Canção do Umbral

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O vento soprava forte entre as árvores indicando que o inverno já se fazia presente, apesar do tom outonal que durante o dia a floresta apresentava. Suspirava toda vez que sentia a brisa gélida tocar a sua pele, mas sentia-se impulsionada a atender o chamado. A música era tão envolvente e aquecedora que podia ser ouvida a longas distâncias com notas que eram perfeitas, de tal forma que jurava poderem ser palpáveis.

Não tinha medo. O amou desde o primeiro instante que o viu, soube ali que morreria por ele, mesmo que ele fosse o seu algoz.

A noite não estava tão escura quanto esperava e as sombras a circundavam. O ser, ao vê-la, sorriu lindamente. Ela era o amor de sua vida, aquela que esperou por anos. Durante séculos ele procurou e esperou por ela. Jurou para si mesmo, por tudo que já acreditou um dia, que jamais a prenderia, não a levaria junto de si. Mas vendo-a assim tão linda, pronta a entregar-se a ele sem se preocupar com sua monstruosidade, não era mais dono de suas certezas. Seu coração encheu-se de dúvidas.

"E se ela estivesse ali para negá-lo ou traí-lo? Se não o amasse? Podia estar com medo..." — Em sua consciência sabia que fisicamente não. Era muito jovem e belo para alguém o temer. Sua beleza exterior o tornava agradável aos olhos de quem o visse. E além, ela o conhecia, inexplicavelmente ela conhecia seu mistério, seu segredo. Soube o que ele era no mesmo instante que o viu. E mesmo assim o amou.

"Ou será que apenas sentiu? Quiçá ela não tenha noção do que ele é na realidade. O amou por sua beleza e encanto, mas não em sua essência?"

Seu âmago se corroeu ante estes pensamentos. Pela primeira vez em Eras intermináveis sentiu medo... Medo de perder aquilo que nem mesmo veio a ter: A mulher, o amor, a liberdade...

Era isso que, além de tudo, ela significava: "LIBERDADE!" — gritou em pensamento.

"A culpa?"

"Aqui estava ela"

De tempos em tempos penetrava-lhe a mente. Sabia que era sua, por direito, uma fração de vida a cada alma que aprisionava.

A canção que criava nos umbrais, embriagava todos que a ouvissem. Porém, com ela não foi assim. E no desenfrear dos sentimentos que o avassalaram entregou a ela sua alma e seu coração.

Possuindo a maldição eterna, seu destino era aprisionar os que não mereciam viver. As almas que tomava, em grande parte, nem o inferno as queria, mas isto não o tornava melhor, sua atitude não deixava de ser a de um assassino. Muitos eram infanticidas, pedófilos, matricidas... E existiam também aqueles que usavam de má fé levando outros a erros incorrigíveis, deleitando-se ao ver a imundícia alheia em que foram coadjuvantes. Ah! Mas talvez nenhum desses fosse mau de fato, na grande maioria existia o fator do ambiente em que foram criados: pais omissos, mães promíscuas, amigos torpes, drogas, caráter fraco... Mas não maldade. Os de espírito puramente mal eram melhores. Seu prazer era maior quando aprisionava uma alma má e os vários anos acrescentados a sua já longínqua existência o tornava quase um imortal. Mesmo sabendo que livrava o mundo desses seres infames, sua culpa não diminuía. Isso não o tornava melhor que qualquer um deles, porque como eles, também sentia prazer em seus atos.

Nunca tocara a mesma melodia. De quinquênio em quinquênio perambulava pela terra destilando sua melodia infernal, a cada cinco décadas apenas uma melodia seria tocada, a cada meio século a terra ouvia o seu chamado e os maus rendiam-se a ele.

Por mais de mil anos recusou-se a condenar alguém a carregar seu fardo. Fardo este que ele mesmo atraiu para si, com seus desejos impudicos. Mas agora ela existia. A dona de seus sonhos em eternais desejos contidos. Precisava encontrar alguém que pudesse continuar a fazer o seu infausto trabalho.

Ela parou em frente ao músico. Era perfeito! De seus quase dois metros de altura a olhava com tamanha intensidade que o sentia devorar sua vida com seus pensamentos.

Colocou em dúvida, por instantes, se poderia corresponder a um desejo tão profundo como esse. Logo a mesma dúvida se dissipou. Afinal, não seria difícil amar alguém como ele. Seus cabelos negros azulados, seus olhos de um verde esmeralda translúcido, sua pele branca e suave, era impossível imaginar que um homem como aquele, de traços tão masculinos, dono de uma beleza incomum fosse capaz de ser o destruidor de tantos seres.

Tocando o rosto dela com as pontas dos dedos como se tivesse medo de ferí-la percebeu que cedia ao seu toque. Teve vontade de sujeitá-la a si ali mesmo, não suportaria a distância de seus corpos por mais tempo. Levantou-a em seus braços e a levou para dentro da velha casa.

Lá, apenas algumas lamparinas iluminavam o ambiente. Deitou-a em uma cama antiga, limpa e perfumada.

O toque e o olhar dele a enfeitiçavam, mais que sua própria canção.

"É linda. Tem certeza... Que quer a mim?"— fez a pergunta lentamente. O medo da negativa invadia sua alma. Mas era necessário ter a certeza. Não poderia tomá-la sem que estivesse certa do que aconteceria com ambos depois.

"Após esta noite, será minha. A mim pertencerás. Não só seu corpo, mas sua alma, seu coração... Entende isso?"

"Sim. O meu coração já é seu desde o primeiro instante que o vi". — tinha a voz sonora e trêmula.

Abrindo seus braços para recebê-lo, abraçou-o e com um desejo promíscuo e insano se entregou a ele...

A alvorada já era próxima quando levantou para poder cumprir o destino dos dois. Por um instante a observou em seu sono. Percebeu que não seria capaz de fazer com ela o que fazia há tanto tempo com outros.

Como uma sombra pesada e opaca, iniciou uma melodia em seu violino; esta era única, feita exatamente para aquele momento. Ele havia imaginado este instante muitas vezes, mas nunca pensou que seria tão difícil e doloroso. Pelo contrário, pensou que seria um alívio, afinal teria paz.

"Paz, alívio..." — Seria pedir demais para alguém que já causou tanta dor e sofrimento à humanidade? Um sorriso amargo mesclou-se às lágrimas que escorriam pelo seu rosto enquanto fitava a mulher. A música entrava em seus poros, não

sentia dor física, apenas a dor que a separação lhe causava, a dor que a muitos fez sentir...

A mulher acordou feliz ao som dos pássaros. O sol banhava o quarto por várias frestas e um calor cálido e aconchegante a envolvia. Procurou com o olhar pelo homem que a amava. Estava sozinha. Apenas o violino é o arco estavam deitados ao seu lado. Olhando o instrumento, entendeu que ele já tinha partido. No entanto, ao segurar o instrumento em suas mãos e ciente do poder que lhe fora dado, se negou a cumprir o prévio acordo. E sem coragem de se juntar a ele, tocou algumas notas no instrumento diabólico!

Saindo em busca de almas cruéis...

Sobre Assassinos e MedosOnde histórias criam vida. Descubra agora