Por detrás dos véus

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Quando a noite cai e a cidade dorme, o véu que cobre os encantos do alvorecer, se abrem. Revelando os mistérios resguardados pela escuridão. Outrora tão perfeitamente bem disfarçados, que quase chegam a passar despercebidos, quase.

Alguns os conhecem como lendas. Contos da carochinha. Mera estórias frutos da imaginação de mentes férteis. Outros, não só conhecem, mas, o chamam pelo nome. Porque de fato os reconhecem. E a esses fora dada a dádiva dos dons da natureza. Uma benção ou uma maldição? Aí já fica encargo do destino. A sua própria sorte. Abençoados os que creem e respeitam, pois conhecem. Desafortunados os que a chamam pelo nome, pois a vivenciam.

- E então? – A mulher se aproxima do homem no balcão.

- Tudo limpo. Até onde farejei – O ruivo responde cansado.

- Isso não está certo – Fixa os olhos em um ponto qualquer no bar, negando com a cabeça.

- Por que apenas não aceita que foi um acontecimento isolado, Inês?

- Porque não foi. Eu sei. Eu sinto.

- Quer que eu faça mais uma ronda?

- Não. Seria perca de tempo – Suspira – Vou me recolher... Você toma conta do bar?

Ele assente e a bruxa se vai. A verdade é que sentia-se estranhamente cansada. Parecia que algo não estava certo dentro daquele campo de força. Como um pequeno fio repuxado em um tecido fino, que começaria a se desgastar a partir dali.

Era assim que se sentia. Havia algo interferindo no equilíbrio e resultando em seu corpo pedindo por mais energia para que aguentasse se manter firme em meio as vibrações desordenadas.
Um homem havia sido encontrado morto em suas terras. Nas terras deles, na cidade invisível onde residem os que pertencem ao ar, as águas e a terra.
Não só morto, mas aparentemente havia causado aquilo a si mesmo, enforcando-se em um cipó, no meio da floresta.
Poderia ser uma coincidência. No entanto, não para Inês. Não para a criatura das criaturas. Era a guardiã de seu povo a centenas de anos. Anos esses que a deixaram mais poderosa e cada vez mais aguçada. Sua intuição jamais falhava.
Além do mais, depois de todos os problemas que tiveram. Os amigos que perderam. Os problemas com a polícia. Depois do caos deixado pelo corpo seco, a  normalidade parecia voltar a se instalar por ali e Inês garantiria que continuasse assim.

(...)

Mais uma semana. A mesma sensação. A borboleta voava por entre as ruas, invisível na incredulidade. A inquietação da vez em seu peito logo ganha a forma de uma silhueta, bem desenhada. Aconteceu rápido. Quando deu por si, já havia voltado a sua forma humana, lançando-se sobre ela.
A policial que caminhava perdida em sua própria mente, só atinou para o que acontecia ao seu redor quando seu braço foi puxado bruscamente.
Segura um grito de horror, a parede fria lhe abraçava enquanto seu corpo era prensado por outro. Não percebera, mas em meio a caminhada noturna havia se afastado para um local nada simpática. Mais escuro, mais sombrio. A pouca iluminação ainda servia para que pudesse vislumbrar uma capa completamente preta recobrir a pessoa que tinha uma das mãos sobre sua boca, impedindo que emitisse qualquer som. Ficaram assim por minutos. Passos do lado de fora do beco onde estava ecoam. Um grupo de homens passam por ali, alheios a escuridão da viela e presença das duas pessoas.

- Merda. A perdemos de vista – Um deles balbucia, com um sotaque estranho aos ouvidos de Márcia.

- A culpa é sua. Eu disse para que pegássemos ela duas quadras atrás.

O coração de mulher que já batia acelerado, se desespera ainda mais ao ouvir aqueles sussurros.
Quando a presença dos homens se afasta totalmente a figura misteriosa a solta vagarosamente.
Márcia puxa uma longa e livre respiração, encarando seu salvador que nada dizia, podia vislumbrar parte de seu perfil afilado. Não era muito mais alto do que ela, na verdade, observando melhor, parecia ser alguns centímetros mais baixo. Baixo demais para um homem.

