Capítulo 19

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Dando as costas para as duas mulheres ajoelhadas, a Matriarca se dirigiu ao coro com meu libreto nas mãos.

- Irmãs, hoje duas mulheres serão levadas ao êxtase da elevação divina. Ao fim dos cânticos desse libreto, uma delas deixará de ser noviça e passará a ser mais uma irmã dessa congregação. Alguém se opõe a ordenação da noviça diante de nós?

Supostamente a pergunta era apenas protocolar, mas eu não consegui controlar a insegurança de imaginar alguém se opondo naquele momento. No silêncio da espera eu buscava acalmar a respiração e me preparar para o que viria. Estava chegando o momento.

- Que comece a elevação!

Era o momento de soltar a mão da irmã Brígida. Eu desejei que pudesse haver um jeito de continuarmos fisicamente unidas, mas sabia que não era possível. Senti a dor da mão dela soltando a minha e roguei para que o nosso vínculo fosse forte o suficiente.

Fomos amarradas pelos pulsos, uma de frente pra outra. As cordas puxadas até o ponto das pontas dos pés mal tocarem o chão.

Eu era um amontoado de medo e insegurança. De frente pra mim a expressão serena da irmã Brígida dizia, "confie".

A Matriarca e a Senhora das Iluminuras aguardavam lado a lado em frente a mesa até que cada uma recebeu das mãos da mais velha das anciãs um longo chicote de couro negro.

Cada uma delas, com seu chicote em punho, se aproximou de sua serviçal levando o cabo do chicote aos lábios da mulher que tinha nas mãos.

Segui o exemplo da irmã Brígida e beijei o cabo do chicote da Matriarca. Ao cruzar os olhos com os dela eu vi o fogo mais profundo e selvagem que alguém poderia ver.

O fogo dela acendeu o meu de forma irremediável. Tudo o que eu tinha lutado tanto para manter sob controle desmoronando dentro de mim como uma avalanche. Minha respiração mudou na hora. Nem tinha começado e meu corpo já estava em chamas.

Não pude ouvir as palavras que a Senhora das Iluminuras disse para minha irmã, mas as que eu ouvi da Matriarca me tocaram fundo.

- Hoje eu te permito o êxtase. É com ele que a senhorita será consagrada.

- Obrigada Senhora.

Virando-se para o coro, a Matriarca deu início ao ritual.

- Que se iniciem os cânticos!

O libreto deveria ser inteiro recitado e durante os cânticos eu e minha madrinha receberíamos o suplício das mãos de nossas Senhoras.

Logo nas primeiras notas eu vi o chicote estalar no corpo curvilíneo da irmã Brígida, o gemido profundo e a expressão dolorida me acertando tão forte quanto a minha primeira chicotada, que me fez sentir ser rasgada em duas.

Mais uma chicotada nela e depois uma em mim. Nós duas compartilhando o sofrimento para que eu não trilhasse sozinha o caminho da elevação. A irmã Brígida seria minha guia até o auge do êxtase.

As duas senhoras seguiam cumprindo suas tarefas obstinadas, alternando os golpes seguindo o ritmo dos cânticos que se elevavam em força e volume a cada estrofe.

Meus ombros e pulsos doíam como se estivessem sendo arrancados do meu corpo. A carne em chamas sentia cada uma das chicotadas como se tivesse acabado de acontecer, as novas caindo cada vez mais doloridas conforme o corpo ia sendo tomado pelos vergões e pelo sangue.

Livre para sentir pela primeira vez na minha vida, eu deixei que o vulcão me tomasse sem restrições.

As minhas sensações excediam meu corpo e eu parecia sentir o fogo na carne da irmã Brígida tanto quanto sentia na minha. As vezes nossos olhares se cruzavam e víamos o interior uma da outra.

A cada subida dos cânticos o êxtase se intensificava e minha percepção se expandia. Eu sentia também a elevação das duas Senhoras, entregues tanto quanto nós ao fluxo inexorável que nos levava ao êxtase divino.

Ao fim, eu sentia também cada uma das irmãs do coro. O vínculo eterno que existia entre todas as mulheres ali presentes abriu um elo e elas me aceitaram como uma delas.

O fim dos cânticos era pura catarse sonora, potencializado pelo som das chicotadas e dos gritos de duas mulheres que se aproximavam do limite do esgotamento. No auge do êxtase os cânticos cessaram triunfantes.

Estava feito. Ainda perdida na elevação eu ouvi a voz da Matriarca soar como se estivesse a léguas de distância.

- A partir desse momento, a antiga noviça será chamada de irmã Clara.

Eu não vi acontecer, mas soube pelo relato das irmãs que a Senhora das Iluminuras recolheu em um pequeno frasco um pouco do meu sangue e do da Irmã Brígida. Com a mistura dos dois ela fez a tinta que foi usada para escrever meu novo nome no libreto, que agora está arquivado em uma das prateleiras da biblioteca, junto com os de todas as mulheres que já passaram pelo serviço no convento.

Quando acordei dias depois na enfermaria, eu também tinha recebido das mãos da habilidosa Senhora a minha marca no pulso e estava pronta para a minha nova vida.

FIM

A Guardiã da VirtudeOnde histórias criam vida. Descubra agora