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O céu está limpo hoje. Significa que não vai chover, pelo menos não tão cedo. É melhor assim. Respiro fundo e encaro a plantação quase seca da família, tentando fazer como meu pai ensinara: ver uma luz em meio as trevas. Por que era esse o maior ensinamento que nos mantinha vivos e lutando... a esperança. Caminho devagar pela grama seca, meus pés descalços estalando debaixo dela. A visão de meu irmão se sentando na beirada da janela de casa me tira a concentração, e me faz sorrir. Ele balança os braços freneticamente, com um sorriso largo estampado no rosto. Está de terno, todo arrumado para a cerimônia de hoje. Seus cabelos castanhos estão penteados para trás, e apesar dos traços marcados de seu rosto, o sorriso o faz parecer mais jovem. Abbadon é um rapaz bonito, chama a atenção da maioria das garotas da grande cidade, onde costumamos passear. Me aproximo o suficiente para escutar suas passadas pesadas sobre a escada de madeira, e nossa mãe furiosa o repreendendo pelo barulho. Ele a ignora, e corre para abrir a porta.

— Você demorou dessa vez, muitos pensamentos?

Ele bagunça meu próprio cabelo louro, fazendo os fios lisos e finos se embolarem em vários nós. Chuto sua canela e lanço-lhe uma careta, quando percebo que isso só serviu para fazê-lo rir ainda mais.

— Acordou cedo e ainda assim vai chegar atrasado, mamãe vai te matar.

Penteio meus cabelos com os dedos, tentando desfazer os nós maiores, conforme nos direcionamos ao local da cerimônia. Andamos pela estrada larga até a cidade grande, Aadeiln, uma terra dourada. A maioria dos prédios e casas possuem um ar de sol, como se o próprio vivesse ali. O palco já está montado quando chegamos, os candidatos sentados à mesa cheia de medalhas. Como sempre, jovens de cidades ao redor e da própria cidade foram chamados, prontos para serem aceitos ou rejeitados pelo grande rei. A seleção é aleatória, ninguém sabe ao certo se vai passar ou não, até que o comprimido que desperta as asas seja colocado em suas mãos, seguido da palavra "aprovado". Depois de mais ou menos um mês, as belas estruturas ósseas repletas de penas se mostram. Se rejeitada, a pessoa é expulsa da cidade dourada, e forçada a viver nas periferias das cidades menores ou florestas, proibida de coisas simples como, sistema de saúde básico, ou estudo para si. Os descendentes de um não anjo podem participar, podem ter a chance de se tornar anjos com apenas um custo: abandonar sua família sem asas para sempre.

— Está nervoso?

Abbadon força um sorriso torto, marcando a covinha de sua bochecha direita no ato. Passando a mão pelas ondas castanhas de seu cabelo, ele gruda seus olhos em mim, e me tranquiliza:

— Estudei o suficiente, e meu físico está ótimo. Com certeza eu passo.

Reviro os olhos quando ele força seu bíceps, e lhe dá um beijo apaixonado. As vezes meu irmão se ama até demais. Temos exatamente dez meses de diferença de idade, o que significa que nosso teste acontece no mesmo ano. Ou seja, não vou demorar para acompanhá-lo na faculdade que escolher. Sei que ele se interessa por números, enquanto eu sou apaixonada por livros. Mas segundo ele, depois do teste tudo pode mudar.

Uma anjo alta e magra se aproxima de nós quando chegamos ao local da cerimônia, ela tem o cabelo preso em um coque impecável e saltos batendo contra o chão de cimento da praça, onde os candidatos de aprontariam. A mulher nos observa de cima à baixo, e depois verifica a prancheta que carrega nos braços. Com uma expressão completamente fechada, ela nos questiona:

— Abbadon Asher?

Meu irmão confirma com a cabeça, e em seguida, seu braço é puxado pela mulher alta de asas esbeltas. Abbadon é puxado para trás do palco, para uma área coberta onde será preparado. Aproveito a deixa para me recostar sob um dos postes apagados do lugar, lançando mais um olhar para a cidade do sol. Anjos andam ocupados, de um lado para o outro, as cabeças baixas para seus celulares, as asas levantadas para não serem arrastadas pelo chão. Alguns poucos voam por entre prédios espelhados, mas só aqueles tem muita pressa. Voar exige muita energia, de acordo com minha mãe. Viro a cabeça para outra extremidade da praça, onde uma mãe esbelta se despede de seu filho. O garoto parece ter a mesma idade de meu irmão, também muito bem vestido. A diferença é a forma como se veste: ainda mais social. O terno parece fino, a gravata também. E no bolso do tecido fino, tem um broche pendurado. Duas asas com uma espada no meio, o símbolo do rei. Seria ele um puxa-sacos da família real?

A mãe chorosa finalmente cede seu aperto, deixando o filho seguir a anja mal-humorada pelos arbustos robustos da praça. Troco o peso de perna, já impaciente pela espera. Sei que mal começou. Só verei meu irmão novamente, daqui pelo menos cinco horas, quando ele já tiver terminado a prova física, mental e teórica. Olho mais uma vez para o céu limpo. E então para uma cafeteria um pouco à frente. E nesse momento, decido que já passou da hora de me sentar em algum lugar. Bato as botas no asfalto para tirar a terra, mas assim que me viro em direção à cafeteria, uma lufada de penas atinge meu rosto. Ainda desnorteada, só escuto o estampido de algo pesado caindo no chão. Minha bunda. E... olho para o lado. Livros. Estendo a mão para ler melhor o título que decorava a capa vermelha, mas recebo em troca um tapa leve nas costas da mão.

— Sempre meche nas coisas dos outros sem autorização?

E só nesse momento, percebo que um anjo alto e forte havia me jogado no chão. Ou melhor, suas asas.

— M-me desculpe.

Consigo gaguejar enquanto me levanto do chão, dando tapinhas nas pernas para retirar a maioria da sujeira. O garoto - que por sinal é bem bonito - fica me encarando com seus grandes olhos azuis, as sobrancelhas franzidas em sua testa. Penso em perguntar o que há de errado, mas ele cata suas coisas do chão rapidamente, e bate as asas para longe. Uma pergunta fica presa em minha garganta, mas eu a engulo, e volto a andar na direção do café.

Lágrimas por asasOnde histórias criam vida. Descubra agora