__ Mais alto! Mais alto! Mais alto!__ disse o pequeno Charlie de 5 anos de idade, sentando no "pneu de balanço" pendurado na árvore, no sítio enquanto era empurrado por seu tio Charles.
O sorriso e a risada pueril do garoto eram contagiantes, Charles também ria enquanto fazia a vontade de seu sobrinho cujo dente da frente havia caído, mas não tão alto para que não caísse do pneu e se machucasse.
__ Segure firme!__ aconselhou o tio, em tom bem-humorado.
Era uma lembrança agradável. Charles olhava o corpo falecido de seu sobrinho deitado na impressora humana, com saudades. Charlie estava mais magro, unhas grandes, com a pele conservada, mas em um tom de cinza transparente e com as veias aparentes, seu cabelo louro estava maior e vestia roupa de paciente médico azul e branca, tal como Elliot vestiu no dia em que foi clonado.
__ Eu vou te trazer de volta, vou sim!__ disse com um sorriso triste.
Charles vestia camisa xadrez vermelha de manga curta, calça cinza, sapatos escuros. Estava com a barba por fazer, com um olhar esperançoso e marejado que fazia contraste com o aspecto abatido em seu semblante, um misto de tristeza, saudades e esperança. Estava de costas para Clóvis e ambos estavam no Hefesto, o porão da casa de Clóvis.
O porão era 2 metros acima do nível do solo, de tijolo, com ventilação forçada. Havia diversas coisas nele, mesa com tubos de ensaio e frascos de laboratório, caixas de ferramentas ao lado de Clóvis, que eram essenciais para a manutenção das máquinas de clonagem do ambiente. Tal como o deus Hefesto, Clóvis era um prisioneiro em sua "forja". O cientista estava com as mãos algemadas, vestia um jaleco branco sujo e surrado, com os cabelos desgrenhados, pele pálida por ter passado muito tempo fora de alcance da luz solar, dentes amarelados, cicatrizes no rosto, os óculos eram a parte mais conservada de seu corpo envelhecido e machucado. As impressoras humanas estavam conectadas a diversos fios elétricos conectados a uma bateria de motor de carro e acima do motor havia um vaso com uma planta, também conectado por fios.
O processo de clonagem, quando iniciado, poderia ser letal a todos ao redor, uma vez que era preciso uma grande quantidade de voltagem para que ocorresse. Clóvis tinha o poder para fazer isto neste exato momento para eliminar Charles, no entanto ele morreria junto e a última coisa que o cientista queria era morrer dentro da própria casa mas... havia uma chave de boca na caixa de ferramentas próximo dele, ele poderia usar! Charles estava bem vulnerável, se Clóvis fosse discretamente até ele e batesse nele com a chave ele poderia cair duro no chão e assim ele poderia escapar de vez são e salvo, "talvez uma pancada não bastasse, talvez duas, três, quatro, não, cinco! Talvez dez... ou cinquenta, não, talvez seja pouco ainda"; pensou.
Clóvis pegou a chave, suavemente tirou os sapatos para evitar barulho com seus passos e depois caminhou lentamente até um Charles bastante abatido e vulnerável.
Seu coração estava acelerado, ele procurava respirar bem devagar, pois o mínimo de barulho poderia o atrapalhar... estava chegando perto, o alvo era a cabeça, ele apontou a chave, levantou o braço e...
__ O que você está fazendo é desumano__ disse Diana.
"Diana?"; pensou Clóvis espantado.
__ Nem venha me dar sermão, sua vadia arrogante!__ disse Walter zangado.
Charles ficou mais atento, passos foram ouvidos, sombras desciam a escada. Clóvis escondeu a chave no jaleco, se afastou e voltou seus olhos para a escada.
Quem desceu primeiro foi um garoto semelhante ao Walter, mas com uniforme escolar, com um olhar preocupado e triste.
__ Elliot__ disse Clóvis em um tom alegre.
Charles estranhou aquele rosto. Diana veio logo atrás, para a preocupação de Clóvis, e atrás dela, para o terror de Clóvis, havia Walter com uma espingarda apontada para ela enquanto descia. "Não basta as duas armas que ele tem nos coldres da calça, ele ainda tem uma espingarda. Ele é imprevisível!". No cinto de Walter havia duas armas: uma arma de fogo no lado esquerdo e uma arma de dardos no lado direito.
"Não era para você estar aqui, Diana. Eu diz de tudo, de tudo para que você ficasse longe daqui, será que fiz algo errado? Eu fiz tudo o que você me mandou, Walter"; pensou indignado.
