|||Angeais, Fevereiro de 1929|||
Ellara saiu de casa durante o início da noite. O túnel a levou até um bueiro em um beco da Pólis, lar dos feiticeiros.
Assim que saiu da passagem, ela se deparou com um corpinho caído próximo das latas de lixo. Chegando mais perto, viu que se tratava de uma fada, bêbada feito um gambá. As asas estavam rasgadas e ela tinha arranhões profundos nos braços.
Ellara sentia muita pena daquelas pobres criaturinhas, por isso ela deteve-se ali por mais um instante, colocou uma moeda ao lado da fada bêbada e só depois seguiu seu caminho.
Fora do beco, as ruas eram iluminadas e barulhentas. Bondes elétricos circulavam carregando feiticeiros de lá para cá nas vielas entre suas casas luxuosas, nada parecidas com as construções amontoadas e mal feitas da Vila, tão tortas que os tetos quase se encostavam.
Nenhum ramo-de-lua crescia por ali, apenas folhas douradas de ervas-solares e tulipas. Nada de vegetação selvagem e perigosa, isso ficaria para o clã dos humanos e dos elfos.
Sentinelas faziam a proteção devida do lugar, munidos de armas de fogo e uniformes impecáveis.
A música também tinha espaço no centro da cidade, desde músicos tocando na calçada até caixas metálicas penduradas nos postes que emitiam som.
A Pólis emanava vida assim como fedia à magia proibida, Ellara pôde sentir no momento em que se esgueirou do bueiro. O ar era mais pesado, mais frio e um odor agridoce de putrefação pairava ao redor.
Nem todo aquele esplendor era capaz de mascarar a corrupção da magia.
Ellara cruzou a rua, passando pelo parque onde há tanto tempo ela havia brincado com os irmãos quando criança. Podia sentir o poder da natureza fluindo mesmo antes de seus pés tocarem a grama do lugar, e diferente da magia que emanava ao redor, aquela tinha indícios da bondade que antigamente fazia parte daquele mundo doente.
A feiticeira não se demorou muito ali, pois sentinelas estavam plantados em vigília no parque e ela não queria levantar suspeitas. Uma vez que, os fardados daquela área estavam, particularmente, em alerta constante e encaravam as pessoas que passavam por eles com toda a atenção do mundo.
O motivo de todo aquele cuidado era devido ao objeto que protegiam, o único meio de fugir de Angeais, conhecido por todos como o Portal de Fogo. Ninguém era autorizado a chegar perto do buraco flamejante aberto no chão, e caso tentasse, seria executado sem piedade.
Do outro lado do parque estava a Boate Nyx, onde Ellara encontraria seu alvo. Ela cruzou a calçada, deixando o parque e seus sentinelas para trás.
A boate era um prédio como qualquer outro, com a exceção de que não possuía janelas. Pintada de roxo com desenhos de estrelas prateadas nas paredes, tinha um cartaz colado na porta de madeira anunciando a atração daquela noite, uma cantora feiticeira chamada Tarani.
Não haviam seguranças ou qualquer pessoa para regular quem podia entrar e quem não, algo inesperado para um ambiente daquele porte.
Ellara empurrou a porta e entrou sem cerimônias, logo ficando de queixo caído com o que viu.
As paredes cor de vinho eram cobertas por tapeçarias de diferentes cores com detalhes em fios de ouro, lustres incrustados em cristal cintilavam no teto como se estrelas de verdade estivessem penduradas. Estátuas de quartzo rosa ladeavam a pista de dança e autômatos dourados eram os garçons.
As criaturas tinham olhos redondos, bocas talhadas num sorriso permanente e falavam em vozes mecânicas com um leve chiado, o corpo era simples e de aço dourado. Carregavam bandejas com bebidas e alguns até tocavam instrumentos no palco em frente à pista de dança. Coisas que só existiam graças à magia e insanidade dos inventores da Pólis.
O público da boate era composto por feiticeiros nobres e membros do Conselho do clã. Fazia muito tempo que os membros antigos haviam sido substituídos e agora Ellara percebia que não conhecia nenhum daqueles homens. Nem mesmo conhecia o sacerdote, envolto em roupas prateadas e correntes cravejadas de pedras preciosas. Era como se a elite de Angeais estivesse toda concentrada ali naquela noite.
