dois

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Quando eu tinha apenas dois aninhos minha mãe e meu pai juntaram nossas coisas na pequena cidade de Boca Raton na Flórida, e fizemos uma grande viagem até o outro lado do país, em Salt Lake City, Utah, por conta do emprego da minha mãe, uma grande empresa — e que ela sempre diz ser um privilégio de trabalhar — cheia de filiais pelos Estados Unidos. Diana sempre sonhou com a estabilidade financeira que ela conseguiu com esse emprego, ela vive pelo trabalho, e foi por isso que nunca paramos em um lugar só. Depois de três anos em Utah, nos mudamos para Detroit. E aí que minhas memórias são mais aparentes. Lembro de que eu tinha cinco anos e adorava essa "viagem longa" que faríamos e que eu finalmente iria entrar numa escolinha e teria histórias para contar sobre um lugar diferente, pois eu era a única da sala que não era originária daquele estado.

Detroit foi o lugar que ficamos por mais tempo pois minha mãe ficou grávida do meu irmão após três anos da nossa chegada. Contando com a licença maternidade e com a espera até meu irmão atingir dois anos pois minha mãe não queria uma mudança tão brusca com um bebê na família e a empresa aceitou perfeitamente bem. Seis anos se passaram no total em Detroit, até irmos para Houston, Texas. Ficamos lá apenas por um ano. Eu não lembro muito coisa, apenas o fato de que as salas tinham poucas crianças, então não tinha muitos amiguinhos e a minha casa tinha um jardim que eu adorava.

Depois disso fomos para Los Angeles. Passei minha pré-adolescência no lugar que todos os filmes se passavam, que todos sonhavam em estar. Foi bem legal meu tempo lá, sempre gostei bastante de praia, tinha muitas amizades, minha escola era ótima e cheia de clubes (e eu participava de todos) e eu amava a casa que possuíamos. Fiquei até meus 15 anos, e quando nos mudamos para o último lugar que eu permaneci antes de estar aqui em Nova York, foi o primeiro grande choque que eu tive em relação à saudades. Antes ou passávamos pouco tempo, ou eu era muito pequena para criar vínculos fortes. Então nunca tinha visto problema algum com as constantes mudanças. Comecei a criar raízes, justo no começo da fase difícil que é a adolescência, e tive que cortá-las. Não que nos dias de hoje seja difícil manter contato com alguém longe de você, mas não é o mesmo. Mas mesmo assim, eu me acostumei bem e até que rápido com a situação.

Eu gostava da sensação de um novo começo. De mudar de ares, de ter tantas possibilidades novas na sua frente. E fomos parar em Indiana, na capital. Comecei e terminei meu ensino médio, fiz amizades, namorei, me estressei com a escola, decidi o que queria fazer o resto da minha vida, tirei um ano sabático, prometi que nunca deixaria nada me prender do que eu realmente queria, prometi que eu faria as coisas por mim mesma e não pelos outros. Foram os melhores anos da minha vida, com toda certeza. Assim que eu me formei, decidi que eu estudaria Astronomia, mesmo com toda a reclamação por parte dos meus pais. Não sei também qual foi a surpresa deles, eu sempre disse que essa era a minha paixão. Meu pai era mais tranquilo em relação à isso, apesar de ainda achar que eu deveria seguir um carreira "convencional", pois ele seguiu para uma área que ele gostava.

Ele trabalhava em restaurantes, na vaga que tiver disponível, até porque nós nunca sabíamos quantos anos iríamos ficar estabelecidos no mesmo lugar, ele precisava aceitar o primeiro emprego que aparecia. Mesmo que nunca tenha sido como o Chef da Cozinha, como ele sempre sonhou. Ele já ficou vezes desempregado e outras até mesmo apenas como o recepcionista. Mas para ele estava bom. Ele recebia uma quantia razoável para ajudar em casa e ainda podia estar num ambiente que lhe agradava. Eu não culpo meu pai por não sair da zona de conforto. Tentar a sorte tendo uma família pra sustentar não é uma opção muito segura, além de que tendo que se mudar à todo momento, impedia ele de no mínimo ter a opção de seguir a carreira que ele queria. Eu me sinto triste por ele, mesmo ele sempre afirmando que é extremamente feliz com o que a vida reservou para ele.