__ Quem são eles?__ indagou Charles.
__ Visitas. Conhecidos do nosso querido doutor.
__ Não era para você estar aqui, Diana__ disse Clóvis.
__ Sem problemas, se você quiser eu posso fazê-los sumir__ disse Walter.
__ Não toque neles!__ disse Clóvis.
__ Se não o quê, coroa? Quer levar outra surra?__ disse Charles em tom ameaçador.
Clóvis apenas abaixou a cabeça tristemente, perdera de vez as esperanças de escapar daquele porão vivo. Elliot estava ali e pelo olhar dele, ele havia fracassado em fazer Walter mudar de ideia e se nem ele conseguiu fazê-lo mudar de ideia, ninguém seria capaz.
Diana quis ir até o cientista, no entanto Charles se interpôs entre eles dois.
__ Deixe ela se aproximar, tio. Ela é inofensiva__ disse Walter__ Essa é Diana, minha terapeuta e a que me fez topar esse projeto.
__ Tio?__ estranhou Elliot__ Como assim?
__ Ele é realmente parecidinho contigo, é ele mesmo o clone? Até a voz é igual!__ disse Charles a Walter.
__ As aparências enganam, ele é um louco de pedra, um psicopata com sede de sangue e um pau-mandado do Dr. Clóvis__ disse Walter.
__ O quê? Eu não acredito que tá mentindo pra ele__ disse Elliot para Walter e depois voltou-se para Charles__ Sou eu, lembra? Eu sou o Elliot de verdade! Não acredito que se esqueceu de quem eu sou__ e olhou profundamente para o homem.
Charles sentiu algo com aquele olhar, algo que não havia sentido com... Walter, que mais parecia fazer tudo aquilo por alguma obrigação do que por prazer. Charles desviou olhar, sentiu-se constrangido, mas não entendia o motivo.
Entrementes, Diana deu um abraço apertado em Clóvis que, por sua vez, lhe entregou a chave de boca com discrição e sussurrou:
__ Escute, você precisa sair daqui, sem discussões.
__ Mas...
__ Confie em mim, pegue essa chave, ataque o gordão caipira direto na cabeça de saco raspado dele e fuja, fuja e chame a polícia. Ligue para o pai de Elliot se for preciso, é, faça isso! Ele é policial. Não interessa se serei preso por ter feito tudo isso, desde que essa loucura acabe de vez.
__ E quanto ao Elliot?
__ Eu não sei... o que sei é que temos pouco tempo. Eu cuido do Elliot, eu vou dar uma enrolada por aqui, aliás, Walter nunca faria mal algum a ele... afinal ele é o motivo de tudo isso estar acontecendo, não que isso seja culpa dele, mas Walter faz isso por ele, então se algo acontecer ao Elliot... enfim, você entendeu, agora aja discretamente.
Por falar em Elliot...
__ Fez uma excelente cópia mesmo, hein doutor? Ele sabe como te fazer sentir... qualquer coisa__ disse Charles olhando para Clóvis.
__ Olha pra mim, titio. Sou eu que era amigo do Charlie, não ele. Lembra daquele vez...
__ Não toque no nome dele, sua aberração!!!__ disse Charles furioso com os olhos fitos nele, seu peito doeu quando o nome de seu sobrinho foi mencionado por ele, seria culpa? Não fazia sentido, algo naquele "clone" o incomodava.
Walter se interpôs entre os dois.
__ Calma, tio. Podemos dar um jeito nele.
__ Por que não damos agora? Só precisamos da tal da Diana viva, não dessa cópia fajuta.
__ Quer mesmo que a primeira visão do Charlie depois de renascer seja um defunto igualzinho a ele sujo de sangue estirado no chão? Lembre-se do que o Clóvis disse, precisamos tomar cuidado com quais serão as primeiras lembranças do seu sobrinho em suas primeiras horas de vida.
Charles ficou cabisbaixo, olhou para o seu sobrinho, depois olhou para eles novamente, suspirou e disse:
__ Certo, eu vou me controlar, mas diz pra essa "coisa" não me provocar__ disse apontando para Elliot.
__ Certo, certo...__ e olhou para Elliot dizendo__ Ouviu ele, né?__ e lhe deu uma piscadinha.
__ Cala essa sua boca, eu posso me defender sozinho.
__ Como é que é?__ respondeu Walter.
__ Isso mesmo que você ouviu. Eu não sou uma coisa, tio Charles. Meu nome é Elliot e era o melhor amigo do seu sobrinho, goste você ou não. Você me via como seu sobrinho também, mas agora pensa que eu sou uma aberração.
__ Cala essa boca...
__ Quer me matar? Vai em frente__ e depois levantou a camisa mostrando as cicatrizes de cirurgia em decorrência do acidente fatal que levou a marca do Charlie__ Essas feridas aqui são do acidente que levou a morte do seu sobrinho. Você pode me matar, abrindo elas de novo. Essas feridas esse suposto Elliot não tem, eu sou o Elliot de verdade, eu vi o Charlie morrer e eu queria ter morrido no lugar dele__ depois abaixou a camisa__ Você vai fazer um favor pra mim se me matar agora... todos os dias eu me senti culpado querendo ir no lugar dele, eu me odeio pelo que fiz, eu...