A figura dá as costas para ela, parando e soltando um grande suspiro, tirando o capuz e virando-se em direção a policial que pôde reconhecê-la na mesma hora.

- Eles já foram. Onde estava com a cabeça? – A voz rouca ecoa no silencio da noite – Moças como você, não deveriam andar sozinha nas ruas a essa hora – Continua ao ver que sua interlocutora nada diria – É perigoso. Ande pelas sombras e vá para casa.

- Inês? – Pergunta ainda um pouco surpresa. Não via a mulher há semanas. Desde o desfecho com o amigo Erick. Mesmo que a bruxa misteriosa não houvesse saído de seus pensamentos. Ou qualquer um no time de entidades que havia conhecido – O que quer dizer com moças como eu? E espera... Como me achou? – Pergunta ainda com o coração acelerado. Não sabia se pelo susto, ou pelo olhar intenso que recebia e que sempre parecia despi-la até a alma.

- Achei que o interrogatório se resumisse as paredes do departamento. E uma moça como você, frágil e indefesa – Responde em sua habitual calma, podendo notar a veia no pescoço da mais baixa se contrair.

- Faça-me o favor. Eu sou policial. Não uma donzela em perigo.

- Curiosamente a donzela em perigo aqui era você sim – Expõe uma fileira de dentes perfeitamente alinhados – Está escuro demais para ficar andando com a cabeça nas nuvens, policial.

Marcia já começava a sentir um leve suor em suas mãos. Era a primeira vez que trocava tantas frases com a mulher. Cabeça nas nuvens... Se a bruxa soubesse o que ocupava os seus pensamentos a ponto de deixá-la a mercê e totalmente fora de órbita.
Inês dá um passo a frente, deslizando os dedos na bochecha rosada da mais nova rapidamente.

- Há mais mistérios entre o céu e a terra, do que contam os registros – Começa, como que adivinhando os pensamentos da outra – Não vale a pena ocupar esta cabecinha com essas coisas.

- A partir... – Começa com a respiração entrecortada pela proximidade – Do momento em que... Meu melhor amigo passou a fazer parte disto, eu acho muito válido sim. Como me encontrou? – Repete a pergunta em seu habitual tom grave.

- Uma intuição. Não é como se eu estivesse pensando em você vinte e quatro horas por dia.
Marcia franze o cenho. É claro que ela sabia.

- Eu não estava... – Dá um passo para trás se preparando para contrapor, mas o sorriso sínico nos lábios da bruxa a faz desistir – Não em você. Na cuca e... Em todas essas... Entidades.

- Eu sou a cuca.

- Até descobrir sobre toda essa loucura, eu só via uma mulher comum. Deve haver algo além para se conhecer – Alfineta. Não gostava de sair por baixo, nem mesmo para uma entidade centenária que poderia fazê-la sumir num estalar de dedos.

- Não é da sua conta. Nada disto. Apenas afaste-se.

Inês sustenta o seu olhar e dessa vez a jovem não desviou, como de costume. A mais velha puxa uma respiração arrastada e estende a mão.

- Venha comigo. Vou lhe deixar em algum lugar seguro. Aqueles caras podem voltar...

Márcia fica em silêncio. Ainda não sabia se poderia confiar nela. Mas não tinha muitas opções, não é? Inês havia se mostrado benevolente com Eric e passado a tratá-lo como parte “da família”, mas até que ponto ia a sua benevolência?
A mais velha recolhe sua mão, colocando as duas mãos na cintura, para logo depois soltar um riso incrédulo. Não iria implorar para ajudá-la. Faria do seu jeito.
A policial mal teve tempo de piscar. Sente a mão gélida em seu braço esquerdo e quando deu por si novamente estava parada próximo a um ponto de ônibus movimentado

Magic Wings (Marinês)Onde histórias criam vida. Descubra agora