O bidê

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AVISOS (PERTINENTES PARA TODA A HISTÓRIA):  Consumo de drogas e outras substâncias, linguagem imprópria, menções a situações de vulnerabilidade psicológica/física, conteúdo sexual explícito.



O nariz de Seokjin começou a queimar muito antes do pó penetrar sua narina esquerda e o quarto começar a rodar. Daquela vez ele havia errado a mão. Não se lembrava exatamente onde havia conseguido aquelas 20 gramas, mas a qualidade não deveria ser uma prioridade porque pôde jurar sentir um gosto estranho de paracetamol na boca por um momento e um pouco de pó de vidro cortar seu canal respiratório por dentro, o que deixou uma linha rosa correndo através da porcelana branca da pia do banheiro apertado de seu flat suburbano quando espirrou.

Num rompante, lembrou-se do aluguel. Ergueu os olhos elétricos e cansados, milhões de frascos de shampoo se acumulando na prateleira de vidro à altura do porta-toalhas. O último comercial havia sido... Há uns quatro, cinco meses? Todos aqueles shampoos deveriam estar muito perto de passar do prazo de validade. Pensou em ligar para Namjoon, porém o mais longe que conseguiu chegar foi sobre o assento fechado do vaso sanitário, onde cruzou as pernas e observou os pequenos cristais de luz estranhíssimos reluzindo no piso negro de seu banheiro. Estava começando.

Suas veias estremeceram ao redor de seu corpo, apertando e soltando. Suas pupilas dilatadas, negras como pequenas imensidões galácticas com a efervescência de uma supernova. Seus lábios se entreabriram de prazer e seus pulsos enrijeceram, os dedos firmes, retorcidos uns entre os outros. Seokjin adorava aquilo mais do que qualquer coisa. Seokjin precisava daquilo.

Mas ele havia errado a mão. Se lembrou disso quando sentiu o lado esquerdo do próprio crânio arder contra a torneira do bidê. Por que ele tinha um bidê? O bidê sempre esteve ali? Outra linha em rosa vívido correu pela porcelana branca e ele assistiu seu caminho denso até o ralo antes de apagar completamente.

— Se você não parar, eu juro, você vai morrer – a voz de Namjoon vinha de algum lugar do outro lado no quarto. Seokjin abriu os olhos e um saquinho transparente vazio com resquícios do que parecia talco para bebês dançou acima de seu nariz – Onde você conseguiu essa porcaria, Seokjin?

— Namjoon, eu ainda não acordei. Não me faça perguntas – gemeu, sua voz soando como um prospecto de si mesma – Ai, minha cabeça! O que aconteceu?

— Você encheu esse seu cu de coca, foi isso que aconteceu. A porta estava destrancada e você estava sangrando no bidê quando eu cheguei. Fiz um curativo, mas temos que ir ao hospital.

Kim Namjoon era um homem alto e austero a maior parte do tempo. Ele se movia como um modelo, enfiado em suéteres pretos de gola roulé, os dedos sempre se emaranhando no cabelo cinza em completa frustração todas as vezes que visitava o apartamento de Seokjin.

Seokjin gostava de pensar que Namjoon era seu melhor amigo, empresário e empregado doméstico. Talvez mais os primeiros do que o último. Namjoon recolhia as garrafas de vodca de maçã verde, limpava a mesinha de centro dos resquícios de pó e passava aspirador no carpete, mas fazia isso apenas para manter tranquila a própria consciência.

— Eu não quero ir ao... Ai! – tentou dizer, percebendo que se mover doía bem mais do que geralmente costumava doer – Não quero ir ao hospital!

— Eu não queria ter te conhecido, mas o mundo não é uma fábrica de desejos – disse Namjoon, esticando-se para recolher uma toalha molhada pendurada no ar condicionado – Você precisa de pontos, levanta dessa cama agora ou eu ligo para a ambulância. Os paramédicos vão ficar muito curiosos sobre o que o modelinho andou fazendo para abrir a cabeça num bidê.

Seokjin levantou com dificuldade, sentindo a cabeça girar em todas as direções. Podia sentir a carne aberta do crânio arder antes de entorpecer completamente, de olhos fechados.

Namjoon costumava adorar tê-lo conhecido quando ele tinha 17 anos e Seokjin 19. Eles andavam a esmo em um carro velho de pintura descascada e tocavam naquela banda ruim em bares meia-boca, se drogavam juntos com frequência e faziam sexo com mais frequência ainda. No entanto, Kim Namjoon parecia tê-lo superado de forma que quase magoava assistir, se ele por acaso ainda não fosse a pessoa de quem mais precisava em toda a sua vida.

