2.1 Sombras Vivas

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Para nós, nebrianos, ou ao menos o que restou de nós, nunca havia sido simples aceitar a verdade das coisas. Ela sempre nos pareceu muito distante.

As verdades da capital, no entanto, seja por medo, seja por lealdade, eram mais simples de aceitar.

Durante séculos, não contestamos as histórias que rodeavam a traição de Farignion Lionir, o primeiro dos reis de Osrin. E quando falavam sobre o irmão mais velho, Irioniar Irandil, sobre as suas conquistas, sobre sua aspiração à dominação de toda Asfaron e como o irmão havia revertido a situação, traindo-o, nunca nos passou pela cabeça que a narrativa pudesse estar invertida.

Contava-nos sobre Asgalamuth também. Constava-nos como Lionir havia derrubado e selado o Guardião nos confins da terra. No entanto, homem algum teria qualquer poder, homem algum conseguiria nem ao menos por um fim na verdadeira criança herdeira ao trono de Asfaron. E se nós tivéssemos informações, saberíamos que havia mais forças ao lado de Lionir do que apenas homens e espadas.

As sombras... 

E tudo o que vinha delas... Tudo o que vinha de suas garras e tudo o que estava sob suas asas era o que realmente deveríamos temer.

Há 252 anos, enquanto Lionir traía seu irmão, outra traição ocorria ao sul daquela mesma terra. As próprias sombras de Asgalamuth o condenaram aqueles 252 anos de confinamento.

Nesgrath não se passava de um suspiro de sua derrubada. Mas nesgrath era também um aviso. Um aviso de que Asgalamuth continuava existindo.

De que Asgalamuth ainda retornaria.

...

Ano 252 - A noite da reunião em Neftim.

Areia voou ao lado quando seus pés tocaram o chão.

Balançou as asas duas vezes como se buscasse se acostumar com o solo firme.

Ergueu a cabeça, olhou o céu.

"O céu...". Ele pensava.

Completamente obscurecido, exceto pelas  estrelas e lua, de resto, uma completa sombra do infinito sombrio.

O sorriso surgiu.

Aquele gesto era a única forma de manifestação de alguma emoção que os ialubres tinham.

Para criaturas como ele, o sorriso podia significar alegria, fúria, cobiça e dor.

Naquele instante,  quando o som explosivo de metal tomou conta de todas as maravilhas do deserto, o sorriso significava apenas triunfo.

E ele se aproximava cada vez mais de Kangri'kur, o emaranhado de metal, que cavava as entranhas de Asgalamuth.

Havia muita gente ali, mas ele não se preocupava, pois enquanto estivesse nas sombras, ninguém o veria.

Observava aquele esqueleto metálico, que brotava das areias e serpenteavam ao alto, pregados, amarrados, parafusados numa única estrutura de aspecto terrível.

Conforme trabalhava, a máquina vomitava fogo e brasa. Deveria ser horrível a um mortal ficar ali por mais que algumas horas, ele pensava.

E de fato era.

Os mortais, carregando tochas, pás, picaretas e arrastando carroças, pedregulhos e caixotes, tinham aspectos deploráveis.

Era, no mínimo, curioso.

'Como os mortais são fascinantes', ele pensava.

'Todos semelhantes na aparência... Todos limitados pelo tempo... Todos fadados ao eterno silêncio da morte...'

Flores Vermelhas - Sob as asas da liberdadeOnde histórias criam vida. Descubra agora