A espingarda foi disparada, abrindo um buraco direto no teto. Todos pararam para prestar atenção em alerta. Walter segurava a espingarda com força, com um olhar penetrante, as narinas dilatadas.
__ Você se esqueceu que não é só sua vida que tá em jogo aqui?__ ameaçou Walter__ Não... você não pensou no Clóvis quando começou a falar, falar e falar, e nem em Diana... então o que você acha de ficar caladinho e aproveitar o show? Você tem sorte de estar vivo até agora, quer mesmo continuar testando a sorte? Beleza...__ ele deu a espingarda para Charles e disse__ Se ele te provocar de novo... mostre pra ele quem manda. Não se engane, as aparências enganam.
Diana afastou-se um pouco de Clóvis e aproximou-se de Charles. Elliot e Walter foram ao canto oposto da sala, ficando assim mais próximos para ouvir Clóvis, que iniciou sua explicação.
__ Como o processo "Lázaro" vai ocorrer? Nos explique, professor. Seus visitantes querem saber__ disse Walter.
__ A clonagem já ocorre na natureza de uma certa maneira por meio da reprodução assexuada, quando bactérias se reproduzem sem a necessidade de relação sexual. Elas multiplicam-se gerando outras bactérias geneticamente iguais ao organismo que as originou, tais criaturas geradas nesse processo são chamadas de "clones". O que o projeto Alter-ego faz é buscar replicar esse processo de maneira artificial. É possível clonar um ser desde que ele esteja vivo, pois apenas uma vida gera outra vida.
Partindo desse princípio, por que eu consegui clonar um ser vivo a partir de um ser morto? Bom, eu consegui reanimando através da eletricidade, como naquelas massagens cardíacas por exemplo ou como no filme do Frankstein, meu exemplo favorito. Filme ótimo por sinal, só não é melhor que o livro...
__ Já entendemos, vá direto ao ponto__ disse Walter.
__ Como eu dizendo foi um processo falho, acabei criando um clone com células mortas, outras vivas e também com atividade cerebral comprometida. A cópia teve uma vida curta e nasceu sem lucidez.
Desta vez vai ser diferente porque eu contornei esse problema com esta planta no vaso que vocês veem. Ela é o organismo vivo que vai compensar a falta de células vivas de Charlie, a planta será reaproveitada, cada nutriente... tudo será utilizado como força vital para a cópia. Será como uma casca de ferida para proteger a ferida, peça nova para remendar o que é velho, um suplemento para...
Diana acertou Charles com a chave e saiu correndo. Enquanto o homem estava atordoado, Clóvis rapidamente agiu usando a sua corrente para estrangulá-lo. Walter precisava tomar uma decisão rápida, ele pegou sua arma de dardos e decidiu que cuidaria de Diana primeiro, Elliot tentou o impedir, no entanto Walter tinha reflexos rápidos e contra-atacou com uma cotovelada no nariz. Todas essas ações ocorreram muito rápido, Elliot caiu para trás com o nariz sangrando, ficou sentado no chão e recostado na parede tentando estancar o sangue.
As ações de Elliot e Clóvis foram o suficiente para que Diana alcançasse o primeiro degrau, mas não o suficiente para que ela passasse dele. Suas pernas ficaram trêmulas, ela ficou tonta, sonolenta e quando percebeu o dardo em sua perna era tarde demais. Ela caiu inconsciente no chão.
Enquanto isso Clóvis estrangulava Charlie com cada vez mais força, fúria. Charlie tentou reagir com a espingarda, no entanto a soltou, pois era incapaz de manuseá-la porque estava sufocando-se cada vez mais, seus sentidos estavam comprometidos... mas a visão de Diana sendo subjugada por Walter foi o que fez Clóvis afrouxar a corrente um pouco por maior que fosse o seu ódio e seu desejo sádico pela morte de seu algoz.
Walter, diante do corpo adormecido da terapeuta, trocou a arma de dados pela arma de fogo. Mirou para ela e disse:
__ Se tentar mais uma gracinha ela morre__ disse, mas não olhando para Clóvis e sim para Elliot.
Elliot olhou tristemente para Clóvis e disse:
__ Faça tudo o que ele mandar.
Clóvis tirou a corrente do pescoço do tio de Charles. Walter deu um lenço para Elliot limpar seu sangue e Charles deu uma coronhada na barriga de Clóvis depois de recobrar a consciência, depois amarrou Diana com as mãos para trás, ele ainda queria leva-la para longe da escada, mas Walter negou dizendo:
__ Deixe ela ae, ela não vai muito longe se tentar fugir. Minhas balas vão ser mais rápidas caso ela tente essa tolice de novo.
