Cartas de Um Miserável

ⅠⅩ

O meu passado foi só tristeza
A minha vida, só foi ilusão
Foi-se a esperança e a leveza
Não sobrou nem sequer pão.

Balbuciava estas coisas pro ar, não me importando se era coisa de bom senso ou não. O mais provável era que eu estivesse em algum tipo de delírio; hipnotizado pelo som do piano ou encantado pela graciosidade de Joanna. Não saberia dizer. Saí desse meu estado de torpor quando vi Seu Lúcio de pé.

Ele havia se levantado e se encostava perto da escada, olhando para mim como quem diz venha cá. Conhecia aquele olhar de tempos atrás. Lembrava um pouco o olhar do meu pai. Tinha algo de familiar ali — quase como quando você anda na rua e sente cheiro de café caseiro, entende? Me ponho a pensar na semelhança entre eles agora, depois de tudo. Pois me levantei e fui. Enquanto descíamos, as variações do tema musical se tornando distantes atrás de nós. Um anúncio no jornal havia chamado a atenção dele. "Acho que isso pode te interessar" — ele observou. Era afinal uma oportunidade de emprego: ajudante de sapateiro. Como você pode observar, meu caro, não é uma das melhores ocupações. Contudo, naquele momento seria de grande valia para que eu pudesse aos poucos me reerguer. Quem está faminto não escolhe. E tem outra coisa: estava passando tempo demais na casa dele. Concordei em ir até lá buscar mais informações. Iria no dia seguinte.

Nublou pesado antes de chover. Lá fora uma nuvem muito escura pairava e despejava sua água suja sobre a cidade. A luz do dia cessava cedo, de forma que com as janelas fechadas o interior da casa já ficava completamente escuro em plena quatro da tarde. Todos ali (incluindo a mim) foram para a cama mais cedo; o barulho da chuva me cansava, e acredito que fazia o mesmo com eles também. Eu partiria no dia seguinte para a loja do tal sapateiro. Precisava descansar; dias novos me aguardavam.