Herói e vilão

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__ Tem certeza de que é uma boa ideia?__ indagou Charlie.
__ Não sei se é uma boa ideia, mas eu quero tentar__ respondeu Elliot.
Estavam na beira de uma ponte bem alta, embaixo de um igarapé.
__ Sabe, cara, me desculpe por ter ficado com sua ex. Não sabia que gostava dela ainda__ continuou Elliot.
__ Não se desculpe__ disse Charlie em tom sério, pôs a mão no ombro do amigo e o empurrou lá de cima.
  Foi uma queda bem feia, Elliot engoliu muita água tanto na boca quanto no nariz, mas não se afogou, só tossiu bastante enquanto batia as mãos e as pernas freneticamente.
 __ Ficou doido! Eu quase morri!
__ Estamos quites, talarico.__ disse rindo e depois disse__ Minha vez, bala de canhão!!!__ e pulou com um mortal.
  Estavam ambos de camisa e shorts de banho. Era um local tranquilo, calmo, com cantos de pássaros e grilos. Elliot tinha 15 anos e Charlie também.
__ Nossa vez__ disse uma menina que estava na ponte junto de sua irmã gêmea. Eram louras, formosas, olhos verdes, pele clara. Uma usava maiô e a outra irmã, biquíni.
  Eram as primas de Charlie, ambas tinham 14 anos. Eles incentivaram elas a pularem. Depois de demorarem muito, elas pularam. Eles riram e jogaram água uns nos outros. __ Olha, o Walter vai pular!__ apontou Yanca, a irmã de maiô.
  "Walter?".
__ Walter?__ indagou Elliot que olhou para cima e ficou chocado com a presença dele ali, "você não existia antes de Charlie!".
__ O que está fazendo aqui?__ gritou Elliot para ele.
__ Se esqueceu? Você convidou ele!__ disse Charlie.
__ Pula, Walter! Pula logo!__ disse Charlie animado.
  E não demorou para que todos em coro gritassem:
__ Pula! Pula! Pula! Pula!
  Walter estava parado, vestido que nem Elliot, tremendo de medo, trepado na ponte, em alguns momentos parecia que realmente pularia, mas o medo sempre vencia.
__ Pula! Pula! Pula! Pula!__ eles incentivavam cada vez mais alto.
  A ponte começou a demonstrar sinais de fraqueza, de que a qualquer momento desmoronaria.
__ Pula!__ dessa vez os tons de voz mudaram e soaram como um alerta.
__ Sai daí, cara! Pula!__ disse Elliot percebendo que a ponte estava quebrando cada vez mais.
__ Pula!
  A ponte quebrou.
__ Pulaaa!__ gritou Elliot acordando a casa inteira.
__ Filho?__ disse a mãe entrando preocupada em seu quarto__ O que houve?­­
__ Eu... eu...__ olhou ao redor confuso, "então tudo aquilo foi... ?".
__ Teve um pesadelo, filho?
__ Tive.
__ Quer me contar?
__ Não.
__ Ok, tome banho e se apronte pra ir à escola.
  O fim de semana passou voando, desde aquele show as coisas nunca mais foram as mesmas.
  Cama. Meia. Cadê o Walter? Porta. Banheiro. Cadê o Walter? Chuveiro. Sabonete. Shampoo anti-caspa. Condicionador. Água. Toalha. Pia. Escova de dente. Pasta. Barbeador. Torneira. Porta. Cadê o Walter? Uniforme. Tênis. Mochila. Cadê o Walter? Porta. Corredor. Escada. Cadê o Walter?
  Procurou pelo quarto, pelo banheiro e nenhum sinal dele. Ele não demorou muito para se aprontar dessa vez, ele estava com "roupas de física", uniformes mais informais que consistiam em uma camisa azul escura com seu nome escrito nele, uma calça com listra amarela com a sigla CMIM. Houve mudanças nas regras para aquele dia no colégio, ás vezes isso ocorria e os alunos mal sabiam o motivo para tais mudanças. Elliot dessa vez demorou no quarto, pois procurou pelo Walter até no seu guarda-roupa, ele nunca sumia pela manhã.
  No fim de semana Walter mal parava em casa e nem se preocupava em dar explicações, aparentemente seu clone tinha mais vida social do que ele. Depois do Ciclone... por algum estranho motivo eles ficaram mais distantes.
