Capítulo 7

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Entrei no carro e para escapar ao óbvio tema que escurecia o ar, comecei por fazer algumas questões, às quais me faltavam respostas.

- O que aconteceu ontem à noite? Eu lembro-me que o Lourenço me salvou. Mas e depois?

- O que o Lourenço fez foi muito corajoso, mas mandou-nos uma mensagem que nos assustou bastante.

- Eu podia ter morrido... Fui muito irresponsável, mas precisava de estar sozinha. - justifiquei-me.

- Ouve querida, eu sei que não queres ouvir nada disto, mas amanhã vai ser o funeral da Beatriz, e acho que devias ir. - toda a maldita palavra que ela dizia, soava no meu coração com gosto a dor. Funeral. Não tinha pensado nessa questão ainda.

- Eu vou. - afirmei com dureza.

- Acho que fazes bem, filha.

Rapidamente chegámos a casa e mandei a minha mochila para cima de uma cadeira. Entrei no quarto da Mariana e vi um corpo deitado na cama, com ela. Era o namorado dela, o Luís. Estavam os dois a acariciarem-se mutuamente. Olhei-os durante alguns segundos e comecei a imaginar-me naquela maneira com o Lourenço. Seria uma das coisas que eu mais gostava que acontecesse naquele momento. De repente a Mariana reparou que a observava.

- Estás aí. O que aconteceu? - Rapidamente observei o Luís a levantar-se da cama para me vir cumprimentar.

- Não aconteceu nada, fartei-me de estar na escola. E como tinhas dito que tinhas ficado em casa, pensei que pudéssemos conversar. Mas deixa estar, eu não quero incomodar. - dizendo isto saí do seu quarto.

Ela veio atrás de mim para se justificar.

- Não. O Luís só veio porque eu estava sozinha.

- Às vezes nestas alturas, mais vale estar sozinha. - disse.

- Não sei se quero perceber o que disseste.

- Eu vou para o quarto. - fui super bruta, e acabei por fazer o que disse. Fui para o meu quarto.

Deitei-me na minha cama e vi o telemóvel. 11:46h. Já se passavam várias horas desde a morte da Bea. Comecei a pensar no quão duro seria o funeral dela. Não queria ir, mas tinha de ser. Eu sentia-me em imensa dívida para com ela. Peguei numa folha de papel lisa e num lápis e comecei a escrever algumas palavras que queria dizer à Beatriz.

"Querida Bea,

Como bem sabes, nunca nos demos bem. Nunca. Sempre implicámos uma com a outra. Mas nas piores alturas, sempre nos apoiámos. Mas desta vez não foi assim. Foi a pior altura, e eu não te apoiei. Em vez disso, dei-te um estalo. Nunca me vou esquecer disso. Posso esquecer-me de tudo menos do dia em que te tirei a vida.

As pessoas podem dizer que não tenho culpa do que te aconteceu, mas na verdade, só nós duas sabemos que tenho toda a culpa. E não posso apagar isto com uma borracha. Só vou conseguir gastar a borracha e rasgar o papel. Mas a culpa continuará lá no papel, escrita a caneta. Não posso mudar.

Não posso deixar de reparar que morreste. Que já não estás. Que o teu quarto está vazio, os teus brinquedos estão deitados no chão, à espera que tu venhas. Também eu estou à espera. Reparo ainda que os teus ténis estão no meu armário. Esqueceste-te de os tirar. Mas não faz mal. Agora pertencem ao meu armário. O livro que te emprestei para leres e que tu adoras, está em cima da tua mesa de cabeceira. Sei que estavas a gostar. Tal como eu gostei quando tinha a tua idade. E mais importante de tudo. A moldura onde está colocada a nossa fotografia, também está à tua espera. Aquela fotografia que tirámos num dia em que estávamos muito amigas. Sorríamos as duas com a maior felicidade. E enquanto sorrias, estavas a dar-me a mão. Isso não aparece na foto, mas eu lembro-me bem. Não posso esquecer. Nesse momento, senti que a nossa amizade era mais forte que qualquer outra coisa. Que éramos amigas. Que éramos fortes. E éramos, e se calhar ainda somos... Eu sinto muito a tua falta. Sinto mesmo que éramos tudo. Éramos maninhas, uma igualzinha à outra. Eu gosto tanto de ti miúda... Não te sei explicar o quanto. És tanto para mim. E sei que para ti estas coisas são apenas palavras. Sei que não me ouves, sei que a única coisa que te lembras é de que sou fraca, e nojenta. E de um carro. É tudo. Foi assim. Morreste. Tirei-te a oportunidade de crescer. Nunca te vão crescer as maminhas. Nunca vamos falar do teu primeiro amor. Nunca vais chegar à minha idade. Nunca vais poder ter um namoro a sério, com beijos e outras coisas. Coisas que não conheces. Nunca vais estar grávida, não vais ter uma barriga grande, não vais ter dores, não vais ver o TEU bebé nas tuas mãos. Não te vais casar, nem poder dizer "Aceito" com a maior força que a tua boca permitir. Não vais ver tudo a mudar. Não vais ter a tua casa. E queres saber o pior? Vai haver um dia em que eu vou ser muito velhinha, não me poderei levantar, e vou ter de ir para o hospital. E nesse dia, vou esperar que chegues e que me digas "Eu amo-te" e que me abraces e digas obrigada por tudo. Nesse dia, eu vou estar sozinha. Vou morrer. E ainda nesse dia, vou pedir desculpa, por não te ter protegido. E vou morrer com os braços frios, à espera do teu abraço. Preciso da tua coragem. Preciso que voltes. Preciso de ti, mais do que de mim. Volta por favor. Quero muito que me dês o abraço que nunca vais poder dar, quero que me dês as mãos como no dia da fotografia. E que sorrias. E hoje, hoje eu não vou dizer adeus. Eu vou pedir desculpa. E espero que me perdoes. Amo-te com todas as minha forças. Com tudo o que me resta. Amo-te com as tuas mãos, que me deste. Eu amo-te. E quero que tudo o que ficou por dizer, que fique. Como tu ficaste. Tu ficaste por dizer. Ficaste por falar. E eu não quero falar...

Obrigada por tudo o que me deixaste dar-te, e desculpa por tudo o que te tirei. Amo-te por ti.

Mana.

P.S.: Para Sempre."

A minha cara estava lavada em lágrimas. Eu chorava com a força da chuva. Mas rapidamente selei a carta e preparei-a para que no dia do funeral pudesse ler.

Lavei o rosto e cada palavra que escrevera, ecoava o meu coração. Era tão fácil olhar para o espelho e ver a minha cara desmoronar-se, relembrar cada momento com a minha irmã e desfazer-me. Como era possível isto acontecer, e além disso eu ter de continuar a viver? Como era possível a vida ser injusta ao ponto de deixar isto acontecer, e não parar por um segundo para me deixar aceitar o que tinha acontecido? Eu precisava de "morrer" durante um tempo para me consciencializar de tudo. Não era possível...

Fui direta ao quarto da minha irmã Beatriz e tudo o que fiz foi cheirar as coisas que lá se mantinham, e que cheiravam tanto à minha menina. Era a coisa mais infeliz de todo o sempre. Acabei por adormecer na cama da Bea e fiquei assim durante horas.

Sempre que eu puder voltarOnde histórias criam vida. Descubra agora