Parecia bastante improvável que um lugar daqueles pertencesse a um mestiço.
De qualquer forma, Ellara tinha um trabalho a fazer. A Dama da Morte ficou atrás de uma estátua observando o movimento, enquanto tentava reconhecer Yvar pela descrição que Welly lhe dera.
Um tempo depois ela o viu. Era impossível não ver Yvar.
Ah, como ficou surpresa quando percebeu que seu alvo da noite era, ninguém mais, ninguém menos, do que o loirinho que sempre aparecia no bar e a chamava para dançar. Jamais imaginaria que alguém que bebesse tanto como ele fosse capaz de ser dono de qualquer coisa, principalmente de um estabelecimento como aquele.
Ellara também notou que, mesmo sendo de uma raça desprezada por seus clientes, ele era a alma da festa e, curiosamente, todos os feiticeiros pareciam amá-lo.
Era um rapaz alto, com uma risada contagiante e um olhar travesso de raposa. Os cabelos eram de um dourado pálido, quase branco, e chegavam à altura dos ombros. A pele era branca como a de um vampiro anêmico e as roupas eram tão luxuosas como as de qualquer feiticeiro ali presente.
Algo não parecia certo a respeito da existência de Yvar. Era como se ele estivesse deslocado, mas ainda sim, conseguisse se camuflar muito bem.
Ellara observou o rapaz tomar o microfone e ser recebido por aplausos de feiticeiros acostumados a esfolar pessoas como ele.
— Quem aí está pronto pra um show de arrasar corações? — A plateia foi à loucura com gritos e assobios de aprovação. — Fiquei sabendo que ultimamente estamos lidando com muitos términos repentinos e quero deixar minha solidariedade com o mais novo solteirão de Angeais, Augusto Santino, senhoras e senhores! — Os feiticeiros caíram na gargalhada e aplaudiram, enquanto o tal Augusto erguia uma taça de vinho para Yvar.
— Maldito seja, mestiço — ele brincou e riu com os outros.
Yvar bateu palmas e as luzes do salão se apagaram, as únicas a ficarem acesas foram as do palco. As gargalhadas cessaram e os autômatos voltaram aos seus lugares nos instrumentos.
— Aproveitem o show, mestres da magia — Yvar falou, em seguida jogou algo no chão que causou uma fumaça púrpura espessa o bastante para que ele saísse do palco sem ser notado.
Ellara revirou os olhos com o truque barato. O público aplaudiu enlouquecido.
A cantora subiu ao palco e começou a cantar sobre chuvas de verão e amores esquecidos, Ellara não perdeu tempo e foi atrás de Yvar, aproveitando a distração.
Ela levou a mão à cintura, onde tinha uma adaga comprida, e se espremeu entre a multidão de feiticeiros. Alguns esbarravam nela e sequer olhavam, outros - os mais bêbados - até pediam desculpa, e era difícil ver um feiticeiro se desculpar por qualquer coisa naqueles dias.
— Foi mal aí — disse o tal Augusto quando esbarrou em Ellara.
A Dama da Morte sorriu sem mostrar os dentes e seguiu caçando Yvar.
Ela encontrou Yvar abrindo uma garrafa de vinho branco no balcão do bar, distante de todos e apenas acompanhado por um dos robôs dourados. A jovem arrumou as mangas do casaco e foi na direção dele.
No entanto, sua atenção foi roubada por outro alguém.
— Olá, encrenqueira — sussurrou uma voz familiar.
De repente, ela se viu mais uma vez diante daquela figura tão estranhamente intrigante que era Alastair. Ele semicerrou os olhos e, embora as luzes ocultassem boa parte de suas feições, pareceu sorrir.
— Guarde a faca — disse, entrelaçando o braço no de Ellara e a levando para longe de Yvar. — Esta noite você não vai matar mais ninguém.

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Dama do Fogo
FantasyDepois de uma tragédia acontecer na Cidade Mágica de Angeais, a vida da feiticeira Ellara é completamente destruída. Sem poderes, sem família e sem aliados, ela se viu forçada a crescer como uma perigosa assassina de aluguel num mundo dominado por f...