Olhou os bibelôs minúsculos e coloridos com atenção, estavam milimetricamente organizados em cima da antiga cômoda. Tudo, naquele lugar cheirava a velho. As roupas, os móveis, a casa, o ambiente todo ficou no passado, congelado em lembranças.
Com cuidado, passou as pontas dos dedos em um dos abajures que adornavam a sala. O local era pouco iluminado, apenas uma luz fraca e amarelada se fazia presente. Por alguns anos temeu aquele momento. Mais que a própria morte, e mesmo sabendo que seria inevitável teve medo. Desde que foi embora nunca falou com ninguém. Não se viam há muito tempo...
Até porquê tudo aconteceu tão rápido!
Uma chuva fina caía sobre a cidade tornando-a deserta. Andando a passos curtos e trôpegos pelo corredor onde as paredes sustentavam quadros que retratavam vilas e morros tão vazios e solitários quanto a própria casa, percebeu que o lugar sempre esteve "vazio". Sem crianças, sem pessoas, sem felicidade. A vida abdicou de morar ali há muitos anos. Mesmo na época em que ali estiveram.
Olhava os cômodos... Tentava montar em sua mente os acontecimentos que ocorreram nos anos que ali passou. Sua memória tornava-se clara neste momento. Em um flashback massivo e dolorido via nitidamente todos materializados em suas ações de sempre. Vinte e oito anos haviam passado desde o último dia em que dormiu sob aquele teto. Vozes, pessoas e cheiros, todos agora tomavam formas repentinamente: a criada que sofria de anorexia inconformada com o destino que a vida lhe deu, o irmão com seus poucos meses de vida fazendo do choro ininterrupto uma forma de clamar colo, o cachorro deitado no tapete alie
nado do que ali se passava... O gato parecia ser o único que tudo sabia!
A porta gemeu quando girou vagarosamente a maçaneta, como se sentisse dor ao ser aberta. Seu quarto estava ali! O tempo não tocou nele. Sua cama, seus objetos, tudo estava exatamente como antes. Uma suave respiração em sua nuca fez com que um arrepio subisse pelo seu corpo. Olhando para trás, nada encontrou, a não ser o corredor após a porta. Fechou os olhos, pôde ouvir o choro abafado de uma criança, não era o bebê que estava na sala. Era um choro sofrido, em que as lágrimas teimavam em escorrer pelo rosto mesmo depois que os gemidos cessavam. Pode ver a criança abraçando o travesseiro como se este fosse seu último alento, aquele que a seguraria se caísse. O medo e a agonia estampados no rosto daquela criança faziam com que retornasse a um tempo, que ela conheceu em algum momento, mas recusava-se lembrar. Procurou em si mesma e encontrou apenas um estado de torpor quase mudo.
Gritos e barulho de couro cortando a carne invadiram a casa, sons que emudeciam repentinamente só para recomeçarem momentos depois... E novamente... E novamente...
Tapou os ouvidos tentando em vão silenciá-los.
O tempo levara a todos. Só eles estavam ali. Faziam parte de cada canto daquela casa, como se fossem parte não somente da história, como também de todo ambiente físico daquele lugar.
Voltou deixando a criança de olhos claros e cabelos negros iguais aos seus com suas lágrimas intermináveis.
As paredes pareciam ter vida. Moviam-se quando passava, talvez quisessem tragá-la em uma estranha simbiose.
Apesar do receio, parou em frente ao último quarto. Suas mãos suavam e tremiam. Sabia o que encontraria. Esta porta recusou-se a soar, calou. Sempre, neste quarto, o silêncio imperava, por mais atrozes que fossem as ações ali passadas. Um cheiro de sangue velho e poeira invadiram suas narinas e a imagem foi montada em quadrículos na sua mente. Lençóis jogados ao chão, respingos de sangue neles e no colchão nu... Sob a cama uma mulher de grandes olhos verdes fitava o vazio esperando por algo que não viria nunca. Estava amarrada pelos pulsos por cordas que desciam do teto, com os braços abertos, mantinha-se ajoelhada na cama, seus ombros se moviam deslocados do tronco. A carne de suas costas e nádegas estavam cortadas pela ação frenética do couro na pele fina e branca.
