Compasso do sono

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O fim de semana havia chegado e junto a ele a total indisposição da policial que só saiu de casa aquele dia por muita insistência de Eric e Camila. O destino: o bar que vinha se tornando um refúgio.

- Marcia! – Ouve o chamado do homem e o fita – Nós já chegamos.
Ela sorri sem jeito, tirando o cinto. Os amigos ficam em silêncio por algum tempo.

- Você e Camila... – Márcia começa – Estão...?

Os olhos do loiro ganham um brilho diferente.

- Ela vem sendo uma boa... Amiga. Tem me ajudado bastante nessa transição – Sorri de lado. A mulher lança um sorriso carregado de conjectura, mas nada diz. Quando ele estivesse pronto falaria. Poderia nem ser o que aparentava.

Ela própria estava iniciando uma amizade com a entidade do lado de dentro daquele estabelecimento.
A ansiedade a atinge em cheio só de lembrar neste fato. Não havia tido notícias de Inês desde o último encontro. Até pensou em procurá-la, ou mandar uma mensagem, já que agora tinha o seu número, mas não queria parecer inconveniente.

- Vamos entrar? - Eric pergunta e Marcia concorda com a cabeça.
Foram saudados animadamente pela sereia que trajava um exuberante vestido de paetês. Ficam ali por alguns minutos jogando conversa fora. Os olhos da policial vagavam pelo local vez ou outra em uma busca silenciosa. Quando finalmente encontra o que procurava seu coração paralisa por breves segundos. Inês usava um vestido preto, pra variar, mas esse era diferente. Era mais elegante e adornava o seu corpo tão perfeitamente que Marcia se prendeu ali por mais tempo que deveria. Quase sentiu vergonha das suas vestes. O jeans batido e a camisa social branca.

Toda a beleza daquela visão pareceu aumentar de intensidade quando a mulher se aproxima deles. Cumprimentando-os cordialmente.

Quando fica frente a frente com Marcia, sorri. Os lábios envoltos de um batom vermelho sangue, ajudando a dar evidência aos olhos negros intensos.

- Marcia... – Se prepara para apertar a mão da outra, sendo surpreendida por um beijinho na bochecha.

- Inês...

Eric e Camila olhavam a cena aturdidos. O que haviam perdido?

- Que bons ventos lhes trazem?

- Camila está sempre me apoiando achei justo fazer o mesmo e vir prestigiá-la – Eric diz.

- Eu... Aprecio a boa música e as boas companhias – Marcia responde com o olhar sobre Inês ao final da frase.

- Espero que estejam servidos – Inês começa a se afastar até outra área do cômodo, deixando apenas seu perfume.

Quando Eric e Camila somem em meio o tumulto de pessoas em algum momento da noite, Marcia se vê sozinha com seu drink.

Drink esse que fora completamente derrubado sobre ela assim que uma briga se inicia ao seu lado.

Se levanta rapidamente e suas costas batem em um corpo rígido, se vira podendo ver Inês muito próxima de si. As mãos da bruxa estavam em sua cintura a segurando ali, mas os olhos eram vidrados nos dois homens que param de brigar instantaneamente. Logo alguns funcionários vem tirá-los do local.

Marcia se afasta sem jeito.

- O que você fez?

- Os acalmei. Esse bar não é lugar para baderna – Os olhos da bruxa descem até o busto da outra que cora – Eles fizeram um estrago e tanto na sua roupa.

Só agora marcia para de fato para vislumbrar a camiseta branca levemente transparente. Arrependeu-se no mesmo instante em que pisou fora de casa aquele dia.

- Filhos das puta.

- Eu posso resolver isso – Inês responde em um riso fraco.

Puxa Marcia pela mão até que a mesma começasse a segui-la e novamente o choque se apossou do corpo da mais nova assim que suas peles se tocaram.

Estava em um quarto que nunca havia ido antes. A aparência dos móveis era rústica e a cama parecia ter sido tirada de um palácio da era monárquica.

- Acho que deve servir... – Inês estica a peça em sua direção.

A policial se levanta, pegando a blusa preta. Era um modelo de ombro a ombro com babados em sua gola e com as mangas em um estilo hippie.
Inexplicavelmente começa a sentir um constrangimento sem igual ao começar a desabotoar sua camisa, sob o olhar atento de Inês. Suas bochechas esquentam. Tenta fazer tudo o mais rápido que consegue, soltando um suspiro de alívio.

Era possível se sentir despida, mesmo estando vestida? Por que sempre tinha que se sentir assim sob os olhos da bruxa?

- Ficou bem no seu corpo – A voz arrastada de Inês ressoa atrás de si e Marcia a encara pelo espelho.

- Eu pareço você... Quero dizer, não você de verdade. Bem, o seu estilo. Ah... Você entendeu.

- Algum problema com o meu estilo?

- Absolutamente – Nega com a cabeça – É apenas... Seu.

