A Avó

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O salão enorme agora parecia muito maior do que realmente era. Apenas alguns parcos amigos vieram lhe prestar a última homenagem. Da família somente nós três permanecíamos ali, junto a seu corpo inerte. Três irmãos, os últimos da sua linhagem de seres onde o dinheiro e a ignomínia reinavam.

Não seria tão estranho quanto eu imagino voltar para casa e já não a encontrar lá.

Quando éramos crianças (época em que a inocência nos dá a liberdade de falar qualquer coisa, sem que isto pareça uma blasfêmia) brincávamos de sermos os fantasmas dos que já foram arrastando correntes pelo chão dos corredores do velho casarão, estragando o lustre dado a eles. Imaginávamos como seria quando todos estivessem mortos, e só restasse nos três. Qual seria a sensação de sermos os últimos? E qual espectro tomaria as correntes nas mãos?

Agora que ela se foi, restou o vazio... A sensação de pesar e nostalgia que estas horas sempre trazem. Aquelas pessoas estavam ali porque realmente gostavam dela apesar do seu gênio forte e egoísta.

No final da tarde seu corpo foi guardado dentro da terra, só restou a mim voltar ao casarão. Será apenas eu, o silêncio e Olga, a governanta que nos acompanhava a trinta anos durante a semana...

O lugar onde ela escolheu para formar a sua família há mais de sessenta anos era um casarão antigo e desbotado pelo tempo, construído em meados do século dezoito, que mesmo estando fadado a ruir um dia, assim como ela, ainda permanecia imponente.

Todos que fizeram parte da sua vida morreram. Seus filhos, irmãos, seus maridos... Enterrou todos, só nós três permanecemos. Mas ela se recusava a morrer.

Contou cento e vinte anos, vivendo mais do que é permitido à maioria dos seres humanos. Seu corpo abrigava muitas rugas e um ar cansado se fez presente nesses últimos dias.

Cansado também estavam seus passos. Já não conseguia levantar todo o peso do corpo e seus pés, calçados em chinelos de couro, arrastavam pela casa seu corpo franzino e altivo, criando um som característico... Um chiado... Quase um sussurro.

Era fisicamente ativa, andava por toda a casa, porém não organizava as ideias direito. Ao caminho do banheiro mudava a direção e ia para a cozinha acabando por fazer suas necessidades ali mesmo. Sua mente já não funcionava como antes, mas mantinha-se uma velhinha desagradável e antipática.

Em raros momentos de lucidez falava do passado como se este houvera ocorrido a pouco e mantinha uma conversa solta por horas a fio.

O tempo não acinzentou seus cabelos, não lhe tirou o humor ácido e lhe acrescentou a rabugice que só cabe aos senis.

Tínhamos criado um elo muito forte nesse pouco tempo que passamos juntas. Aprendi a olhar para ela não mais como uma avó bondosa, dos doces e guloseimas, aquelas que encontramos normalmente por aí.

Ela era completamente diferente. E de uma mulher forte, firme e autônoma, tornara-se frágil e dependente.

Voltei para casa assim que meus irmãos foram embora para retomar suas vidas de dois dias atrás.

Parei de frente ao portão. O casarão, um pouco mais soturno agora, mantinha a sua imponência apesar de tudo a sua volta parecer sem cor. Um vento invernal tornava muito mais fria a noite que já ia alta.

Ao entrar pensei vê-la sentada no sofá olhando pela janela o horizonte, como fazia todas as tardes. A vi levantar seu corpo cadavérico, sua imagem sumiu tão rápida quanto surgiu.

Tomei uma xícara de chá e percebi que os últimos dias não foram tão tranquilos. No entanto, uma boa noite de sono sanaria isso.

"Precisava dormir!"

Quando acordei em minha cama no quarto que desde pequena sempre foi meu não identifiquei de imediato se dormia ou sonhava, entre um ou outro cochilo, não escutei correntes sendo arrastadas. Escutei a chuva caindo no telhado, os cachorros da vizinhança latindo intermitentemente, o assovio do vento na janela e um chiado...

Chiado de passos cansados...

Sobre Assassinos e MedosOnde histórias criam vida. Descubra agora