A Escolha

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Sempre foi feliz e alegre mesmo em meio a tanta dor e desespero. As crises... Sempre as malditas crises! Quando elas surgiam vivenciava o inferno. A doença estava tomando conta do corpo dele com tal agressividade que por várias vezes pensou se realmente valia a pena o sacrifício que estava submetendo a todos. Era um menino lindo e perfeito, não entendia o porquê de tanto sofrimento e dor.

Não era legal, não era ético, não era nem mesmo humano, mas era a única saída e estava disposta a arriscar, mesmo sabendo que tudo podia ser em vão e terminar sem resultado positivo.

Por um ano e meio esperou um milagre. O que para ela seria a salvação para outra mãe significava a destruição. De repente se viu sem tempo. Ele provavelmente não suportaria esperar mais. As crises estavam mais frequentes e intensas. Só precisava de alguém que não precisasse mais de seus órgãos, alguém que não os usaria mais, alguém que estivesse morto. Era pedir demais isso? Morre-se tanta criança neste mundo, que mal podia existir em querer uma coisa que não serviria para mais nada em uma pessoa e que para seu filho seria o sinônimo da vida? Encontrou-se com o medo várias vezes antes de tomar a decisão. Hoje não tinha dúvidas que fez o certo apenas por pensar

que fazia o certo. Apesar de sofrer, de qualquer forma, já havia se acostumado com o fantasma da perca.

Perdeu muita coisa no ano em que o filho ficou doente. O marido não suportou os desprazeres de ter um filho morrendo e encontrou em outra, uma vida sem sofrimentos. No início vinha ver o filho diariamente, depois passou a visita-lo mensalmente, até que um dia notou que aparecia muito raramente. Algumas vezes quis abandonar tudo, mas o instinto de mãe que teimava em habitar suas entranhas não consentiu, em vez disso optou por uma atitude drástica e sem volta.

Um médico persuasivo e o medo da morte iminente do filho fizeram com que ela se decidisse pelo óbvio. O menino teria um ano, talvez meses de vida. Era preciso ser rápida, não tinha tempo em divagar ideias. Era fazer ou deixá-lo morrer.

E em uma noite em que o ex-marido os visitava, colocou em prática o plano macabro. Seis meses após uma criança nascia com saúde, apesar de tão prematura, precisaria de poucos meses agora. Seu menino teria que suportar só mais um pouco...

Um lindo menino de olhos azuis e cabelos negros como os seus a olhava enquanto brincava com alguns gravetos. O dia alegre e ensolarado, junto a aquela presença infantil, tornava seu sofrimento menos intenso. Olhando a criança, perguntou a si mesma o que a levou tomar a atitude que tomou. Em meio a um sorriso pueril, percebeu que foi o desespero. Pensava que não suportaria viver além dele, que tal fato a mataria. Só não percebeu que sob o destino não se tem controle. Não controlamos o que não nos pertence. E a vida não nos pertence, é algo que nos é emprestado e uma hora ou outra temos que devolver.

A vida da criança prematura urgia ansiosa. Não é fácil de matar aquilo que se recusa a morrer. Não, definitivamente em momento algum pensou que seria tão difícil. Mas tinha de fazê-lo. Era a única chance dada a ela e ao menino de saúde frágil.

"Que inferno! Se fosse se sentir culpada que pensasse nisso depois!" — lembrou-se de ter dito a sim mesma na época.

E um dia, em meio à madrugada que era para ser como tantas outras, o médico ligou solicitando a sua presença no hospital com urgência.

Quando chegou, já estava tudo pronto para a cirurgia. Ela não entendia como, mas o médico manteria viva a criança por mais algum tempo para que não levantasse suspeitas e como era uma criança prematura seria fácil inventar uma desculpa. Ninguém desconfiaria do horror que eles cometeriam naquela noite. O procedimento apesar de complicado seria rápido. A cirurgia tinha que ser feita o mais discreto e rápido possível, o estado do menino tornara-se gravíssimo. Ou eles faziam logo ou de nada adiantaria fazer qualquer coisa. E por mais que lhe parecesse impossível tudo caminhava para dar certo. Logo que fosse possível sairia daquele hospital, enfim com seu filho nos braços como tantas vezes sonhou.