Tão branca...
O lábio inferior caía um pouco, graças aos diversos tapas que levou, em seu pescoço a pele estava vermelha e inchada, o ouvido sangrava, as narinas sangravam... A alma sangrava! Aos poucos virando o rosto, a mulher encontrou os olhos iguais aos seus. E seu olhar morto atravessou seu corpo e sua alma em um pedido mudo de socorro. Saiu dali com certa angústia, tremia, suava, queria sair, precisava respirar. O ar não entrava por inteiro em seus pulmões. Seus passos ligeiros agora não venciam o corredor que parecia muito mais longo que antes.
Como uma sombra demoníaca, repentinamente, ele saiu da biblioteca prostrando-se a sua frente. Tomou coragem e continuou, passaria por ele. Pouco importava o que podia fazer. Não a feriria nunca mais. Nem a ela, nem a ninguém! Estava muito perto agora. Tão perto que o cheiro cítrico de whisky e limão entrou por suas narinas e queimaram seu cérebro. Quis evitar o olhar, mas ele insistiu. Ainda era o mesmo, o mesmo cabelo dourado caído na testa, as mesmas mãos enormes de longos dedos que teimavam entrar nela, o mesmo terno acinzentado que agora...
A ânsia subiu de suas entranhas ao ver que em meio ao peito ele ainda carregava o ferimento. O sangue escorria por todo o corpo dele e percebendo-se úmida, tocou-se e sentiu que o sangue também estava em si, impregnado como pele que apodrecera. Fixou seus olhos nos olhos negros do homem ferido a sua frente. Ele sorria maliciosamente com um olhar irônico e suave enquanto saboreava a bebida. O pavor que há muito lhe era negado voltou derrubando todos os muros que durante anos construiu envolta de si mesma. Sua alma e suas entranhas doíam ao lembrar sua face. Tentou correr e encontrar a saída, mas seus pés não caminhavam tão rápido quanto a sua vontade. Deixando a imagem pútrida para trás, abriu a porta. O ar encheu-lhe os pulmões, a chuva cessara e o sol brilhava timidamente. Como num sonho sentiu que a arma ainda estava em suas mãos, cenas foram sendo refeitas como em um quebra cabeça, a mulher, as surras, o sangue, o choro, a risada, o barulho seco e quente do revólver, o cheiro de pólvora, mais sangue... Tudo tomou forma dentro de si. Devolveu a arma ao chão, como fizera no passado e sem querer olhar para trás correu. Outra vez fugia, aconteceu assim antes, era assim agora.
Estava ciente do erro que cometeu, não voltaria mais. Não poderia voltar. As lágrimas escorriam por seu rosto. Correu tanto quanto antes. Tinha que esquecer outra vez. Matar dentro dela, matar-se se fosse necessário.
A certa altura parou ofegante, o coração queria explodir dentro do peito que arfava com violência. Podia ver a casa ao longe, olhando assim não a assustava tanto. Era como uma pintura congelada em uma tela fria. Iria embora. Só uma ou outra vez em que o vento soprasse no seu ouvido, lembraria dela. Vinte e oito anos se passaram, passariam mais vinte e oito. Cem anos quem sabe? Um dia teria que voltar. Ele a queria e ele a teria. Quando a morte chegasse e não mais pudesse fugir.
Enfim, ele venceria...
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Sobre Assassinos e Medos
HorrorEste é um livro que reúne alguns contos. Os quais narram sobre o íntimo, o medo e assassinos imperdoáveis... ou não! "Não separe com tanta precisão os heróis dos vilões, cada qual de um lado, tudo muito bonitinho como nas experiências de química. Nã...