3.5 : O Vestido Proibido

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|||Angeais, Maio de 1934|||

   O dia passou tão lentamente que parecia estar congelado nas mãos de Andra. A dor latejava e o sangramento não dava sinais de parar nunca. Ellara torceu para que aquilo fosse o ponto final de sua história miserável e que logo ela nada fosse além de um corpo vazio, pois já era assim que se sentia.

Deitada na cama, no quarto assombrado pelas memórias de Will, ela permanecia encolhida em posição fetal. O olho enfaixado e porcamente suturado pelas mãos calejadas de um criado enfeitiçado ardia como se tivesse sido substituído por brasas quentes.

Tudo que ela queria era virar aquela garrafa de absinto e desmaiar pelo resto da semana, mas até o mísero esforço de se sentar parecia além de suas capacidades. Por isso permaneceu deitada, remoendo suas dores.

Assim, os dias passaram.

Pela manhã, vinha um criado e trocava seus curativos. Um sujeitinho pálido e com os braços cobertos de cicatrizes de cortes profundos. Ela imaginou qual seria a história por trás daquelas cicatrizes.

O sujeito era insistente e sempre que Ellara tentava espantá-lo, negando seus cuidados na busca incessante pela morte, ele acabava voltando. Certa vez ela até tentou enxotá-lo dali com um soco, mas o homem simplesmente se pôs de pé e voltou a cuidar de sua ferida como se nada tivesse acontecido.

O nariz dele sangrava e talvez estivesse quebrado, mas tudo que lhe importava naquele instante era cumprir a ordem de Andra e tratar do ferimento daquela moradora desagradável.

Ellara sentiu-se um monstro e, enquanto o criado passava uma nova camada de unguento de ervas-solares em sua pele, ela desatou a chorar, pois sabia que não era como se aquele homem tivesse alguma escolha de estar ali. Ele era somente mais uma marionete de Andra.

No fim das contas, ela estava descontando a raiva na pessoa errada.

Pela tarde, a comida vinha, e pelo menos isso ela tinha a opção de ignorar. Os pratos permaneciam intocados no criado-mudo até que um criado viesse retirá-los para serem lavados de noite.

Ellara sentia fome às vezes, mas não se daria ao trabalho de se alimentar se aquilo significasse a continuidade de todo aquele sofrimento.

Por três dias, ela não comeu ou bebeu nada.

Na manhã do quarto dia, às vésperas do baile de Janine, a comida foi trazida por um criado mais robusto. Ele forçou a comida em Ellara guela abaixo, empurrando os bolinhos de arroz com tamanha brutalidade que a feiticeira quase sufocou antes de mastigar.

Ela sabia que aquilo não era ele, mas sim Andra agindo através de suas mãos. De qualquer modo, não pôde evitar sentir ódio do homem.

Quando bebeu a água entregue pelo criado, depois de quase morrer engasgada, Ellara soube que era tão acorrentada à Andra quanto aqueles pobres humanos capturados. Não conseguiria escapar daquele cenário de maneira alguma, nem mesmo através da morte.

E era isso que mais a apavorava, a perspectiva de uma vida inteira daquele jeito.

Caso não morressem todos de fome nos próximos anos, ela sabia que sua meia-irmã continuaria prolongando seu sofrimento pelo resto de seus dias. E feiticeiros eram criaturas que viviam bastante.

*****

   Ellara passou a comer quando a comida vinha, já que a alternativa era quase ser sufocada pelas mãos brutas de um criado qualquer. Aos poucos, foi criando coragem para sair da cama e andar pelo quarto.

Bebeu absinto e vomitou no chão do quarto, chorou um bocado e xingou enquanto uma criada limpava tudo com um olhar vazio no rosto. 

Passou a odiar aquele semblante dos enfeitiçados, sempre com cara de paisagem como se nada os afetasse, livres de sentir o peso de suas ações e as dores que Andra causava neles. Oras, Ellara quase os invejava, isso sim.

Dama do FogoOnde histórias criam vida. Descubra agora