O fardo é proporcional a dor

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Perder a razão nunca pode ser bom. Há os que digam que a vida é feita para ser vivida com todos os seus excessos, que as emoções não devem ser contidas, que cortar os impulsos seria uma desfeita com essa jornada. As consequências? Essas podem ser remediadas. Para a mágoa, o perdão. Para os erros, a redenção.

Um eterno conflito entre a razão e a emoção.

Mas perder a razão quando não se controla a emoção é duplamente custoso. E a todo custo Inês tentava aliviar a angústia que as consequências do acesso de raiva lhe causara. Entretanto, não havia remédio.

Só havia o aperto no peito. A solidão de seu bar que mantinha fechado a quase três dias e a música estridente de sua vitrola.

Marcia havia ligado diversas vezes, mas rejeitara a ligação em todas elas. Como iria encará-la depois do que fizera?

Nunca deveria ter se permitido. Por mais quantas vezes a mais nova iria se machucar por sua causa e por causa de seu mundo? Era um preço alto demais. Um fardo pesado demais.

Que não poderia ser dividido.

(...)

Quase uma semana. Sem notícias e sem nenhuma mudança em seu humor. Encara o relógio na parede que marcava quase meia noite suspirando. Não conseguia mais se segurar. Precisava colocar seus olhos sobre ela.

A borboleta azul, dá lugar a exuberante mulher em meio ao escuro do quarto de Marcia. A única luz vinha do abajur ligado, iluminando brevemente o rosto delicado.

Uma agitação se dá na barriga da bruxa.

Se aproxima, sentando-se a beira da cama lentamente.

Fica ali observando o ressoar calma de sua respiração por minutos a fio.
De repente, a policial se movimenta. Uma de suas mãos repousa em sua barriga.

Mão essa que estava enfaixada.

Os olhos da bruxa marejam enquanto encaram aquele ponto.

Antes que pudesse pensar em sair, dá de cara com dois olhos abertos em sua direção.

E antes que a jovem pensasse em decidir se aquela imagem era fruto de sua imaginação ou não, Inês já havia sumido.

(...)

O urro de dor escapa dos lábios avermelhados mais uma vez entre tantas aquele dia. Sua mãos contidas com cipós encantados pela magia da bruxa.

Inês segurava o boneco, onde espetava agulhas uma a uma. Grito a grito de Thereza.

- Eu... Já disse... Que não tive nada a ver com isso – Declara entredentes.

- Eu não acredito em você. Deixe-me entrar na sua mente. Tire a barreira.

- Não posso... Ah – Outro grito. Outra agulhada.

- Estou cansando desse joguinho – Larga boneco em um canto, enquanto se aproxima da outra a passos lentos. Os olhos tão negros quanto a escuridão que tomava conta de seu peito naquele momento – Acho que precisamos ir para o próximo nível – Abre um sorriso macabro.

Antes que Thereza pudesse esboçar qualquer reação um círculo de pequenos seres voadores a envolve. Não era só aflitivo. Era doloroso. Era como se as borboletas a tivessem mordendo. Se é que isso era possível. Os filetes de sangue começam a descer em sua pele.

Com um gesto de mão, Inês faz com que elas se afastem, pairando sobre a cabeça da loira.

- E então? Garanto que só vai piorar.

- Você... – Fecha os olhos, tentando não deixar transparecer o quanto já estava debilitada – Você já amou alguém tão intensamente que seria capaz de fazer de tudo por aquela pessoa?

Por sorte, Thereza conseguira fazer a mente da Cuca transitar por entre lembranças, a dando tempo. Amor... Só surgiam duas pessoas em seu pensamento.

- Nós já fomos amigas. Você conhece a minha história.

- Se pudesse tê-lo de volta... Não faria de tudo? Não daria tudo de si?

- Não há como driblar a morte.

- Tá brincando? Olha só para nós...

- Não se pode escolher. Você é escolhido. Ela não vai voltar Thereza... O seu amor está morto – Declara friamente enquanto os olhos azuis da mulher marejavam – Assim como você se não me deixar entrar agora mesmo...

- Você não mataria um dos seus.

Inês junta as duas mãos a frente do corpo, abaixando-os com empenho trazendo junto o martírio que recaiu sobre Thereza.

Os gritos podiam ser ouvidos do lado de fora do bar. Não se importava mais. Camila, Eric e Marcia, que apesar de ter dado o espaço que Inês parecia querer, estava ali junto aos outros para trazer a boa nova, mas foram surpreendidos.

Eric arrebenta uma das portas, abrindo caminho para que pudessem chegar ao porão.

Os pulmões pediam por ar ao encarar a cena e o corpo da bruxa pedia por uma pouco mais de alma.

- Inês – O chamado estridente a faz hesitar. Desvia os olhos até os castanhos de sua policial – Inês para – Grita com a voz embargada – Nós a encontramos. Fabiana está de volta. Por favor – Pede novamente em um fio de voz. Ser atacada pela bruxa havia a assustado, mas entendera a situação e não a culpava. Deveria haver uma razão para que Inês houvesse reagido como reagiu.

Mas o que presenciava agora, a trazia para um abismo. A fazia cair do paraíso onde vinha vivendo.

