Chegámos. Estávamos em casa.
Esperei ouvir alguma voz a implicar comigo, mas tudo o que conseguia ouvir era o som da madeira arrepiada com o frio. Também eu estava arrepiada. Do frio e da morte. A morte é realmente fria e arrepiante.
Peguei no meu telemóvel e iniciei uma chamada com o Lourenço.
#CHAMADA ON#
"Olá Lourenço, está tudo bem?"
"Olá Carolina... está tudo. E por aí, como foram as coisas?"
"Como podes imaginar, não foi muito fácil. Será que podes vir ter comigo?"
"Eu vou. Estás em casa?"
"Sim."
"Até já. "
#CHAMADA OFF"
Cada vez mais tinha a certeza de que gostava mesmo dele. Era o único que nem que fosse por um segundo, me fazia sentir bem. Me fazia sentir preenchida. Porque quando falava com os meus pais ou com a Mariana, sentia um vazio. Horrível. Relembravam-me a Beatriz. Falar com o Lourenço era falar comigo. Era falar à vontade.
Quando me dei conta, estava a acariciar a minha própria face. Deitei um sorriso fraco, coisa que não acontecia há algum tempo.
Não havia nada para fazer. Ou melhor, não havia nada que eu quisesse fazer.
Comecei a desenhar, enquanto esperava o Lourenço. Fiz vários traços que, ao início, pareciam não ter forma nem sentido, mas no final, eram a única coisa que tinha sentido no desenho. Era um desenho descabido, uma pequena demonstração daquilo que estava na minha mente. Riscos. Raiva. Medo. Dor. Pena. Culpa. A última palavra ecoava mais alto que as outras. Culpa. Culpa. Culpa. Era o centro dos pensamentos.
- O Lourenço está à porta Carolina. - avisou-me a minha mãe.
- Obrigada mãe. - agradeci dando à minha mãe um beijo na bochecha. - Entra. - dirigi-me ao Lourenço e convidei-o a entrar.
Entrou e fomos diretos ao meu quarto. Deixei que ele entrasse como se o quarto fosse dele e deixei-o a tomar conta de mim. Eu estava demasiado fraca para o fazer sozinha. Gostava tanto dele.
- Obrigada por teres vindo.
- Não agradeças. Eu tinha de vir.
- Foi horrível falar para ela naquele estado.
- Mas tu conseguiste falar?
- Sim.
Passaram-se vários minutos em silêncio. Comecei a pensar no quão diferente estava a minha relação com ele. Há 3 dias éramos apenas amigos, e de repente éramos outra coisa completamente diferente.
- Amanhã ficas em casa, certo? - questionou-me.
- Provavelmente fico, não vou à escola fazer nada. - respondi secamente.
Eu estava sentada na cama, e ele também. Começou por se aproximar de mim e disse-me "eu vou estar aqui contigo para o que precisares" e eu comecei a chorar. Mas ele continuou a falar para mim como quem fala com uma flor: "eu adoro-te, és a pessoa mais forte que conheço". E abraçou-me durante muito tempo. Um abraço verdadeiro. Era irónico o facto de ele me chamar forte enquanto eu chorava.
Ouvia-se no corredor a voz da minha mãe. Fui ver o que se passava. Estava a falar ao telemóvel.
"A minha filha Beatriz tem faltas por justificar porque teve um acidente! E não vai mais! A minha filha morreu! Acabou! "
A minha mãe desligou a chamada com o diretor da escola primária em que a Bea andava e começou a chorar e a gritar. Estava descontrolada.
- Mãe! Mãe por favor tem calma! - tentei intervir de maneira a que ela tomasse consciência do que estava a fazer. O meu pai apareceu e em questão de segundos todas as pessoas que estavam em casa rodeavam a minha mãe, preocupadas. Ela não aceitava a realidade, tal como nenhum de nós, mas estava completamente descontrolada para desatar aos gritos com todos, para se revoltar com tudo. Nunca nenhum de nós a vira assim.
- Não há calma! Parem! Eu só quero falar com a Beatriz! Ninguém sabe o que eu estou a sentir! - manifestou a sua opinião.
Vimos o meu pai a agarrá-la pelo pulso e a dizer-lhe que era preciso manter a calma e aceitar a realidade, para o seu e nosso bem. Ao ela agir assim, fazia com que eu e a Mariana nos desmotivássemos e que desistíssemos de tentar aceitar a nova rotina. Mas mesmo assim, a minha mãe estava completamente desmoronada. Ignorou toda a fala do meu pai, deu um último grito e acabou por entrar no quarto deles. Desde aí, não ouvimos nem mais um som.
Pedi ao Lourenço para que ficasse lá em casa esta noite, e ele aceitou, dando-me um beijo.
A sensação que tenho é que quando acontece uma mudança destas numa família, uma morte, afeta toda a gente. Afeta de uma maneira não-singular. Afeta-nos a todos, como se fôssemos um só. Ninguém pode desistir, porque todos dependemos de todos. Logo, se a minha mãe mantivesse aquela atitude, todos desistiríamos de lutar e de vencer.
Começo a ver o meu pai a vir ter comigo com um ar comprometedor.
- O que se passa pai?
- A mãe não está muito bem... não sei o que fazer. Ela quer estar sozinha, mas não posso deixá-la sozinha! Tenho de estar com ela sempre. - disse isto e pude ver em cada um dos seus olhos imenso desespero. Queria mesmo ajudá-lo. Fazê-lo sentir-se melhor.
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Sempre que eu puder voltar
General FictionVoltar atrás não é possível, mas é a solução.