Prólogo

222 33 95
                                    

Ano 277 - o ano do fim.

E a terra tremeu.

A primeira das flores vermelhas caiu junto com o último floco de neve.

Antes que tudo acabe, gostaria de pedir que faça uma reflexão.

Por trás daquela colossal árvore, dois olhos se ergueram no horizonte. A sombra caiu e o gatilho da esperança disparou.

O que seria mais próximo de uma ordem social senão uma balança?

E nas sombras do colosso de olhos em fenda, um chicote deixou de estralar, uma fornalha deixou de brilhar e uma fábrica deixou de sugar uma alma que já havia deixado de chorar.

Todos que nela vivem, vivem em um de seus lados, naturalmente, equilibrada.

E o ódio daquela descomunal criatura lhes dava energia, e a energia transcendia aquelas pobres almas com fervor. Todos aprenderam a cultivar o medo e a angústia apenas dentro de si, no entanto, agora, nada poderia barrar a vontade de mudança. E sobre a neve das ruas e vielas, os próprios olhos cansados de uma multidão ansiosa brilhavam. E as asas de Asgalamuth, o Guardião dos olhos de fenda, e a copa de Asrin, a Árvore Mãe de todos, os asseguravam com a força que apenas os seres primordiais poderiam propor.

Durante 277 anos, Mãe e Guardião foram selados por Osrin, a capital de Asfaron.

Mas agora, tudo seria diferente.

E sob as sombras dos colossos, a multidão tomava forma.

Eu volto a perguntar, se medido de um lado uma gota de sangue e no outro o ouro, qual pesará mais?

Uma balança jamais foi feita de um só lado, e quando as raízes primordiais deram contorno à praça real, a própria fortaleza se revelou esculpida na sagrada Asrin, e dela, como uma praga, os soldados dourados brotaram aos montes.

De um lado, a voz se erguia, do outro, as espadas.

No topo de todos, o mais pútrido dos homens se revelava: ele era o rei.

-Salve, povo de Asfaron! - Bradou o homem. - Salve, frutos de Asrin, e filhos dos Sete. E que os Sete lhes tragam bem aventurança! Salve, povo destemido! Eu, Bargo Lionir, filho de Groruth Lionir, descendente do grande conquistador de Asrin, Farignion Lionir, o tombador de colossos e reivindicador de Tamarth, a dourada - e apanhou o cabo da espada e o puxou da bainha, uma longa lâmina surgiu, uma longa e bela lâmina revestida em ouro-, juro por minha honra e por toda honra dos Lionir, por todos os dignos osnirianos e verdadeiros asfarinos, que encontraremos o semeador das mentiras e tumultuador da Ordem de Osrin! Escutem, filhos, eu mesmo lançarei a cabeça do profanador de nossas crenças aos porcos! Vocês, meus irmãos, têm as minhas palavras! Que os justos não tenham de pagar pelos outros! Honra se paga com honra! E que os injustos paguem com sangue! Sondre ar'e Ningar!

Permita-me ir além, se pudesse escolher um dos lados, escolheria o do sangue ou do ouro?

Em muitos as palavras afiadas do rei surtiram efeito. Pobres coitados, o receio ainda era grande, e o estrago, imenso. Guiados por ele, eles mesmo se olhavam, estranhando uns aos outros. E, baixinho, repetiam: "Sondre a're Ningar".

Mas Asgalamuth havia retornado. O rei sabia que seu império estava ameaçado. Se ele não tombasse pela última das rebeliões, tombaria pelo temível Dragão descomunal que abraçava a igualmente descomunal árvore. E, por isso, sempre haveria aqueles cujo as chamas de esperança por mudança ainda queimavam. E, quando, por uma segunda vez, a terra tremulou, e quando mais uma flor vermelha caiu dos céus e neve alguma veio de lá, eles bradaram:

-Sadra! Sadra ina Oris!

O nosso destino está inscrito em traços. Cada traço é um momento, cada momento é um princípio, e cada princípio predefine um fim, que nasce e morre nas mais rubras pétalas, das mais importantes das flores. Cada um deveria ter a sua própria flor. Cada um deveria ter o seu próprio destino. Mas durante aqueles 277 anos, os nossos destinos foram selados e nossa liberdade, presa. A balança pendeu apenas a um lado.

Bargo Lionir não era o único causador de tudo aquilo, mas ele certamente fazia parte de um todo. Ele colaborava com o plano de quase 300 anos de controlar o destino de todos de Asfaron. E isso estava chegando ao fim. E quando a terra parou de tremer à ira de Asgalamuth, e mais flores vermelhas caíram das colossais copas de Asrin, ele certamente percebeu que a Ordem de Osrin cheva ao final.

Nem a liberdade e nem o destino nos seriam mais confiscados. Nós iríamos equilibrar a balança.

E sob a sombra dos colossos, as flores deixavam um curioso rastro laranja no ar. Elas caíam entre a multidão e a neve do chão. Lionir não era capaz de conceber. Soldado algum de Osrin era capaz de conceber. E o desconhecido levava ao medo, e o medo à fúria.

-Sadra! Sadra ina Oris!

Durante aqueles 277 anos, nós estivemos presos no medo. Nós estivemos cercados pelas mais densas neblinas da incerteza. Que agora se dissipava.

O riso abandonou a cara do rei. Pouco a pouco o coral aumentava, assim como seu pavor. Bargo Lionir tremia. Ele olhou com desprezo para aquelas almas que um dia o venerou e, quando mais pés dourados surgiram por de trás das raízes colossais cercando o povo furioso, tornou a sorrir, afinal, quem eram aquelas pessoas contra um glorioso Lionir?

E não só as flores tingiam Osrin de vermelho. A cada passo um golpe forte, a cada passo uma morte. O sangue escorria entre a neve e os corpos no chão. O medo era domado com a força, as flores não paravam de cair de Asrin e os olhos colossais em fenda do Dragão Guardião Asgalamuth continuavam a dominar todo o horizonte.

Muitos caíam, sim. Mas muitos continuavam a berrar:

-Morte! Morte ao rei!

A revolução estava chegando, a opressão estava prestes a ter um fim e, com ela, aquele longo inverno de 25 anos.

E, enquanto ela não chegava, Bargo Lionir voltava a rir do mar vermelho que escorria em torno de Asrin; ria pela tentativa inútil de mudança daquele povo decrépito; ria de seu poder incomparável; ria tanto, que mal pôde ouvir os passos que seguiram por trás.

Aqueles eram os passos da revolução, eram passos que calariam a opressão:

-Sondre a're Ningar! "Que os injustos paguem com sangue!"

Eu me chamo Norfin Ignil e eu sou o assassino do rei.

Flores Vermelhas - Sob as asas da liberdadeOnde histórias criam vida. Descubra agora