Inês se contenta com a resposta, não querendo deixar a jovem ainda mais tensa. Tinha outros planos para aquela noite.

(...)

- Então eu acho que é isso... – Completa, colocando mais um salgadinho em sua boca. De volta a saleta. De volta ao vinho, acompanhadas por uma cesta de guloseimas. Elas conversam a alguns minutos. Começara com Inês surpreendendo a outra ao perguntar como havia sido sua semana. O vinho foi o aliado que ajudou a dissipar o nervosismo da jovem que já falava de toda sua trajetória para Inês.

- Só eu falei da minha vida até agora. E a sua?

- Qual delas?

Marcia paralisa por alguns instantes. Quase esqueceu com quem estava falando.

- A que mais gostou.

- Esta.

A policial franze o cenho.

- Sério?

- Por que o espanto?

- É só que... Me parece improvável que esta geração seja mesmo a sua favorita.

- Eu já fui muitas coisas durantes as últimas décadas e presenciei a perversidade dos homens em várias delas, acredite... Essa é uma das melhores. Além de conseguir passar despercebida com muito mais facilidade. Sou apenas a dona de um bar na Lapa, fora de quaisquer suspeitas.

- Bem, isso não é totalmente verdade.
- Acredite, você foi a primeira a querer me prender.

Elas riem juntas.

- É assim que se define? A dona de um bar na Lapa.

- É o novo século não é? Você é o que você tem e faz – Desconversa. Ainda não estava pronta para aquele tópico. Nem ela mesmo havia chegado a uma conclusão. Já fora tantas versões de si mesma que não sabia mais definir quem era.

A policial não tinha noção do que fizera e fazia, mas conseguiu levantar questões dentro de Inês que nem as entidades mais poderosas já haviam conseguido, pois, na maioria das vezes, não se direcionava a cuca e sim a mulher que dividia o corpo com ela.

Sem nada a dizer Inês se levanta indo até uma das prateleiras ali, trazendo consigo um livro.

- O que é isso? - Pergunta pegando o objeto que lhe era oferecido.

- Me diga policial, você já viajou no tempo antes?

- Um diário? – Chuta.

- Eu diria mais que é... Como um livro de recortes. Aí tem boa parte do que já vivi e vi... Está em suas mãos agora.

Marcia corre os dedos pela capa preta envelhecida.

- Posso? – Pergunta e Inês concorda.
Ela abre o livro. A caligrafia impecável da bruxa é a primeira coisa a lhe chamar atenção, seguida por uma das primeiras imagens. Com data, endereço e frases soltas. Descrições e as vezes apenas pensamentos.

Algo ainda rondava a mente de Marcia e a mais velha não tardou em reconhecer do que se tratava.

- Este mundo ainda é perigoso demais para você saber. Não é a hora.

- Obrigada – Sorri fechando o livro sobre seu colo. Um sentimento crescente de felicidade se apossava de seu ser. Inês estava confiando a ela algo que parecia importante e faria jus aquilo – Prometo devolver em breve.

- Ai de você. Se não trazê-lo, eu vou pegar.

- A cuca não me coloca mais medo – Reponde, recebendo um olhar indecifrável como resposta.

Quando saiu de dentro do local que parecia a congelar no tempo, sempre que entrava, viu que Eric havia ido embora e a deixado para trás.

- Grande amigo, você – Ralha sozinha enquanto chamava por um uber.
Sem que percebesse, foi novamente acompanhada em seu caminho, enquanto sua segurança era resguardada.

(...)

- O que está me dizendo, Camila? – Pergunta séria.

- Eu... Não tenho certeza. As águas estão diferentes. Não é físico, não é fruto do efeito humano. É algo mais forte.

Inês apoia as duas mãos sobre o balcão, fitando um ponto isolado a sua frente.

Precisava buscar respostas.

- Precisamos falar com o curupira. Se ele também estiver sentindo algo nas matas... Isso está muito além de nós.

- E o que podemos fazer?

- Além de esperar? Nada... Não há um alvo aqui, e se ele existir, somos nós.

- Mas...

- Eu darei um jantar. Com todos. Chame Eric também. Nós precisamos estar mais unidos do que nunca.

- Todos? Até mesmo...

- Até mesmo aqueles que se perderam no meio do caminho. Posso cuidar disto, não se preocupe.

- Okay... E quanto aos da Vila Toré?

- Chame todos que tenham alguma ligação conosco.

Camila concorda com a cabeça, mesmo achando a ideia um tanto absurda. Aquele jantar prometia.

(...)

Encara a ultima folha do livro, que havia devorado em pouco mais de uma semana. Tratava-se de uma foto da dona dele. Mas não uma foto qualquer, um retrato. As vestimentas remetiam ao século passado e o lugar lhe era familiar, mas não conseguia reconhecer com exatidão. Assim como a maioria das imagens no livro. Os lugares com certeza, ou deveriam ter mudado muito ao longo dos anos ou nem existiam mais.