Ele tinha agora seus 28 anos e era dono de uma rede de estúdios de fotografia e uma agência de modelos. Era o mesmo homem alto, estiloso, com pernas bonitas e olhos selvagens, mas era um empresário agora, apaixonado pelo emprego e completamente louco pelo namorado, Park Jimin, um dançarino que, inclusive, havia acabado de abrir uma academia de dança em Gangnam. A Tiny Dancer teve uma grande inauguração, mas Seokjin não conseguia se lembrar direito dos detalhes por causa do champanhe e daquelas duas carreiras seguidas na pia de mármore escuro do banheiro masculino.

Às vezes, quando estava alto o suficiente para não ser capaz de estancar o fluxo de seus pensamentos, Seokjin ainda pensava ser apaixonado por Namjoon e se imaginava no lugar de Jimin. Sóbrio, limpo, equilibrado, talentoso. Às vezes ele chorava um pouco, deitado sobre o carpete observando as luzes coloridas se movendo em câmera lenta no teto, por ser vazio de tudo. Um demônio de neon cuja beleza havia transformado em um corpo até o topo de vícios, complexos e solidão.

Então, simplesmente passava, como se nunca houvesse acontecido.

O carro de Namjoon estava frio e aquilo fazia sua cabeça doer ainda mais. Ele abraçou o próprio corpo envolvido em um sobretudo cor de rosa que lhe alcançava os joelhos.

— Seu carro está com um cheiro diferente.

— Jimin dirigiu ele ontem – respondeu Namjoon, o perfil rígido se desdobrando em um sorriso que nasceu no canto de seus lábios – Deixa o cheiro dele em tudo.

— É bom.

— É, sim.

— Estamos mesmo indo para o hospital?

— Você tem um corte na cabeça, precisa mesmo de uma limpeza correta e pontos, Seokjin. Estou fazendo isso porque me preocupo – suas sobrancelhas se uniram suavemente. Preocupação. Era só o que Seokjin causava em Namjoon – E eu continuo querendo saber onde você conseguiu aquele lixo.

- Um colega de trabalho. Tiramos umas fotos juntos ontem para a Felicitte, a grife de roupas, você sabe. Nós fomos tomar um drink e ele me mostrou o que tinha e me ofereceu. Eu... Namjoon, você me entende.

— Eu te entendia quando morávamos num bar e escovávamos os dentes com vodca pura. Hoje em dia você é um mistério pra mim – ele respirou fundo antes de continuar – Escuta, eu não sou seu pai, eu não vou ficar te dando uma bronca a cada vez que eu te pegar se enchendo de droga, estou só dizendo que não compreendo porque um modelo tão incrível e promissor como você prefere jogar tudo fora.

— Eu... É difícil pra mim, Namjoon.

— Ah, então agora você admite que é difícil se controlar? Eu te ofereci ajuda profissional um milhão de vezes, Seokjin, mas você preferiu fazer um buraco na cabeça a aceitar.

— Chega. Eu quero descer do carro. Agora.

Namjoon suspirou e travou as portas, fazendo uma curva decidida para fora da avenida e pegando um atalho mais tranquilo.

— Não estou falando de te internar em uma clínica, não estou falando disso, ok?

— Existe outra opção para drogadinhos como eu, Namjoon? Me diz aí, vai me arranjar uma enfermeira? Prisão domiciliar?

— Existe um cara. Descobri na internet e visitei a página dele e o escritório. Dizem que ele é o melhor acompanhante de sobriedade da cidade – falou Namjoon.

Retirou uma das mãos do volante, os olhos ainda atentos ao trânsito, abriu o porta-luvas e retirou de lá um pequeno cartão de papel couché colorido em dégradé sutil de branco e azul. Seokjin estreitou os olhos e os desviou, deixando a mão de Namjoon e o pequeno cartão que ele estendia pairarem no ar pesado do carro.

— Uma babá de drogado, então? Pode guardar essa merda pra você, Namjoon, eu nunca vou aceitar uma babá.

Namjoon suspirou e, resignado, aproveitou que Seokjin olhava para a rua através da janela embaçada e colocou o cartão em um dos bolsos de seu sobretudo. Algum dia, ele sabia, Seokjin haveria de achá-lo.

faux fur ;  yoonjinOnde histórias criam vida. Descubra agora