O lugar estava vazio, se lembrava muito bem disso, quase todos dormiam. Algumas enfermeiras cumpriam sua ronda sonolenta e silenciosa, um ou outro segurança caminhava pelos corredores. Tudo agia com normalidade, ninguém podia imaginar o ato que seguiria com seu consentimento. "Maldita fila de transplante!" - não seria necessário nada disso se pessoas aceitassem doar seus mortos. Não haveria este sofrimento, esta angustia e ela não estaria prestes a fazer algo ilegal até mesmo para os homicidas.

"Estamos prontos! Vamos?" — o médico falava já sob a máscara de higiene. De seu rosto só se via os grandes e pesados óculos que usava para corrigir uma hipermetropia grave.

"Prefiro ficar aqui, será melhor." — respondeu quase em silêncio.

"Quer vê-lo?" — perguntou ele fazendo um gesto para entrar em uma sala a seu lado.

Afirmou com a cabeça. Afinal ainda restava em si algo de humano e maternal em seu íntimo.

As crianças estavam deitadas lado a lado, o mais velho a olhava e a chamava com os bracinhos o mais novo a solicitava como olhar. "Que espécie de monstro ela era?". Abraçou o seu filho dando-lhe certeza que daria tudo certo e que logo estariam juntos. À outra criança se limitou a olhar. Não que lhe desejasse mal, só não queria ter apego a ela. Queria deixá-la assim, como estava. Como se fosse uma miragem. Alguém que passa em nossa vida por passar. Tudo parecia tão irreal que duvidava se estava acordada ou dentro de um pesadelo que já durava muito tempo. Porem nada mais importava, esta noite seria o fim de tudo. Ao amanhecer estaria tudo resolvido.

Deixou as crianças e foi para a sala de espera. As horas se negavam a passar como se um anjo maligno segurasse os ponteiros do relógio.

Sentiu-se várias vezes como se estivesse dopada, quase que anestesiada. Não percebia, não via, não sentia...

Mas o tempo passou e como a tudo se encarregou de cicatrizar essas feridas. E da verdade ninguém tem necessidade de saber. Guarda o que aconteceu ela e o médico. Este, o tempo, tão certo guardião de sentimentos, se encarregou de levá-lo para o túmulo junto com o seu segredo.

Sua preocupação maior era consigo própria, afinal as noites que se seguiram a aquela madrugada nunca mais foram as mesmas. Tinha além de tudo uma criança em sua casa. A questão é que com a criança tinha entrado um remorso e culpa sem precedentes. O medo de acusar a si mesma era muito maior do que algum dia pode supor.

A notícia chegou através de uma enfermeira antipática.

O filho morrera!

O espaço ao seu redor girou em turbilhões de sentimentos, não sabia qual trajetória seguir agora. Não estava esperando por isso, nunca se preparou para isso. O médico surgiu logo após para lhe dar as explicações, e sem muitos rodeios, mas mesmo assim sentindo-se um pouco incomodado por conta da situação que também era para ele surpresa.

Enfim tudo se resolveu, os papeis, os avisos. Lembrou-se que avisou a todos menos ao ex-marido. O médico com os tantos conhecimentos que tinha acabou por fazer o que pode para lhe facilitar a vida naqueles dias e lhe era grata por isso a ele e a sua mulher que a hospedou em sua casa quando grávida da segunda criança, pois nunca quis que ninguém soubesse.

Olhou o relógio, já estava na hora de ir embora, três anos haviam passado desde que tudo aconteceu. A criança brinca e corre por entre as árvores e túmulos, para ele nada houve, nem mesmo a cirurgia aconteceu, era muito pequeno. Foi a única saída que viu quando o filho estava perdendo a vida por falta de doador. Do filho morto doou todos os órgãos que estavam sadios, assim, quem sabe, diminuiria a dor de alguma mãe que via o filho definhar e morrer. Tinha lhe restado um recomeço, e com ele uma nova vida estava aos seus cuidados. Nos três anos subsequentes aprendeu a amar o que Deus lhe dera, talvez Ele quisesse mostrar a ela que não se controla a vida, por mais que façamos não está em nossas mãos decidir sobre vida e morte. E que nos é mais inteligente aceitar o que nos é dado de bom grado e sermos felizes com aquilo que nos é permitido ter.

Assim que terminou de fazersuas orações, pegou a criança e deixou o cemitério e o túmulo do filho. Logo anoite tomaria seu lugar e precisava estar no conforto de casa, não arriscaria anoite ali, era tão fria...

Sobre Assassinos e MedosOnde histórias criam vida. Descubra agora