Charles estancou o sangue na cabeça com um lenço e concordou com o que ele disse. Clóvis levantou-se com esforço, Elliot o ajudou e o cientista sentou-se em um banquinho, pôs o notebook sobre as pernas. Enquanto isso Charles mirava a espingarda em Diana.
__ Por favor, pare de apontar essa coisa pra ela.
__ Pedido recusado__ disse Walter pondo uma das mãos no ombro do cientista, que sentiu ojeriza com o toque.
__ Ele já entendeu, para de apontar essa arma pra ela. Ela não vai a lugar nenhum, tá com as mãos amarradas nas costas__ disse Elliot.
Walter ficou pensativo, disse:
__ Tá certo, pedido aceito.
__ Sério? Vai mesmo aceitar a sugestão dele?__ disse Charles surpreso.
__ Ué, ele tem razão. Ele só tá reforçando o que já tinha dito antes.
__ Tá bom__ e abaixou a arma, mas logo apontou para Elliot.
__ Abaixa essa arma, Charles__ disse Walter.
__ Não abaixa, Charles__ disse Elliot.
__ O quê? Quer morrer?!__ disse Walter em tom de preocupação.
__ Por que se importa? Eu sou só um clone, não é?
__ Que loucura é essa, Elliot?!__ disse Clóvis espantado__ Não precisa fazer isso.
__ Tudo bem, doutor. Se eu sou só um capanga seu, então eu sou descartável. Aliás, o que um clone faz? Eu sou só uma cópia, mas posso ter defeitos, não é? Posso não ser tão bom quanto a original! Eu posso ter poderes, posso ter o poder de me explodir, quem sabe?
__ Você não tem poderes!__ disse Walter exaltado.
__ Como sabe? Clóvis é um mentiroso mesmo. Pode ter escondido isso.
__ Saia da frente, Elliot!__ disse Charles__ Ele é um tagarela.
__ É, Elliot. Saia da frente, deixa ele me matar__ disse Elliot com um sorriso travesso__ Charlie também dizia que eu falava demais.
__ Cale a boca, nunca conheceu o meu sobrinho__ disse Charles entredentes.
__ Como posso não conhecer e ter as cicatrizes do acidente? Hein? Me explica!__ disse Elliot.
__ O "Elliot de verdade" tem também, mostra pra ele, Elliot.
Nenhuma resposta.
__ Elliot?
Ainda nenhuma resposta, silêncio total.
__ Elliot, qual é, filho! Mostra pra ele quem você é de verdade.
__ Não quero, não preciso provar nada a ninguém__ disse carrancudo__ Ele tá tentando te manipular.
__ É só levantar a camisa, cara, como eu fiz,__ disse Elliot__ só faz isso e você comprova que é o verdadeiro.
Walter ficou nervoso, reflexivo e preocupado, no entanto ele virou para Charles e disse:
__ Realmente importa se sou um clone ou não? Tô te dando a chance única de reviver seu sobrinho, que jogar essa chance fora depois de tanto esforço?
__ Por que mentiu?__ disse Charles decepcionado.
__ Quer o Charlie de volta ou não?
__ Mentiroso.
__ Quer o Charlie de volta ou não?__ gritou colérico.
Charles contraiu os lábios de desgosto.
__ Eu sou a prova viva de que dá pra fazer isso__ disse Walter apontando para si.
__ Você não é o Elliot.
__ E por acaso quem vai sair daquela máquina é o Charlie?__ indagou Walter.
Charles demorou para responder. Disse:
__ Ligue a máquina, Clóvis.
__ Gostei da resposta__ disse Walter.
__ Cale a droga da boca.
Elliot disse com decepção na voz:
__ Mas...
__ Cale a boca cê também!!! Eu já tomei minha decisão, garoto. Ligue a merda da máquina, velhote!__ disse enraivecido.
Clóvis ligou a máquina, o brilho da luz da eletricidade iluminou os rostos de reações mistas: surpresa, apreensão, ansiedade, medo. Até Diana acordou para presenciar o momento enquanto buscava desamarrar suas mãos com um certo êxito.
Quando o processo de cópia terminou, um corpo ergueu-se da máquina. Alguém a imagem e semelhança de Charlie ou seria mesmo o Charlie? Todos perguntavam-se, pois era tamanha a semelhança!
O rosto confuso do tal alguém encarou a todos e com uma voz sonolenta como se estivesse acabado de acordar disse:
__ Que lugar é esse? Como eu vim parar aqui?
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Alter-ego
RomanceElliot e Charlie eram amigos inseparáveis, até que uma infeliz tragédia leva a morte de Charlie. Enlutado, Elliot procura ajuda por meio de uma terapeuta para poder seguir em frente. A terapeuta lhe sugere o projeto Alter-ego, um projeto que tem o o...