Contradizendo todas as minhas expectativas de uma noite horrível, os cuidados da irmã Agnes me garantiram uma ótima noite de sono. Acordei ao primeiro toque do sino com o corpo todo dolorido mas com o espírito em paz.
O trabalho do dia transcorreu sem sobressaltos, o chá aparentemente ficou aceitável pois a Matriarca não fez nenhum comentário.
O maior problema do dia foi a quantidade de serviço burocrático que fui obrigada a fazer sentada. Era bastante incômodo mas funcionava como um incentivo para cumprir as tarefas com empenho.
A cada vez que eu me sentava, a dor me lembrava dos meus deslizes e da minha fraqueza. A cada lembrança eu reforçava minha convicção e minha confiança no caminho que eu tinha pela frente.
Ainda assim eu tinha certeza que não seria fácil. As minhas lembranças também acendiam aquele fogo insistente que eu tinha tanta dificuldade de manter sob controle. E não adiantava eu pensar no castigo e na Matriarca ordenando que eu me controlasse, aquilo só fazia acender mais. O jeito era focar no trabalho e torcer para passar.
Conforme eu fui assimilando tudo o que eu vivi desde que cheguei ao convento, me dei conta que certamente não seria a única vez que eu enfrentaria uma punição como aquela e que eu também não era a única a recebê-la. Lembrei da outra noviça com dificuldade de sentar e das cicatrizes e hematomas no corpo da irmã Brígida.
O primeiro dia foi como um tratamento de choque, pouco a pouco as coisas iam se assentando na minha rotina no convento. Com o tempo até as outra noviças acabaram se abrindo, deixando de lado o ressentimento por eu ter chegado e conquistado uma posição de honra logo de cara. Descobri que ser destacada para o serviço particular de alguma das Senhoras era uma meta buscada por muitas das irmãs, não só as noviças. Meta essa que muito poucas alcançavam.
Só que o sonho era cheio de espinhos, eu estava a serviço exclusivo da mulher mais temida e respeitada do convento. As palavras eram sempre frias, o olhar era sempre duro, a mão era sempre pesada e o cordão de couro saía da cintura para deixar marcas no meu traseiro com frequência.
As vezes eu tinha impressão que ela arrumava qualquer pretexto só para garantir que eu não ficasse muito tempo confortável. Em uma determinada semana eu fui castigada tantas vezes que o cordão de couro precisou ser usado em outras partes do meu corpo.
Todas as vezes sem exceção, a minha maior luta era contra aquele fogo que ela despertava em mim, que invadia meu corpo impiedoso insistindo em tentar macular minha virtude. Nem sempre eu era capaz de mantê-lo sob controle. Sempre que o deslize acontecia, eu era obrigada a abrir as pernas para receber a devida punição.
A irmã Agnes se desdobrava com cuidados e unguentos mas eu passava a maior parte do tempo com o corpo coberto de marcas púrpuras.
A orientação da irmã Brígida seguia sendo meu maior ponto de apoio. Era a pessoa que eu realmente sentia como irmã, mais até do que minhas irmãs de sangue que pareciam ter sido deixadas pra trás há décadas.
Por conta do serviço burocrático que eu fazia para a Matriarca, eu passava bastante tempo na biblioteca. Aprendi a entender e apreciar a arte que saia das mãos da Senhora das Iluminuras, da irmã Brígida e das outras irmãs copistas. Não era a toa que as encomendas vinham até de terras distantes.
Certo dia, tínhamos uma nova encomenda do Monsenhor. A Matriarca tinha solicitado que fosse entregue logo cedo e ordenou que eu excepcionalmente servisse o almoço para os dois na sala privativa que ficava ao lado do escritório dela.
Dessa vez não teve trapalhadas nem atraso. Os pergaminhos foram entregues no horário e o almoço providenciado com todos os detalhes.
Entrei na sala com segurança trazendo as bandejas e servi os dois com desenvoltura e respeito protocolar.
Até que o Monsenhor acidentalmente derramou uma taça de vinho e eu fui chamada para limpar.
Naquele momento, debruçada sobre a mesa muito perto de onde ele estava eu me lembrei do quanto ele era atraente. Nossos olhares se cruzaram mais uma vez por um breve instante e eu corei. Com o rosto em chamas acabei me atrapalhando com o pano e derramei mais vinho, dessa vez no colo do Monsenhor e no chão.
A confusão só aumentava. Por muito pouco o vinho não foi parar nos pergaminhos em cima da mesa. Enquanto eu tentava desfazer o estrago, vi de relance a incandescência nos olhos da Matriarca.
Eu nunca tinha visto tamanha fúria.
Fui dispensada com a ordem de enviar outra noviça para terminar o serviço do almoço. Antes que eu saísse recebi uma última ordem, as palavras mais geladas do que nunca.
- A senhorita está dispensada das orações da noite. Quero que venha até aqui e trate de limpar as manchas de vinho do chão. Terminando, mantenha-se de joelhos e me aguarde. Ao fim das orações eu venho ter com a senhorita.
Eu mal consegui murmurar "sim Senhora" antes de sair em direção a cozinha em uma corrida desabalada e turvada pelas lágrimas.
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A Guardiã da Virtude
FantasyUma jovem noviça vai em busca de seu destino em um convento cheio de mistério e provações. É dentro dela que precisa encontrar as forças verdadeiras para prosseguir.