__ Procurando alguma coisa, filho?__ perguntou seu pai na cozinha. Ele voltou no domingo. Ele vestia roupas civis, roupas de dormir, camisa cinza desbotada e bermuda cáqui.
__ É o Walter que procura? Ele saiu mais cedo...__ disse sua mãe.
__ Ele disse pra onde ia?__ disse o rapaz sentando-se à mesa.
__ Ele não te disse? Pensei que fossem melhores amigos...__ disse o pai intrigado.
__ Querido... eles não nasceram grudados.
__ É sério! Que amigo é esse que sai sem avisar? Ele saiu com uma pressa... parecia que alguém tinha morrido! Né, amor?
__ É sim, ele estava estranho mesmo__ disse ela__ Aconteceu algo com a família do seu amigo? A situação está boa na casa dele?
  Eram tantas perguntas... como responder se ele sabia tanto quanto eles? Tinha de improvisar.
__ O avô dele tá meio mal, ele bem que comentou que não estava fácil com ele doente.
__ Pobrezinho...__ disse a mãe tristemente__ Vamos orar por ele.
__ Agora tá explicado, provável que ele tenha tido um ataque, ele foi avisado disso e saiu pra ajudar. Aliás, se o encontrar, diga que estamos à disposição pro que for preciso__ disse o pai com um sorriso acolhedor.
__ Obrigado, pai.
__ Não tem de quê, ele me pareceu uma pessoa bem legal pelo que eu vi... enfim, quer usar a caminhonete hoje?
  O rapaz ficou surpreso.
__ Sério?
__ Sério, sua mãe disse que tem se comportado muito bem ultimamente. Só que tem uma condição.
__ Qual? ­­
__ Vai ter que dar uma lavada nele. Sua mãe reclamou que o banco de trás está fedendo a mijo.
__ É verdade, ele precisa de uma limpeza urgente!__ disse sua mãe torcendo o nariz. __ Tá bom!__ disse Elliot feliz pegando a chave de seu pai. Ele abraçou seu pai e sua mãe e foi embora para a escola.
  Apesar do cheiro de mijo, estar dirigindo de novo aquele carro em plena luz do dia era maravilhoso. Tudo bem que ele havia dirigido na sexta-feira, mas desta vez estava no volante sem ser escondido, a sensação era diferente, era incrível. Sentiu-se tentando até a faltar aula, mas só ficou na vontade mesmo.
  O sol iluminando seu rosto, o vento agitando seu cabelo, para completar com chave de ouro ele ligou a rádio que tocou músicas alegres como "Andando sem rumo" e "Preso na liberdade". Elliot cantava enquanto dirigia e nem viu o tempo passar... queria que Walter estivesse lá, onde será que ele estava?
  Depois de estacionar o carro, ele começou a pensar no que falaria para Rosa. Eles não se falaram desde aquele dia.
__ Eu... nem sei por onde começar.
__ Que tal pelo começo?__ disse Rosa.
  Estavam no mesmo local que permaneciam durante o recreio.
__ Como foi a viagem do fim de semana?
__ Não muda de assunto, desembucha.
__ Certo, em relação ao cinema...
__ Não é sobre o cinema que eu quero saber. Você faltou aula pra ver filme, ok! Entendi, só não foi pra aula desse colégio, até porque você não faltou nenhuma aula semana passada, a não ser que possa ficar em dois lugares ao mesmo tempo, o que é impossível! Pode ter faltado no curso, como aquele chato do Rafael comentou...
  Quando eu digo começo, me refiro a outro começo.
__ Qual começo?
__ O de seu amigo Charlie... sabe a viagem que fiz pra fora da cidade no fim de semana? Era mentira!
__ Mas... por que mentiu?__ disse Elliot confuso.
__ Porque fiquei preocupada com o que ouvi naquele dia... você ameaçou o Rafael, disse que ia acabar com ele da mesma forma que acabou com o Charlie. Ele ficou com medo, se mijou, tudo bem que ele estava bêbado, mas a forma como ele ficou depois que te olhou depois que você o ameaçou... ele estava com medo de verdade, foi por isso que resolvi me afastar.
__ Você não acha que...
__ Esse é o problema, eu tô em dúvida, por isso estamos aqui. O que rolou com o Charlie? Ele estudava na mesma sala que a gente, eu preciso saber... desde o começo__ ela estava bastante séria e com um olhar preocupado.
