O Assassino

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O sangue percorria seu corpo com rapidez, os músculos tremiam e algo doía por dentro. Ela era tão cheia de vida, tão bonita... Estava entre as mais belas que já teve.

Nenhum escapava à sua fúria quando ela se apresentava, homens, mulheres, crianças... Não que se arrependesse, era necessário, só não queria mais ter que fazê-lo. Não desejava matar, desejava viver! Não tinha escolha, nunca teve. A ânsia por tomar vida de outrem era insuportável. Negava, passava muito tempo afastado das pessoas, mas quando o desejo vinha não o abandonava. Tinha medo de ficar sozinho consigo mesmo e enlouquecer de vez.

Precisava ir embora. Logo amanheceria, e ninguém poderia nota-lo ali.

Era um homem livre (por hora). Um dia alguém o denunciaria. Teriam que perceber quem era, ou então ele mesmo se entregaria e assim acabaria com sua infernal existência. Talvez, alguém viu ele matar a moça que cheirava a tempranillo¹ fresco. Ele viu os olhos. Olhos que o procuravam.

Se tivesse coragem para tornar público seus atos... Se o vissem, acabaria esta agonia.

As pessoas o perseguiriam novamente e desta vez dariam fim ao que desonrosamente chama de vida. Assassino! Pária! Demônio!

Lembra? As pessoas ensandecidas, borbulhando de ódio a vingar entes queridos, que você destruiu. Que você carrega em si. Enfrentaria a fogueira novamente? Covarde!'

A voz! Agora era assim, ela o atormentava quando a necessidade chegava e também quando a saciava. Antes de levar a jovem para encontrar-se com seu destino naquele beco fétido ela o incitou e outra vez se fazia presente!

Estou louco! É isso! Enlouqueci! ― pensou consigo, sorrindo cínico.

― Vai matar amanhã? O que será? Quem será? Um homem ou uma mulher? Ah!' ― uma risada fina e compassada cruzou sua consciência...

Desta vez será animais? Lixo!'

― Maldita! ― gritou para si mesmo, mas sua voz rouca ecoou pelas ruas vazias. A voz não o deixava em paz! Estava com ele há anos. Sempre o culpando por fazer o que sua mente e seu corpo queriam, mas que seu coração recusava.

De todas as pessoas que tirara a vida, nunca deixou que nenhuma gritasse ou olhasse em seus olhos. Era cuidadoso. Porém hoje cometera o erro. A mulher bela, de olhar intenso, por um fragmento de tempo olhou dentro de seus olhos tão profundamente que queimou sua alma.

A chuva fina tornava as ruas íngremes, escorregadias. Ouviu falar que uma tempestade se aproxima. Não importava. Nada o amedronta mais que a si próprio.

― Os loucos homens da ciência deste infante século XVIII julgam saber tudo! ― um sorriso irônico estampou-lhe o rosto.

― Eles não fazem ideia o quanto ignoram.

Tentaria dormir quando chegasse ao hotel. Sabia que sonharia.

― Olhos negros e brilhantes. Intensos... Vivos. ― repetiu para si. Sua face tornou-se rude ante a lembrança.

O homem de boas vestes chegava um tanto desalinhado à recepção do hotel barato. O cheiro de café, álcool e cigarro o entorpecia. Pegou as chaves das mãos da velha e gorda recepcionista, uma mulher de horrível aparência que se apoiava sobre o balcão, sorriu-lhe deixando-o ver as falhas de dois incisivos superiores.

Começou subir as escadas com dificuldade. Lutando com os degraus para que não rangessem tanto e rompessem sob o peso do seu corpo que além de si levava as almas de outros. Suava. E o suor descia espesso por suas têmporas. Estava cansado, a mulher não fora suficiente.

No quarto, um cubículo com pouca iluminação que fedia a urina e mofo, estava seus pertences, que se resumiam a um velho baú e uma valise. O lugar de tão ruim era seguro. Ninguém o procuraria naquele inferno. Sorriu ao pensar nisso.

― Quem procuraria o demônio no inferno? Quem se atreveria?

Lavou suas vestes, tomou um banho e deitou-se na cama, nu e ensopado de água. Antes que o sono chegasse e o dominasse, veio a sua mente o olhar da sua última vítima. Aqueles olhos profundos, olhos negros tão vivos e brilhantes. E seu toque ainda se fazia sentir em sua pele. A vívida lembrança deles ficou em sua mente até adormecer em um limbo mortal.

Amanhã quando a noite cobrisse a cidade novamente com seu lençol de escuridão, e a necessidade se fizesse presente, teria que encontrar outro alguém. Não importaria quem fosse. Alimentar-se-ia da energia de um ser, porém desta vez seria mais cuidadoso. Não olharia em seus olhos...

Nota do autor¹: Tempranillo é uma casta de uva tinta da família da Vitis vinífera, uma das castas mais conhecidas da Península Ibérica. Originária do norte da Espanha, também é muito cultivada em Portugal, onde é geralmente conhecida como Aragonez, ou Tinta Roriz na região do Douro.

Nota do autor²: Este conto é uma adaptação de uns dos trechos do Romance "Sombrios" da mesma autora.


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