Já minha mãe é outra história. Ela repudia a minha escolha. A sua vida foi difícil financeiramente desde o começo. Ela trabalhava junto com a os estudos desde seus 12 anos para ajudar em casa. Ela estudava demais para conseguir passar com bolsa em uma faculdade boa. E ela conseguiu. Yale. Saber como ela é esforçada e como ela superou tantos desafios me deixa um quentinho de orgulho no coração. Ela conheceu meu pai numa feira da faculdade. Ele não estudava, fazia alguns cursos aqui e ali e viu essa feira como uma oportunidade para ganhar um dinheiro. E foi lá que ele encontrou suas duas paixões: a minha mãe e a gastronomia. Ele cuidava de receber os pedidos e fazer o pagamento da barraca de spaghetti do seu tio. Até que este teve que sair para resolver alguma coisa e ele ficou tomando conta. O macarrão estava acabando e tinha uma fila esperando pela comida. Ele ficou desesperado e seu tio não voltava. Então uma menina que estava na fila percebeu sua agitação e decidiu ajudá-lo. E então ele percebeu que fazer comida trazia uma  sensação estranhamente boa no seu corpo. Assim como estar do lado daquela menina que o ajudou.

Eles namoraram por anos, até que decidiram se casar um ano após minha mãe se formar. Ela não tinha um emprego fixo e muito menos bem remunerado. Não tinha a aprovação de seus pais, que achavam muito cedo para tomar essa decisão. E nem uma casa própria eles tinham. Mas eles não ligaram e se casaram. Os primeiros anos e seguidos do meu nascimento foram bem difíceis para os dois. Meu pai não decidia o que queria de carreira, minha mãe não achava um bom emprego e as contas só aumentavam. E foi ai que o emprego atual da minha mãe entrou em cena. Era tudo que ela desejou desde sempre. Era o que sustentava a família. Era o que fazia ela feliz. Era o que impedia ela de voltar a situação que esteve sua vida inteira. Por isso, as mudanças constantes, as horas extras, e tudo o que vinha com sua nova vaga, eram pequenos sacrifícios que valiam a pena.

Concluindo, ela não queria que eu seguisse a carreira que eu queria por medo que eu acabasse com os mesmo problemas financeiros que fizeram ela sofrer por tanto tempo. Mesmo que Astronomia não era algo impossível de se conseguir emprego aqui no nosso país, com certeza a dificuldade era um que desse dinheiro. É egoísta da parte dela tentar me impedir, mesmo com seu discurso dizendo que fazia isso por mim, mas é compreensível se considerarmos toda sua trajetória. Eu amo a minha mãe, agradeço por tudo que ela batalhou por nós, e me orgulho tanto de todas as suas conquistas e pela pessoa que ela é hoje, mas sou eu que decido a minha vida daqui pra frente, até porque sou eu que vou vivê-la, não minha mãe, nem meu pai.

Analisando toda a minha vida, eu gostei bastante no geral de estar sempre me mudando. Tinha seus aspectos negativos, mas no geral pra mim sempre funcionou tão bem, e conhecer tantos lugares na minha vida foi um privilégio. Eu me acostumei tanto com esse estilo de vida de estar sempre se mudando que no meu ano sabático eu passei dois meses fazendo um mochilão pela América Central e América Latina. Não consegui ficar apenas em casa.

Tranquei minha faculdade por esse ano e juntei todas as minhas economias para conseguir o que eu queria. E hoje eu continuo minha vida aqui. Passeando pelas ruas perto da minha casa, analisando cada loja, cada esquina, cada edifício, cada lugar, feliz com o que esse lugar ia me trazer. Ao mesmo tempo procurando um lugar que me chamasse atenção para almoçar. Até que me deparo com um dos poucos rostos conhecidos nessa cidade.

moonlight ; timothée chalametOnde histórias criam vida. Descubra agora