1.7 : O Rio e as Laranjas

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|||Angeais, Fevereiro de 1929|||

"— Em algum momento você vai ter que abandonar essa máscara de Dama da Morte, bruxinha. Não se apegue muito às consequências de uma vida falsa."

As palavras de Alastair ecoavam na mente de Ellara como o retinir de um sino. Então tinha chegado o tempo de fazer sua transição para uma nova vida, algo que desejava há anos.

O primeiro passo tinha sido dado, ela poupou a vida de um alvo. Aquilo teria sérias consequências mais tarde, mas Ellara não estaria por perto para sofrê-las.

A feiticeira seguiu pela caminho que a levaria para o túnel, mas antes de entrar na boca escura da passagem, desviou alguns metros e acabou nas margens do Rio Serpente.

A correnteza continuava forte, apesar da água estar baixando. Diferente dos afluentes do mundo humano, o rio não nascia em lugar algum, ou desaguava em um mar, pois o Serpente abraçava Angeais da mesma forma que os muros mágicos de contenção. Ele contornava toda a cidade em um anel cristalino. Uma Serpente engolindo a própria cauda.

Ellara tirou as roupas e as botas mesmo com o ar frio da noite. Queria fazer algo que há anos não ousava fazer.

Ela deixou as coisas na margem e mergulhou na água gelada, fazendo os ramos-de-lua sacudirem na beira do rio com a ondulação abrupta da água que quase não via mais peixes.

A feiticeira nadou até o fundo, tocou na lama do leito do rio e subiu antes que o ar dos pulmões acabasse. Lembrava de fazer aquele desafio com os irmãos, porém quando abriu os olhos daquela vez e respirou fundo para recuperar o fôlego, estava sozinha. Will e Ben continuavam mortos.

Que divindade horrenda deveria ser a magia para permitir que aquilo tivesse acontecido com eles. Como uma força, supostamente do bem, poderia ser tão cruel ao ponto de deixar que dois meninos fossem massacrados no meio do templo em que era adorada?

Antigas perguntas voltaram a assombrar a feiticeira.

Às vezes, Ellara se perguntava se Andra tinha tido a mínima dignidade de enterrar seus familiares. Teria ela levado eles para o Mausoléu nos limites da cidade e os depositado em tumbas de pedra, como todos os mortos antes deles? Teria ela cantado sobre os corpos frios de seus irmãos? Teria plantado jacintos e cravos no Jardim dos Caídos para homenageá-los?

Não era preciso ser nenhum gênio para conhecer a resposta. Era mais provável que os corpos deles estivessem jogados em uma vala qualquer, aterrados embaixo de desprezo e terra preta.

Imaginar aquilo era um tormento à parte, por isso, embora Ellara tivesse esquecido de como orar, ela desejou lembrar-se de pelo menos uma prece naquele momento. Talvez uma oração colocasse seu espírito em paz, assim como os de seus finados.

Ela nunca saberia, pois como foi dito, palavras santas não se faziam presentes na boca da assassina há anos.

Ellara saiu do rio e tirou uma das várias facas do casaco, encarou o reflexo na água escura e ergueu a lâmina.

Um último ato de rebeldia como Lou.

A primeira mudança da pessoa que viria a ser.

Uma nova vida exigia uma nova aparência.

Sendo assim, Ellara cortou os cabelos castanhos na altura do queixo e jogou os fios na água, observando enquanto eram levados pela corrente, assim como sua vida antiga de Dama da Morte.

Naquela noite, sob um céu sombrio sem lua, uma nova feiticeira nascia.

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