  Elliot respirou, demorou para responder, pois ficou olhando pensativo as nuvens brancas.
__ Tudo começou num dia calmo como esse. Num sítio e com uma aposta idiota. Charlie era o meu melhor amigo há anos, o dia em que ele morreu era pra ser como qualquer outro dia.
A gente tinha o hábito de ir pro sítio do tio dele pra relaxar, fumar uma ervinha e brincar de tiro ao alvo. A gente atirava em latinhas com espingardas, mas não foi assim que o Charlie morreu, a gente só atirava nas latas e nada mais. Depois daquele dia... Charlie faria 16 anos... eu... eu e ele, naquele dia, fizemos uma aposta.
  Quem perdesse o jogo de tiro ao alvo, iria pagar uma rodada de cerveja pro outro. Charlie venceu. A gente saiu do sítio, foi pra um bar que a gente costumava ir muito e eu paguei a cerveja pra ele. Rafael, o bêbado de sexta, arrumou até uma briga por lá, ele nunca teve um gênio muito fácil. Eu e o Charlie tivemos de apartar, mas também não foi assim que ele morreu.
Eu dirigi minha caminhonete porque só eu estava sóbrio, Charlie foi do lado e ficou enchendo meu saco porque queria dirigir. E sabe o que fiz? Eu deixei! E sabe por quê? Porque o aniversário dele estava perto! Se eu tivesse dito não, se eu tivesse impedido ele de dirigir... talvez ele estivesse vivo. Ele mal conseguia se manter na estrada, até que uma hora saímos de vez e batemos em uma árvore, foi assim que ele morreu.
  Eu devia ir junto, mas a vida não é justa. Ele morreu por minha culpa e eu consegui sobreviver... se eu pudesse voltar no tempo...
__ Faria medo nele ao ponto dele se mijar todinho?
__ Exata...__ interrompeu-se, pois não pôde evitar de rir lembrando-se de Rafael__ Eu não devia estar rindo, caramba!
__ E por que não? Foi engraçado, não foi?
__ Eu sei, mas... mas... você não tá chateada?
__ E por que eu devia? Eu pensei que você era um assassino ou algo do tipo.
__ Mas eu ma...
__ Nada disso. Acredita que eu faria o mesmo se fosse você?
__ Ia?__ disse surpreso.
__ Ia, se fosse aniversário do seu amigo, faria sim. Você fez merda, tem sua parcela de culpa, mas apontar essas suas mãozinhas lindas pra si mesmo não vai melhorar... uma ferida não se cura se cutucar o dedo nela, pelo contrário, vai continuar a doer e se cometer o mesmo erro de novo vai doer ainda mais.
__ Que frase bonita... é de algum provérbio asiático?
__ Não, vem de um para-choque de caminhão. O que fez no Ciclone... você foi um herói, Elliot. Se deixasse Rafael dirigir... muita ferida ia se abrir__ e suavemente cruzou seus dedos com os dele.
__ É sim, meu herói__ e deitou a cabeça no ombro dele enquanto contemplavam o belo sol da manhã e o céu enfeitado de nuvens.
  Ficaram em silêncio por um tempo, até Rosa se afastar dele pensativa e perguntar:
__ Aproveitando que a gente tá aqui, já que está falando a verdade... queria te fazer uma pergunta: por que você tava falando com a vaca da Cristine?
__ Bom, eu fiz o dever de casa dela, troca de favores.
__ E qual favor ela te fez?__ disse intrigada.
__ Como é que tá o Aécio?
__ Bom, ele ficou suspenso por 10 dias. Por quê?
__ Nada não__ disse nervoso__ Por que quer saber da Cristine?
__ É só uma pergunta ué, que favor ela te fez? Perguntar não ofende, né?
__ Tá com ciúmes.
__ Eu devia?__ disse incisiva__ Disseram que deu dinheiro pra ela, isso é verdade?
  Elliot ficou nervoso, disse:
__ Q-quem te disse?
__ Por que tá enrolando tanto? Não tem problema você conversar com ela, só achei curioso você ter dado dinheiro pra ela e ter feito o dever de casa dela. Cristine não é o tipo de pessoa que se importa com alguém, então ela ter te ajudado em algo é no mínimo estranho...
  E naquele dia Rosa descobriu que seu herói... também era vilão. 

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