente, pego o livro e estou prestes a gritar para chama-lo quando a porta do trem fecha.

- Merda – reclamo baixinho.

Me sento novamente, guardando o livro na bolsa sem nem mesmo olhar para a capa, quem sabe nosso destino não acaba se encontrando?

***

Chego na escola correndo diretamente para a turma que eu já deveria estar dando aula.

- Diana – a voz de Francisca, diretora da escola, soa atrás de mim, me fazendo parar e me virar.

- Francisca, como você está neste belo dia?

Seus olhos negros me encaram com severidade.

- Vamos para minha sala – diz simplesmente e sai andando.

Sou obrigada a segui-la e todo curto caminho até sua sala, eu elaboro uma desculpa, afinal, falar "sou uma pessoa naturalmente atrasada" não é aceito socialmente. Mas não tenho tempo para isso, no mesmo minuto que a porta da sala de Francisca se fecha atrás de mim, ela solta:

- Você está demitida.

- O quê? – engasgo.

- Seus atrasos de tornaram inaceitáveis, Diana. Eu tentei fazer vista grossa mas todo mundo anda comentando dos seus atrasos e por isso, não tenho outra escolha além de demiti-la. Sinto muito.

Não sei exatamente como eu sai da escola, não lembro se respondi algo coerente ou só balbuciei incoerências mas quando me dou conta já estou sentada na sarjeta aos prantos. Dar aula é o que sei fazer de melhor na minha vida, eu jamais faria algo de propósito para perder meu emprego. Meu celular começa a tocar, procuro na minha bolsa e acabo encontrando o livro do moço do trem. Atendo a ligação enquanto observo o exemplar de Orgulho e Preconceito novinho.

Contos para se inspirar: Porque a vida não é o bastanteOnde histórias criam vida. Descubra agora