Se antes não conseguia ver através da bruxa, depois de conhecê-la talvez perdera a habilidade de ver a entidade.

Inês era uma entidade. Uma entidade poderosa, mas ainda era... A sua Inês.

Em uma lufada de ar desesperada, Thereza sente seus pulmões se descomprimirem. Não mais segurava suas lágrimas. Encara a antiga amiga que tinha a cabeça abaixada e os punhos cerrados e sem seguida o trio paralisado.

Parece que o amor havia ganhado novas cores na vida da Cuca e a forma da mulher, parada agora sua frente. Inês se deixa ser tomada em um forte abraço, desatando a chorar todas as suas mágoas.

O abraço de Marcia sendo o seu bálsamo consolador.

(...)

- Você não vai olhar para mim?
Chama a atenção de Inês que se mantinha sentada ao seu lado no sofá com o olhar fixo em um ponto qualquer. Assim que tudo se acalmou, Camila soltara a matinta, carregando-a para fora dali com a ajuda do homem e a ajudando a cuidar dos ferimentos. Sobrando apenas as duas mulheres.

- Eu... Estou envergonhada. Por tê-la machucado.

- Já passou.

- Olha isso – Leva suas mãos delicadamente até o pulso enfaixado – Eu machuquei você – Diz com a voz embargada – Eu fiz isso Marcia...

- E eu já te desculpei...

- Você me olhou com medo – Admite tristemente.

- Não é todo dia que alguém me faz voar – Graceja, mas o humor estava em baixa – Eu acho que... Em alguns momentos eu esqueci quem você poderia ser.

Inês sorri triste.

- Acho que eu me saí muito bem em lembrá-la – Encara os objetos remexidos no chão.

- Ei... – Coloca a sua mão boa em cima da de Inês, acariciando – Eu tenho certeza que você teve os seus motivos. Você é uma das pessoas mais boas que eu já conheci Inês. Desde sempre só vejo você protegê-los. Era só o que estava tentando fazer.

Inês nega com a cabeça. Não era tão simples.

- Eu não sei o que houve. Estava com raiva. Com raiva e com medo que a história se repetisse e eu não pudesse fazer nada.

- Que história?

- A minha história – Começa. A voz enfeitada de uma dolorosa melancolia – Uma mãe e um filho separados. Eu não torturei Thereza por proteção dos outros. Eu fiz porque queria... Porque... – Sua voz falha.

- Eu estarei aqui quando quiser contar – Começa ao notar a dificuldade da outra ao tocar naquele assunto.

- Eu quero... Eu quero lhe contar.

E então deixa cair os muros que ainda tentava manter. Voltando ao dia que mudara a sua vida para sempre e levando Marcia a uma viagem dentro de si e de seu doloroso passado. De como pensava ter amado uma vez e havia sido enganada. E como havia descoberto um dos amores mais verdadeiros e intensos que podem existir e novamente, havia sido tirado de si. O seu pequeno bebê.

- Eu sinto tanto Inês – Enxuga mais uma lágrima solitária na bochecha da mulher – Você não merecia. Não merece um terço dessa dor.

- O fardo é proporcional a dor – Dá de ombros – Foi por isso que desconversei no outro dia... Eu não estava pronta para falar. Eu não sou cria das águas, ou dos ventos, ou da terra. Eu perdi um filho e como compensação voltei a vida como a mãe de todas a entidades. Foram tempos difíceis até aceitar, mas assim que o fiz, esse se tornou o propósito da minha vida.

- Tempos difíceis geram almas fortes e a sua força é admirável, Inês. Nunca pense o contrário –  Tenta confortá-la, “desenhando” em suas mãos, nunca carícia calma – Agora vem aqui – Coloca uma almofada em seu colo, chamando Inês com a ponta dos dedos. A bruxa reluta, por fim cedendo aos encantos da jovem que nem precisava de magia para tê-la em suas mãos – Eu estou aqui com você e para você – Acaricia os cabelos negros e emaranhados – Em todas as suas versões...

- Até mesmo para a Cuca? – Sorri.

- Até mesmo para ela – Assegura – A não ser que, você sabe... Cabanas na floresta, caldeirões e criancinhas... – Completa arrancando o primeiro riso de Inês em vários dias. E como era bom ouvir aquele som.

- Eu já disse que...

A bruxa não consegue terminar sua fala, pois Marcia se abaixa, calando-a com um beijo, deixando falar a voz do coração.

- Eu estava morrendo de saudades – Acaricia as bochechas pálidas assim que se afastam novamente – Não faça mais isso. Não me afaste de novo.

- E se você se machucar outra vez?

- O fardo é proporcional a dor – Repete a frase de Inês, deixando-a sem palavras. Dando o assunto por encerrado. Sabia dos riscos e dos perigos, mas em meio as dúvidas que aquilo poderia gerar estava a poderosa certeza dos seus sentimentos pela bruxa. E a força daquele sentimento lhe bastava para enfrentar o que quer que fosse – Eu preciso te contar uma cosia – Começa a deslizar a pontas dos dedos por seus traços calmamente – A Fabiana reapareceu aparentemente bem e saudável, sem nenhum arranhão, mas... Ela insiste que... Reencontrou o Manaus.

Magic Wings (Marinês)Onde histórias criam vida. Descubra agora