Ele sentiu sua presença. O ar mudava com seu perfume, ficava mais leve. Virou-se e a procurou avidamente com o olhar. Estava muito escuro. As nuvens escondiam a parca luz do luar que teimava em aparecer de vez em quando. Porem nesses intervalos o negrume da noite era tanto que chegava a ser espesso.
Um corvo grasnou em uma das várias tumbas daquele cemitério. Ali, jaziam todos os seus mortos.
"Lugar asqueroso!" — pensou, ao chutar um galho seco
que estava no caminho. E era realmente. Apesar de tudo sentia-se bem ali. Era neste lugar que se refugiava quando queria ficar só.
Olhou por todo cemitério. "Onde ela estaria?" — não conseguia vê-la. Sentia seu perfume muito intensamente, como se estivesse ali a sua frente.
O movimento das asas do corvo provocou-lhe um arrepio estranho, e um frio percorreu sua espinha deixando um rastro de pavor. O que era aquilo que via?
A noite estava estranha, escura e silenciosa. Até mesmo os animais noturnos se recusavam a sair. Apenas aquele corvo tão negro quanto à própria escuridão noturna o seguia. Algo fez movimento entre as folhagens de um arbusto. E um gemido ou grunhido se fez ouvir. Pensou no corvo. Não o viu desta vez.
Ela estava ali em algum lugar. Tinha certeza. Jamais esqueceria o seu perfume. O cheiro da sua carne, o sabor da sua pele.
Ainda era capaz de sentir o calor de seu corpo e sentir a urgência do seu toque. Estava apaixonado por aquela mulher. Se pedisse a ele que fosse embora consigo, ele iria. Não lhe importava mais nada, nem seus amigos, sua mulher, seus filhos. Estava disposto a se perder de vez em seus mistérios.
As folhas do arbusto moveram-se novamente e outro grunhido cortou o silêncio da noite.
Parou.
Fitou o corvo, este moveu a cabeça como para lhe chamar a atenção a alguma coisa que não compreendia. Voltou sua atenção para as folhagens.
"Jasmine!" — chamou.
Sua voz ecoou no silêncio da noite e o próprio silêncio obteve como resposta. Enroscou seus pés em raízes que se espalhavam pelo lugar sem pedir licença aos túmulos.
"Maldição! Apareça!" — exclamou. Ela tinha marcado aquele encontro ali pra que? Por quê?
Não deu muita importância para o fato, logo sabia dos rumores sobre os costumes estranhos que a doce mulher possuía. E pôde constatar um grande número deles em suas noites de puro êxtase.
Ela é uma mulher diferente. Muito mais interessante que qualquer uma que já tinha cruzado o seu caminho. Suas qualidades iam muito além do físico esguio, suave, feito de curvas perfeitas. Uma mulher inteligente como poucas, falava três idiomas e dominava assuntos da política ao bordado com maestria. Perfeita! Como tudo que pudesse vir dela. Por isso não se importou muito com o lugar escolhido para mais um encontro.
Algo no arbusto se moveu novamente.
"Jasmine!" — usou um pouco mais de autoridade em sua voz agora. Estava perdendo a paciência. Afinal já a esperava por duas horas. Mais um pouco e amanhecia.
"Jasmine! Se não aparecer agora, irei embora!... E digo a verdade." — ordenou desta vez quase sorrindo. Ela estava brincando com seu desejo em possuí-la.
Caminhou em direção ao arbusto. Animal, fantasma ou Jasmine agora descobriria a natureza do movimento.
Neste instante há poucos metros viu surgir do emaranhado de folhas um homem. Não podia definir suas feições por que a escuridão não permitia, mas viu algo comprido e longo na mão direita e na outra segurava um objeto que não distinguiu de pronto. Algo que da base superior pendia... Cabelos?
Longos e negros cabelos como a maldita noite pendiam de uma cabeça que já lhe era conhecida.
O homem arremessou a coisa em sua direção que veio parar em seus pés fazendo com que seu corpo em um ímpeto de asco desse um passo para trás. A expressão do rosto clamava por socorro, pedia por clemência. A boca que há poucas horas havia acalentado seu desejo agora se deformava em um grito mudo, os olhos que possuíam um brilho tal que eram capazes de ofuscar a alma de um anjo, jaziam estáticos a fitarem em sua direção o vazio.
"Tome, é sua. Se quiser o resto, as folhagens escondem. Vá buscar! Pois será só isto que lhe caberá desta vadia." — O homem começou a afastar-se com passos firmes e lentos.
Seu estômago embrulhava, suas mãos suavam, seu cabelo pesava em sua cabeça, suas pernas lhe faltavam. Um sabor amargo subiu à sua boca misturando-se ao medo que sentia. Por um instante supôs desfalecer os sentidos. O rosto da mulher que amava parecia uma má formação feita de cera.
Por quê? O que acontecera? Quem era aquele homem? A revolta lhe foi tão grande que m
esmo já há uma distância considerável se fez ouvir ao estranho.
"Quem és tu maldito?" — No mesmo momento arrependeu-se de ter indagado.
O homem parou sua caminhada torpe e virou-se num movimento lento e rouco.
"Sou o que a amou mais que a própria vida, aquele que a tirou de uma vida de entregas, dando-lhe fortuna, conforto e amor. Alguém que existia por ela. Alguém que seria capaz de qualquer loucura dentre as mais sórdidas somente para satisfazer seus caprichos. E que como paga deu-me a visão de seus encontros com os mais variados homens. Ahh! Pensou ser o único? E por amá-la tanto me neguei a importar. Até o dia em que me disse a sorrir que iria embora com um de seus amantes. Então, deixei que o ódio me dominasse e pensei em acabar com o desgraçado que roubou a minha vida. Mas percebi a tempo que estava errado. Ninguém a roubou de mim e sim ela se dera a outrem e seria assim indefinidamente. Descobri que fugiria esta noite, segui e subjuguei-a. Dei-lhe a paga que mereceu. Retribuí seus atos tão fielmente quanto ela o fez com os meus.
Posso dizer que estamos iguais. A diferença é que a matei só uma vez, ela o fazia todos os dias comigo." — O desconhecido virou-se tão silencioso e lento quanto o pesado ar da madrugada e continuou a sua caminhada sem rumo.
Para ele o horror havia tomado uma proporção sem precedentes. Subiu em seu cavalo e voltou para casa em tal velocidade que por vezes, na ânsia de fugir de si mesmo, feriu o garanhão que montava.
Não se sentindo digno da mulher que lhe tinha amor, deitou-se em um dos quartos vagos de sua casa. Precisaria mais que dias para digerir tudo que sentia agora.
O sono não vinha e o sol logo despontaria no horizonte. Com isso surgiu em seu coração uma esperança de sepultar em sua mente os acontecimentos noturnos. Precisava esquecer e perdido em meio as suas divagações ao virar-se na cama sentiu o abraço gélido de um corpo decapitado.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Sobre Assassinos e Medos
HorrorEste é um livro que reúne alguns contos. Os quais narram sobre o íntimo, o medo e assassinos imperdoáveis... ou não! "Não separe com tanta precisão os heróis dos vilões, cada qual de um lado, tudo muito bonitinho como nas experiências de química. Nã...