Suspira ao contemplar a foto por mais alguns minutos, Santa Teresa, 1920. Era a única legenda.

Não havia enviado mensagem antes de ir ao bar aquela noite. Estava ansiosa para devolver o exemplar e falar sobre todas as teorias que havia montado sobre as imagens e ouvir de Inês a verdadeira estória por trás dos registros, entretanto, acabou sendo surpreendida.

- O bar está fechado hoje – Um homem com cara de poucos amigos se esgueira atrás da porta vermelha, impedindo sua entrada.

- Eu não quero beber. Quero falar com Inês. Sei que ela está aí, estou ouvindo a música.

- Você não é uma das convidadas – A encara de cima a abaixo com desdém.

Marcia recua, mas não desiste. Sua curiosidade gritava para que não saísse sem saber o que estava acontecendo.

- Ela mesmo me recomendou que viesse trazer isso para ela. Pode ir lá checar se quiser – Ele estende a mão para pegar o livro que Marcia abraça com mais força contra o peito – Em mãos.

Visivelmente contrariado, mas acreditando na policial, ele permite sua entrada.

Risadas são ouvidas assim que chega ao grande salão. As mesas estavam juntas formando uma grande fila.
O silêncio que se instala quando ela se faz presente é absoluto. A jovem se arrepende no mesmo instante. Tanto quanto se decepciona. Pode visualizar Eric e até mesmo, algumas pessoas da vila Toré, incluindo Fabiana, Ciço e Iberê. Os outros eram desconhecidos e lhe fitavam com a mesma cara de poucos amigos que a dona da reunião a qual não havia sido convidada.

Se sentiu uma completa idiota parada ali, já se preparava para sair em disparada quando um vento a ronda e um som gutural atinge seus ouvidos, fazendo-a cair de joelhos no chão. Leva uma das mãos ao ouvido, já que com a outra segurava o livro que se recusava a soltar.

A mulher loira se levanta, tentando se aproximar. Marcia já começava a perder o ar e sentir golpes sendo deferidos em seu corpo, quando as luzes piscam, Inês lança a mulher contra a parede e a policial finalmente se vê liberta, mas estava longe de se sentir bem.

- O que pensa que está fazendo?

- Nos protegendo – A mulher de cabelos douradas responde entredentes, enquanto se levantava, ficando frente a frente com a bruxa, travando uma batalha de olhares.

- Meu bar. Minhas regras. Você não vai machucar pessoas aqui dentro. Ainda mais uma que... É amiga.

- Amiga, é? – Desdenha – Fazendo amizade com eles... Humanos não são confiáveis - Leva os olhos até Ciço e Fabiana.

- Todos nós já fomos um dia.

- Esse jantar já deu para mim – Tenta sair, mas Inês a segura pelo braço.

- Não precisa ser assim, Thereza... – Tenta, mas ela já havia se transformado no pássaro que sumiu batendo as asas noite afora.

Marcia ainda estava zonza e a dor quase não a deixava pensar, sente braços a levantando e se deixa ser levada.

- Para o meu quarto – Ainda ouve a voz de Inês decretar antes de apagar por completo.

Quando volta a si estava deitada numa superfície macia. Reconhece o quarto de Inês e ao tentar se mexer sente suas costas arder.

- Shhh... – Uma mão desliza por sua pele e uma substância gelada é aplicada no local – Você está segura agora – A voz de Inês ressoa – Como se sente? – Ela sai de suas costas para se sentar a beira da cama, no campo de visão de Marcia.

- Eu estou sem roupa? – Perguntas segundos depois de assimilar o que acontecia.

- Sem blusa. Sim – Sorri – Você foi atacada pela Matinta e sua maior preocupação é essa? – Ri.

- O que... O que ela fez comigo?

- Thereza é o “vento morto”. É capaz de lhe ferir sem causar nenhuma marca aparente. Seu assobio causa confusão mental e a dor que está sentindo nas costas se deve a laçadas de cipó.

- O que? – Tenta se levantar, mas paralisa fazendo uma careta – Oh... Eu não deveria ter forçado minha entrada, me desculpe por aparecer assim e... Espera, cadê o livro?

- Na minha gaveta. Você realmente o guardou muito bem.

- Por quanto tempo isso vai doer?

- Fiz uma poção especial, vai cortar o efeito mais rápido. Amanhã já poderá ir para casa.

- Obrigada... Por me defender.

- Eu tinha que garantir que meu diário voltasse intacto até minhas mãos – Graceja, fazendo Marcia sorrir e uma paz imensurável a invadir, juntamente ao alívio por vê-la bem.

Teria um encontro e uma conversa muito série com Thereza depois.

A cantiga encantada começa e os olhos da policial a acompanham em uma dança que resultou no compasso do sono.

Um dos melhores que já havia tido.

Magic Wings (Marinês)Onde histórias criam vida. Descubra agora