O Porão

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16 de julho de 2008

O calor tornava a noite insuportável. Apenas uma brisa passava de vez em vez inundando toda a casa do odor que emanava do pequeno córrego, mescla da decomposição de matéria orgânica e lama apodrecida. A transportadora havia atrasado e os móveis só seriam entregues na próxima terça-feira. Teria que esperar uma semana se quisesse dormir em minha cama.

"Pois bem, neste caso o que fazer?" — Apenas minhas roupas estavam no porta malas do carro e nada mais. Frio não passaria, até porque estamos em pleno verão. Resolvi bisbilhotar os cômodos e ver se encontrava algum colchão esquecido. Nada, todos os cômodos estavam vazios. Por fim faltava o porão, desci até lá, onde várias quinquilharias se amontoavam, mas não vi nenhum colchão. Havia em um canto uma mesa onde algumas canetas, lápis e papeis se encontravam em perfeita desordem. Peguei alguns lençóis e cobertores que me serviriam de cama ao menos por esta noite. Um arrepio, uma sensação estranha me sobreveio ao me aproximar da mesa. Pude notar um texto escrito em uma das folhas. Subi com os lençóis e algumas folhas nas mãos. Antes, porém, dei uma olhada pelo ambiente e percebi que algumas tábuas do assoalho estavam soltas.

Deitando em minha cama improvisada. Comecei a ler os textos que trouxe do porão. A grande maioria eram poesias. Muito boas por sinal. No entanto, um escrito me chamou atenção: Uma carta sem destinatário.

16 de agosto de 1988

"Espero aqui não chocar os mais sensíveis e peço desculpas se tudo o que eu vos escrevo lhes parecer sem sentido ou deturpado. Sempre que me lembro dos acontecimentos daquele inverno tenho a nítida sensação de perder o pouco da sanidade que consegui preservar a muito custo

Apesar da insistência da minha esposa em não comprar a casa, o fiz com a certeza de estar realizando um ótimo negócio em tempos difíceis. Afinal, não é todos os dias que se compra uma chácara há seis quilômetros da cidade pela bagatela que estava pagando. A vizinhança era boa e mantinham uma distância satisfatória, podendo assim preservar a nossa privacidade. Estávamos casados há seis anos e não tínhamos filhos, por decisão mútua. Acabamos a faculdade quase que ao mesmo tempo e estávamos empolgados com o trabalho. No início fui trabalhar no consultório médico do meu pai, enquanto ela lecionava o ensino fundamental para crianças em uma escola municipal. Além disso, tínhamos a renda do aluguel de algumas casas herdadas após a morte de minha mãe.

Apesar da falta dos filhos estávamos felizes com o casamento, nos mantínhamos financeiramente bem com nossos salários e economizávamos o dinheiro dos aluguéis. Assim conseguimos dinheiro suficiente para comprar uma casa. A oportunidade de adquirir a chácara surgiu por acaso, ainda morávamos na casa do meu pai. Então um dia, vi o anuncio da chácara nos classificados, fui até lá sozinho e me apaixonei pelo lugar de imediato. Isadora não quis no início por achar distante da cidade, encontrou no fato de ser uma casa velha onde ninguém morava há muitos anos o motivo de estar sendo vendida tão em conta. Imaginou que teríamos um grande trabalho com reformas e restaurações do imóvel que provavelmente estava há muito desgastado. Esta primeira impressão mudou quando viu a casa, como eu, encantou-se pelo lugar. Conversamos e em uma semana a chácara era nossa. Isadora parecia feliz, não demorou muito estava envolvida com a decoração e o jardim, planejou cada detalhe com muita dedicação e carinho.

No início do outono nos mudamos. Foi quando tudo começou. Alguns dias depois de nos instalarmos na nova residência o 'clima' mudou. Como se a energia boa que emanava da chácara tivesse se convertido em algo espesso e frio. Isso nos afetava com uma força incontrolável. Estávamos estranhos um com o outro e hoje percebo que com os outros também não estávamos nos relacionando como de costume. Parecia que não gostávamos mais das pessoas. Não sei dizer exatamente o que aconteceu.

Sobre Assassinos e MedosOnde histórias criam vida. Descubra agora